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Testemunhas de Jeová. João tem 16 anos e recusa a transfusão que o pode salvar (e não é caso único)

O caso de um jovem de 16 anos internado no IPO que recusa transfusões por ser Testemunha de Jeová não é único. Mas nem sempre os hospitais precisam da Justiça — às vezes conseguem convencer os pais

O caso do jovem que é Testemunha de Jeová e está internado com uma leucemia aguda no IPO, recusando transfusões de sangue, não é o primeiro a ser resolvido num tribunal. Outros hospitais do país já tiveram de pedir a tutela de menores cujos pais tomaram uma decisão idêntica, na tentativa de salvar a vida dos doentes. Mas houve casos, como por exemplo em Coimbra, em que as equipas médicas conseguiram convencer as famílias a fazer prevalecer o direito à vida sobre a crença religiosa sem ser preciso avançar com um processo judicial.

A história de João, que está internado no IPO em Lisboa, saltou para os jornais pela sua idade: 16 anos. Uma idade que, à luz da lei, confere já uma série de direitos. A partir dos 16 anos pode cumprir-se uma pena de prisão, pode mudar-se de sexo ou casar com a autorização dos pais, embora a maioridade só seja considerada aos 18 anos. “Existem já uma série de atos de grande relevo, em que lhe é permitido optar sozinho”, explica ao Observador a juíza Carla Oliveira, que já trabalhou num Tribunal de Família e Menores na margem sul do Tejo e que assume que entre colegas estes casos são falados por não serem assim “tão raros”.

No entanto, diz, quando são menores, o tribunal limita-se a retirar a tutela dos pais e a dar o poder de decisão ao hospital, sem que isso seja questionável. “Quando está em causa uma criança ou um bebé, a maior parte das pessoas concorda que deve prevalecer o direito à vida sobre o direito à religião”, diz ao Observador a magistrada, que acredita que a idade fronteira de João determinou a publicidade da sua história.

O IPO recorreu ao tribunal para conseguir salvar a vida de jovem de 16 anos, mas ele recorreu

António Cotrim/LUSA

Contactado pelo Observador, o Instituto Português de Oncologia (IPO) tem no entanto um entendimento mais restrito: “No caso de uma criança ou menor de 18 anos, necessitando de transfusão de componentes sanguíneos para tratamento de doença que possa comprometer a sua vida, em caso de não consentimento dos pais, o IPO está obrigado a comunicar esse facto ao Tribunal de Família e Menores, agindo em conformidade com as decisões judiciais que forem proferidas”. E foi o que fez em julho de 2021.

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Uma visão partilhada pelo médico José Diogo Ferreira Martins, presidente da Associação Nacional de Médicos Católicos portugueses: “se em Portugal a pediatria vai até aos 18 anos, então devem ser os tribunais a decidir”, diz ao Observador o especialista em cardiologia pediátrica. “Da minha experiência e dos contactos que tenho a nível nacional e internacional, abaixo dos 18, os tribunais decidem sempre a favor da transfusão”, diz.

Para o IPO, uma decisão destas só pode ser tomada a partir dos 18 anos. Por isso, perante o caso de João recorrerue ao Tribunal 

Perante a necessidade de administrar transfusões de sangue a João, com a recusa deste e dos seus pais, o IPO comunicou o caso ao tribunal. O Ministério Público instaurou de imediato um processo judicial urgente de promoção e proteção da criança, correndo ela “perigo de vida” caso não levasse sangue, que impedisse os pais de tirarem o filho do hospital sem expressa autorização médica. O Tribunal de Família e Menores aceitou. O que não esperava era que João e os pais recorressem da decisão.

Um recurso que dá razão a todos

A defesa alegou junto do Tribunal da Relação de Lisboa que o doente tinha já 16 anos e o discernimento necessário para decidir. Sendo que a sua opção era igual à dos pais: ser submetido a um tratamento sem qualquer transfusão de sangue ou dos seus componentes. Os advogados dizem mesmo que a prova do cuidado dos pais deste jovem é que o levaram de imediato ao hospital quando surgiram os primeiros sintomas e que o tratamento até estava a correr. “O IPO subverteu os factos para assacar uma autorização judicial que imaginou dar-lhe legitimidade para impor uma transfusão de componentes sanguíneos contra a vontade do Recorrente, na eventualidade de vir a considerar recomendado transfundir”, alegam.

O tribunal superior viria a decidir já em setembro, num acórdão em que os desembargadores fazem uma apologia ao direito à vida, manter a decisão do processo, mas lembrando ao jovem que lhe cabe a ele provar na primeira instância que tem discernimento para tomar essa decisão. E que ainda o pode fazer.

“Não há liberdade religiosa que justifique a perda de uma vida humana, para mais estando em causa uma criança. Nem há consentimento do lesado que justifique lesões graves à integridade física da pessoa que consente a lesão, nomeadamente quando esta possa causar a morte”, começam por dizer os desembargadores no acórdão a que o Observador teve acesso. Para depois afirmarem, no entanto, que para a Medicina agir terá de haver “consentimento do lesado” — neste caso, do doente.

“Se a lei confere ao menor com mais de 16 anos o direito de legitimamente consentir na lesão, (…) deve entender-se que lhe reconhece necessariamente a capacidade de gozo para não dar esse mesmo consentimento, nomeadamente quando em causa esteja uma intervenção cirúrgica que lese a sua integridade física, mesmo que realizada com o propósito de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar uma doença”, lê-se. No entanto, o requisito do ‘discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance da sua decisão’ é cumulativo com o requisito da idade mínima considerada”, acrescenta.

"Não há liberdade religiosa que justifique a perda de uma vida humana, para mais estando em causa uma criança"
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Carla Oliveira explica que agora deverá o magistrado de Família e Menores procurar saber se João tem ou não discernimento para decidir, falando com ele e, possivelmente, recorrendo a especialistas, como psicólogos. “Esta questão faz relevar o consentimento. Estamos a fazer com que um jovem que cresceu integrado nesta comunidade, e que dificilmente distinguirá outros valores, verifique se esses são os seus valores, se são relevantes para ele e a maturidade que tem, se tem noção das consequências”, afirma a juíza Carla Oliveira ao Observador.

“As nossas convicções pessoais são um critério, o direito à vida terá que se sobrepor se a pessoa em causa não tiver discernimento para o fazer. Quando se percebe que aceitou aquela confissão religiosa de uma forma livre, que é um miúdo que toda a vida segue determinada doutrina, é normal que a siga como natural. Se apesar disso é coerente, tem discernimento”, diz a juíza. “As transfusões para uma Testemunha de Jeová tornam-nos ‘impuros’. Afetam as suas convicções, não podemos fazer isso!”, afirma Carla Oliveira.

Tribunal da Relação de Lisboa diz que direito à vida se sobrepõe ao da liberdade religiosa, mas que aos 16 anos poderá já haver maturidade para decidir

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

IPO poderá ser obrigado a respeitar vontade de menor

E caso esse discernimento exista, o IPO terá que respeitar a vontade deste doente, assim como têm feito tantos médicos com adultos que lhes aparecem e que são Testemunhas de Jeová e, por isso, recusam transfusões. Desde que o hospital invocou junto do tribunal que João precisava de transfusões urgentes já passaram mais de três meses.

Também o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, já teve de respeitar as convicções religiosas de vários adultos, aceitando respostas negativas de testemunhas de Jeová.

O Observador tentou saber junto da Procuradoria-Geral da República quantos processos destes tinham sido abertos na sequência de pedidos de hospitais. Mas, em resposta por e-mail, foi referido que “o sistema informático não permite a obtenção dos dados com a especificidade pretendida”.

No Hospital Dona Estefânia já houve recusas motivadas por crenças religiosas

No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), que inclui o Hospital de Santa Maria, também já foram detetados casos de recusa de sangue ou de tratamentos por motivos religiosos. “Foram enquadrados internamente com a intervenção da nossa Comissão de Ética. Que seja do nosso conhecimento, o CHULN nunca recorreu ao tribunal no caso de situações idênticas”  à de João, internado no IPO, lê-se na resposta dada por escrito.

Hospital Santa Maria, em Lisboa

No Centro Hospital Universitário Lisboa Norte, onde fica o Santa Maria, nunca houve casos de menores que recusassem tratamento por razões religiosas

Anadolu Agency via Getty Images

E, apesar de não ter sido possível obter resposta do Centro Hospitalar Lisboa Central, onde se insere o hospital pediátrico Dona Estefânia, um pediatra desta unidade de saúde garante ao Observador que ali já houve vários casos de recusa: nomeadamente de crianças doentes com deficiência de desidrogenase de glicose-6-fosfato (G6PD), anemia falciforme ou aplasia.

Casos há, porém, em que não chega a ser necessário recorrer aos tribunais. No Centro Hospital Universitário de Coimbra (CHUC) já houve casos de adultos e crianças que recusaram transfusões pelo mesmo motivo. Em resposta ao Observador, o hospital admite respeitar o princípio da liberdade individual e religiosa, no entanto, nalgumas “situações de emergência/urgência, privilegia o diálogo com o doente e/ou família, que, nestes casos, face à gravidade, sempre permitiu obter o essencial — a saúde e vida do doente”.

"Em situações de emergência/urgência, [O CHUC] privilegia o diálogo com o doente e/ou família, que, nestes casos, face à gravidade, sempre permitiu obter o essencial - a saúde e vida do doente"
Centro Hospitalar Universitário de Coimbra

Sobretudo, apurou o Observador, quando envolve menores. “Normalmente, a mãe esquece um pouco a crença e quer é salvar o filho. Já tivemos mães que convenceram os maridos e casos em que fomos nós que convencemos os dois”, disse uma fonte hospitalar. Assim, nunca o hospital teve necessidade de avançar com um processo judicial a pedir a tutela da criança e poder substituir-se aos pais.

Já em processos fora das situações de emergência/urgência, houve um caso único de um adulto que recusou o tratamento e procurou uma alternativa a que o CHUC não conseguia dar resposta. Nestes casos, os doentes têm de preencher um formulário da Direção-Geral da Saúde e podem escolher um centro, em qualquer país da União Europeia, que administre o tratamento alternativo sem recurso à transfusão de sangue. A conta é paga pelo Ministério da Saúde.

“Sem transfusão de sangue em ambiente cirúrgico, a vida do doente pode correr riscos, então, opta-se por dialogar com o doente e/ou família, dando-lhe a conhecer esse risco, e em estreita colaboração, cumprindo a lei em vigor, o doente preenche um formulário próprio, existente no Site da DGS, escolhendo o Centro de Cirurgia onde pode ser executada a cirurgia, com outras técnicas e sem transfusão de sangue, dentro da UE, e a tutela assegura a despesa”, lê-se na resposta enviada ao Observador.

No caso dos doentes pediátricos de cardiologia, João Diogo Ferreira Martins lembra que existem alternativas às transfusões de sangue, como é o caso de cirurgias feitas sem sangue em centros próprios, ou mesmo casos em que os doentes tiram o seu próprio sangue, para depois lhe ser transfundido. Por outro lado, nestes casos, os médicos não são obrigados a administrar aos seus doentes estas terapêuticas. “Como médico posso recusar tratar este doente desta forma”, diz, embora sempre nas limitação de não passar ao doente as suas convicções morais, religiosas e até mesmo políticas.

Profissionais de saúde trabalham na urgência do Hospital Geral dos Covões transformado numa unidade dedicada a doentes covid-19, onde funciona a Urgência, Cuidados Intensivos e Enfermaria de Cuidados Intermédios , 22 maio 2020 em Coimbra. (ACOMPANHA TEXTO DO DIA 25 MAIO 2020).   PAULO CUNHA /LUSA

No CHUC não houve registo de processos judiciais para pedir a tutela de crianças cujos pais recusam os tratamentos. Resolveu-se sempre pelo diálogo

Paulo Cunha/LUSA

Há doenças cujos tratamentos só são possíveis com transfusão de sangue

À presidente da Associação Portuguesa de Leucemias e Linfomas, Isabel Barbosa, também já chegaram relatos semelhantes. Mas nas doenças no sangue não há tratamentos alternativos possíveis. “Não fazer transfusões de sangue dificulta os tratamentos. Se tiver indicação para transplante de medula, é impossível fazê-lo sem receber derivados de sangue. Mesmo fazendo quimioterapia convencional ou tratamento pode ter necessidade de receber transfusões sanguíneas ou transfusões de plaquetas, portanto condiciona muito esse tratamento”, explica.

Isabel Barbosa conhece o caso de uma mulher adulta que recusou o tratamento e acabou por morrer. E já ouviu falar de casos de menores em que o tribunal acabou por intervir. “Aqui no norte já houve casos e em Lisboa também”, disse. O Observador não obteve até à hora da publicação deste artigo respostas de diversos centros hospitalares, incluindo os do norte do país.

Fernando Sampaio é padre e coordena as capelanias hospitalares de todo os país. É também coordenador do grupo de trabalho interreligioso Religiões Saúde, que reúne as principais confissões de Portugal. No seu serviço, nunca lhe chegaram relatos de casos de crianças menores cujos pais recusavam tratamento por causa da religião, mas adultos sim.

“De uma maneira geral, todas as religiões com mais tradição postulam a busca do serviço de saúde. Há algumas religiões que têm os seus métodos alternativos de cura em relação à saúde, mas o resultado sai sempre negativo. Porque na realidade é necessário que não nos deixemos levar por fantasias. Temos que ser realistas e as doenças são físicas ou psicológicas. Se temos serviço de saúde, física e mental, isso para a maior parte das religiões é analisado como um bem e uma graça de Deus”, começa por dizer.

Porém, o pároco reconhece que nem sempre é esse o entendimento de outras religiões. “Há religiões que não olham nesse sentido o serviço de saúde. Algumas são conhecidas aí na praça. As Testemunhas de Jeová têm essa característica teoricamente baseada na Bíblia — e eu aí não entro em interpretações –, são contra levar sangue e às vezes isso torna-se complicado. Porque às vezes há forma de ultrapassar, outras não”, diz por telefone ao Observador.

"Há religiões que não olham nesse sentido o serviço de saúde. Algumas são conhecidas aí na praça. As testemunhas de Jeová têm essa característica teoricamente baseada na bíblia"
Padre Fernando Sampaio

O padre lembra-se de um caso com mais de dez anos que o marcou: uma mulher Testemunha de Jeová estava em coma a precisar de transfusões de sangue e os familiares faziam “uma pressão tremenda” para que recebesse sangue. “A pessoa estava em coma, quem insistia eram os filhos, que não queriam que a mãe morresse”, lembra. O caso foi à Comissão de Ética do hospital para se chegar a uma decisão.

No caso de João, internado no IPO, enquanto a decisão do tribunal não for definitiva os médicos não podem administrar-lhe sangue ou os seus componentes. De acordo com a decisão do Tribunal da Relação, João poderá demonstrar agora junto do juiz de Família e Menores que tem discernimento para decidir. A decisão do doente deve prevalecer depois de devidamente informado das consequências e desde que não esteja a ser pressionado pela família. “Por vezes, há decisões que estão condicionadas pela família e pelo grupo religioso, mas desde que seja a decisão do próprio doente tem de ser respeitada”, diz a juíza Carla Oliveira, que sublinha existirem várias formas para averiguar se este discernimento existe.

Até lá, e confrontado pelo Observador sobre qual o tratamento que João está a fazer enquanto o processo não ficar resolvido, o IPO reitera apenas que tratará o doente “na defesa do direito à vida” e que “desenvolve sempre todos os esforços para adequar a sua prática ao respeito pelas convicções de cada doente, incluindo as convicções religiosas”.

(Artigo atualizado às 21h16 com as declarações do presidente da Associação Nacional dos Médicos Católicos)

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