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De Agostini via Getty Images

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José Manuel Garcia: “Fernão de Magalhães teve apenas ambição pessoal e quis vingar-se de D. Manuel”

Historiador e especialista nos Descobrimentos explica a importância da expedição que começou há 500 anos. E os reais motivos do navegador português.

(Este texto foi publicado a 19 de setembro de 2019 para assinalar os 500 anos do início da circum-navegação. Vale a pena voltar a lê-lo nesta quarta-feira, dia 21 de outubro de 2020, quando se assinala o V Centenário do estreito de Magalhães)

Foi um feito espanhol, mas nunca teria acontecido sem os portugueses, resume o historiador José Manuel Garcia, em entrevista ao Observador. A viagem de circum-navegação do globo iniciou-se há exatamente 500 anos, a 20 de setembro de 1519, quando cinco naus comandadas pelo portuense Fernão de Magalhães zarparam de Sanlúcar de Barrameda, na foz do rio Guadalquivir, perto de Cádiz, na Andaluzia. Terminaria três anos depois, a 8 de setembro de 1522, completada pelo navegador Sebastião Elcano, tendo Magalhães morrido nas Filipinas a 27 de abril de 1521, com 41 anos.

Uma expedição “decisiva” que “representou a conclusão do processo dos Descobrimentos”, ainda que os motivos de Fernão de Magalhães tenham sido pessoais, segundo o historiador. Ao partir para esta aventura, ele quis vingar-se do rei D. Manuel e ascender a governador do arquipélago das Molucas (ou ilhas de Maluco), de onde procedia o cravinho, a mais cobiçada especiaria daquele tempo, afirma José Manuel Garcia.

Especialista na época dos Descobrimentos, nasceu em Santarém em 1956 e é doutorado em história pela Universidade do Porto, com uma tese sobre a Expansão Marítima. Em meados de outubro vai publicar um ensaio sob o título Fernão de Magalhães – Herói, Traidor, Mito: A História do Primeiro Homem a Abraçar o Mundo, uma edição da Manuscrito onde se inclui o “relato completo” da viagem de 1519. Em 2007 publicou A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses, pela Presença. E já este ano foi consultor científico do romance histórico Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso, de João Morgado, descrito pela editora Esfera dos Livros como um livro “inovador em que a ficção e a história se entrelaçam”.

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A capa de “A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses”, de José Manuel Garcia (Presença)

Porque é que a viagem circum-navegação de Fernão de Magalhães é assim tão importante?
Porque permitiu o conhecimento o mundo tal como ele é. Além disso, representou a conclusão do processo dos Descobrimentos. Na realidade, os Descobrimentos portugueses tinham começado 100 anos antes, em 1419, quando da chegada oficial à Madeira. Um século depois, em 1519, Fernão de Magalhães vai concluir a volta ao mundo. Antes dele, o mundo não era conhecido na íntegra. Sabia-se que a Terra é redonda, esférica, toda a gente já sabia isso desde há dois mil anos, mas não se tinha bem a noção da dimensão e da realidade do planeta. A viagem de Magalhães vai, só por si, descobrir quase metade do mundo, quase 20 mil quilómetros. É uma coisa admirável.

Só a parte da viagem comandada por Magalhães navegou quase 20 mil quilómetros?
Só a parte de Magalhães. Ele começa a descobrir uma parte que não se sabia que existia, desde o sul do Rio da Prata, mais ou menos no que é hoje Montevideo [Uruguai], até às Filipinas. São quase 20 mil quilómetros e o mundo tem pouco mais de 40 mil quilómetros de circunferência.

Por isso é que costuma dizer que os Descobrimentos terminaram com Magalhães?
Exatamente, já não havia mais nada para descobrir. Mas, atenção, temos de ser muito pragmáticos: Magalhães teve apenas uma ambição pessoal, o objetivo dele era um pouco limitado. Depois, claro, havia a parte económica, de chegar às Molucas e às especiarias e de provar que aquele território era dos espanhóis e não dos portugueses.

Isso não é muito conhecido, ou é? Magalhães quis, no fundo, vingar-se do rei D. Manuel?
Talvez não seja muito divulgado, mas foi isso que ele quis, temos de reconhecer. Ele tinha ido para a Índia em 1505 e ali ficou até 1513. Durante esse período, esteve ao serviço do primeiro vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, e depois do governador, Afonso de Albuquerque. Participou na primeira ida a Malaca, em 1509; na conquista de Malaca, em 1511; na ida às Molucas com António de Abreu, em 1512; nas conquistas de Goa, etc. Uma folha de serviços exemplar, sempre na primeira linha de combate. Ora, quando voltou a Portugal quis ser compensado, quis um aumento do ordenado e depois planeava regressar às Molucas. O problema foi que, entretanto, mal chegou a Portugal, foi combater em Azamor, em Marrocos, e aí teve problemas. Foi acusado de corrupção e ficou com o nome manchado, embora tenha conseguido provar a sua inocência. Ainda assim, por causa disso, D. Manuel não o compensou com o desejado aumento da “moradia” e não o deixou ir de regresso às Molucas, um dos sítios mais ricos da Terra. Era o único sítio onde havia cravinho, a especiaria mais cara de todas, que valia muito mais do que a pimenta. A partir de 1516, Magalhães, ainda em Lisboa, começa a projetar a viagem por Ocidente até às Molucas. É aí que começa a pensar na vingança face a D. Manuel.

"[Fernão de Magalhães"] Quereria ser governador das Molucas, algo que nunca conseguiria estando em Portugal, porque lhe faltava estatuto para isso, ou, pelo menos, não tinha influência para ascender. Acreditou que Carlos V lhe poderia dar a fama e o poder de governar as riquezas do Oriente."

Mas o rei sabia que ele se propunha fazer a viagem por uma rota nova?
Não sabia ou apenas suspeitaria. Mais tarde, quando soube que ele já estava em Espanha, prestes a iniciar a viagem por Ocidente, foi dramático. Tentou impedi-lo, recorreu a embaixadores em Saragoça, Barcelona e Sevilha. Houve até pessoas próximas de D. Manuel que sugeriram a hipótese de matar Fernão de Magalhães.

Será que o rei de Portugal sabia que por Ocidente também era possível chegar ao Oriente?
Não havia certezas. Os portugueses não tinham conhecimento ainda do que haveria para lá do Rio da Prata, já que a partir daí o domínio era espanhol, por causa do Tratado de Tordesilhas.

Porque é que as especiarias eram tão valorizadas?
Geralmente, compara-se com o petróleo.

Não eram apenas usadas para temperar a comida, tal como hoje?
Eram, mas também tinham usos medicinais. As classes mais elevadas queriam ter uma comida diferente e para isso tinham de ter acesso a um produto que lhes desse essa distinção, que era um estatuto. Até então, as especiarias vinham através dos árabes e dos italianos, eram caríssimas – bem, com os portugueses continuaram caras. Para se ver, houve cálculos segundo os quais o lucro era de 500 vezes, desde que os portugueses compravam cravinho nas Molucas até o venderem na Europa. Era um produto que dava muita qualidade de vida às classes que o podiam pagar, a nobreza e partes da burguesia. Tanto quanto se sabe, as receitas do século XVI em Portugal estavam carregadas de especiarias, mais do que hoje. Era uma forma de demonstrar uma posição superior e um gosto pelo exótico.

Voltemos um pouco atrás: por aquilo que disse, podemos concluir que é falso que só com a viagem de circum-navegação é que se tenha provado que a Terra é redonda?
Quer dizer, já se sabia que a Terra é redonda, mas Magalhães provou isso experimentalmente. Os cálculos teóricos, que já vinham da Grécia Antiga, nunca ninguém os tinha experimentado. Aliás, muita gente sabia que a Terra é redonda, mas achava que ela era mais pequena do que é, caso de Cristóvão Colombo, que fez o erro tremendo de reduzir tanto a Terra que quando chegou à América pensou que estava na Ásia.

“A expedição não teria acontecido sem os portugueses. Claro, no fim as coisas correram mal para o Fernão de Magalhães e quem acabou a comandar a nau ‘Victoria’ foi o capitão Elcano”, diz José Manuel Garcia

O que é que o levou Carlos V a aceitar a expedição de Magalhães?
Acreditava que as especiarias iam aumentar em muito os seus rendimentos. Era uma viagem arriscada, claro, além de ser caríssima. Pagar 237 homens e cinco navios foi muito caro e o rei não teve dinheiro suficiente, por isso recorreu a doações de grandes comerciantes espanhóis e alemães. Mas o que terá sido decisivo foi o mapa-mundo que Magalhães lhe mostrou. Ao contrário dos espanhóis, que achavam que Malaca e o Oriente estavam perto da América, Magalhães era realista, sabia a dimensão do mundo. Conhecemos esse mapa, tinha sido feito por dois grandes cartógrafos, Pedro e Jorge Reinel, em 1519, antes da viagem. Os portugueses iam para as Molucas a partir de Lisboa, passando pelo Cabo da Boa Esperança, depois Índia e Malaca. Quase dois anos de viagem. Magalhães estava convencido de que por Ocidente seria uma viagem muito mais proveitosa e mais rápida do que a dos portugueses.

E tinha razão?
Não era completamente assim. Por Ocidente veio a verificar-se que a passagem do Atlântico para o Pacífico, no que depois se chamou Estreito de Magalhães, fica demasiado a sul. As condições de navegação no estreito e o acesso que tinha de se fazer junto ao Brasil não compensava. A viagem era demasiado demorada e só se podia fazer em certos períodos do ano. Magalhães nunca pensou demorar tanto tempo.

Além da ambição pessoal e da vingança, pode-se dizer que Fernão de Magalhães queria ficar na história?
Quereria um lugar que pudesse ser correspondente ao de Cristóvão Colombo, podemos dizer assim. Quereria ser governador das Molucas, algo que nunca conseguiria estando em Portugal, porque lhe faltava estatuto para isso, ou, pelo menos, não tinha influência para ascender. Acreditou que Carlos V lhe poderia dar a fama e o poder de governar as riquezas do Oriente.

Será que o nome de Fernão de Magalhães é hoje tão importante quanto o de Cristóvão Colombo?
Penso que sim. Não sei se não terá em alguns aspetos um papel mais importante, até, porque conseguiu fazer o que Colombo não fez: chegar à Ásia por Ocidente, atravessar o Pacífico, coisa que Cristóvão Colombo não imaginou que existisse. Magalhães provou a realidade do tamanho da terra, isso é essencial.

Sabemos com segurança quem foi ele? Alguns historiadores dizem que a biografia anterior a 1519 é praticamente desconhecida.
Há registos suficientes para comprovar que nasceu no Porto, mas isso é uma descoberta do século XIX. Houve várias teorias. Pelo menos sete territórios reclamaram ser o local de nascimento. O que ficou mais famoso foi Sabrosa [distrito de Vila Real], por causa de um testamento forjado. A família tinha origens em Ponte de Lima, os Magalhães. O pai era Rodrigo ou Rui e a mãe era Alda ou Aldonça de Mesquita. Ele afirmava-se “vizinho” do Porto. “Vizinho”, na altura, em primeiro lugar queria dizer “natural”. Sabemos que passou alguns anos no Porto, há documentos que dizem isso, e depois veio para Lisboa.

"É um feito espanhol. Foram os espanhóis que financiaram e autorizaram a expedição. No entanto, a iniciativa, o conhecimento e a direção foram não só de um português, Fernão de Magalhães, mas também de uma equipa onde se encontrava o seu primo Álvaro de Mesquita, o seu familiar Duarte Barbosa e pilotos portugueses."

Foi pajem de D. Leonor?
Dizem que terá sido, foi um historiador espanhol que escreveu isso no século XVII. É possível que sim. O único dado concreto é que em 1505 vai com D. Francisco de Almeida para a Índia. É o primeiro dado seguro. De resto, sabemos que era um fidalgo pouco importante, porque geralmente os fidalgos que estavam no Porto não tinham um estatuto elevado.

É verdade que se naturalizou espanhol?
É um assunto complicado. Damião de Góis diz que Magalhães se desnaturalizou. Quando foi para Espanha antes de encontro com Carlos V – na verdade, Carlos I, mas para facilitar digo Carlos V –, afirmava-se “vizinho do Porto”. Continuava a considerar-se português. Casou-se depois em Sevilha, com a filha de Diogo Barbosa, e nessa altura penso que já se afirmava espanhol. Mas, note-se, que esteve menos de dois anos em Espanha. Chegou a Sevilha em 20 de outubro de 1517 e saiu a 20 de setembro de 1519. Acho que se tratou mais de um expatriamento do que uma renúncia à nacionalidade. É, aliás, curioso: quando chegou a Espanha ele dizia que tinha sido “despedido” por D. Manuel. “Despedido” é uma expressão curioso, porque geralmente o que Camões e cronistas como João de Barros diziam era que ele estava “agravado”, estava aborrecido, tinha sofrido um agravo do rei.

O facto de ter vivido apenas 41 anos foi muito ou pouco para um homem do princípio do século XVI?
A maior parte da população vivia até aos 30 ou 40 anos. Havia fidalgos que duravam até aos 100 anos. O rei D. Manuel viveu até aos 52 e foi a peste que o matou.

Há descendentes de Fernão de Magalhães?
Não, porque do casamento com Beatriz Barbosa, cerca de 1518, nasceu um filho em 1521 que morreu pouco depois. Mais tarde, o segundo filho morreu ao nascer. E a mulher também acabou por morrer em 1522.

Por fim, a pergunta que tem dado tanta polémica: a circum-navegação de Fernão de Magalhães é um feito espanhol ou português?
É um feito espanhol. Foram os espanhóis que financiaram e autorizaram a expedição. No entanto, a iniciativa, o conhecimento e a direção foram não só de um português, Fernão de Magalhães, mas também de uma equipa onde se encontrava o seu primo Álvaro de Mesquita, o seu familiar Duarte Barbosa e pilotos portugueses. A expedição não teria acontecido sem os portugueses. Claro, no fim as coisas correram mal para o Fernão de Magalhães e quem acabou a comandar a nau “Victoria” foi o capitão Elcano, que nunca pensou vir a ter esse papel. Foi ele que completou a viagem, tem esse grande mérito.

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