A obra só ficou concluída quatro anos depois do prazo, foi contratada uma empresa com “engenheiros falsos”, a associação em causa quase faliu e agora a câmara de Lisboa pagou, por acordo, mais meio milhão de euros na sequência da requalificação de uma piscina na Penha de França, numa fatura que já vai em 1,3 milhões de euros. O conflito judicial que levou a este acordo começou com Fernando Medina e o PS acredita que a decisão do vereador Ângelo Pereira fez a câmara perder dinheiro, mas o executivo de Carlos Moedas acredita que ia gastar mais se não houvesse o acordo.

Os socialistas acreditam que a autarquia ia vencer o conflito judicial contra a associação porque uma decisão do Tribunal Arbitral do Desporto de 2020 falava em “incumprimento grave do clube”, embora também dissesse que o contrato não podia ser resolvido porque não houve “audiência prévia” da entidade em causa (Associação Centro Cultural e Desportivo Estrelas São João Brito). A autarquia fez então a audiência e avançou de novo com o processo.

Entretanto o município mudou de cor política e o vereador Ângelo Pereira chega a acordo com a associação, a troco de 337 mil euros e mais 160 mil euros de custas judiciais (um total de 497 mil euros).

O executivo de Moedas alega que iria pagar mais (“risco de desfecho desfavorável”), já que a associação — no processo que pendia contra a câmara — pedia 575 mil euros de indemnização, aos quais ainda se juntariam as custas judiciais.

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Mas a oposição sugere que o acordo foi feito pelo PSD não em nome da poupança da autarquia, mas porque o presidente da associação é fundamental para que em Alvalade o PSD consiga a maioria na assembleia de freguesia. Nuno Lopes nega a relação entre o acordo da autarquia com a associação a que preside e as várias votações (que o Observador confirmou que existiram) que fez ao lado do PSD e do CDS na junta de freguesia de Alvalade.

A autarquia já tinha entregado 476 mil euros à associação, aos quais se juntaram mais 300 mil para a junta de freguesia de Penha de França que depois teve de terminar a obra. Juntando os 775 mil euros na obra, mais os 497 mil do acordo dá um custo total de 1,27 milhões de euros na requalificação da piscina.

Uma piscina encerrada 10 anos

Tudo começou quando a autarquia e a associação desportiva assinaram, em 2013, um contrato-programa de desenvolvimento desportivo para a piscina municipal de Penha de França, cujas obras de requalificação ficaram à responsabilidade do clube. Ainda foi Fernando Medina, na altura presidente da CML, quem lançou os trabalhos de requalificação. O antigo autarca do PS esperava que a piscina estivesse pronta para ser usufruída pela população no início de 2017 (ano de autárquicas), mas só passado cinco anos da primeira previsão apontada pelo autarca socialista, é que a obra ficou concluída — já durante o mandato de Carlos Moedas, que venceu as eleições autárquicas em setembro de 2021.

A autarquia comprometeu-se a contribuir com 775 mil euros e a entregar ao Estrelas S. João de Brito, na altura um dos mais prestigiados clubes de natação em Lisboa, os trabalhos de requalificação. No período em que as obras decorressem, a associação teria de pagar os custos de eletricidade, do gás e da água e, no futuro, ficaria com a gestão e exploração do espaço. Além disso, o clube apenas teria de pagar 20% dos lucros à junta de Freguesia da Penha de França, caso o exercício anual tivesse proveitos.

O acordo parecia simples e favorável às partes envolvidas, mas em 2019, três anos depois do primeiro prazo apontado para a conclusão das obras, a piscina continuava encerrada. Em causa estava um diferendo entra a associação e o empreiteiro a quem foi adjudicada a requalificação. Assim, nesse ano, a autarquia da capital pediu a “retoma imediata da posse da piscina municipal da Penha de França”, para poderem “tomar as medidas legais e regulamentares com caráter de urgência que acautelem a saúde e segurança de pessoas e bens”.

O município defendia que a associação não cumpriu os prazos previstos para a conclusão das obras, tendo a CML “envidado múltiplos esforços e diligências” junto do clube, “no sentido de encontrar soluções possíveis” para que a obra estivesse “concluída no mais curto período de tempo”.

Os falsos engenheiros e uma batalha judicial sem fim à vista

Ao Observador, é o próprio Nuno Lopes, presidente da direção da Associação Estrelas de São João de Brito, a recordar o episódio dos “falsos engenheiros” da empresa contratada – Tanagra. “Não cumpriram com o projeto e a associação, como dona da obra, suspendeu os pagamentos até que houvesse correção dos trabalhos”, afirmou o responsável pela associação desportiva, que lembrou o espanto com que recebeu a notícia de que a autarquia se oponha à suspensão dos pagamentos, tendo, por sua vez, “também suspendido os pagamentos à associação”.

E o caos instalou-se a partir daí. A associação despediu a própria equipa de fiscalização, que tinha ocultado os falsos engenheiros e deu novo prazo à Tanagra para terminar os trabalhos que tinham ficado a meio. Segundo Nuno Lopes, a empresa “não fez absolutamente nada” e, quando o prazo legal chegou ao fim, passou à contratação de uma nova empresa” — mas a CML opôs-se e, segundo o responsável da associação, “suspendeu o pagamento das verbas em atraso bem como recusou pagar os trabalhos extra-contratuais que lhes foram exigidos”.

A boa relação que existia entre o clube e a autarquia — assim descrita por Nuno Lopes — estava irremediavelmente danificada. O passo seguinte foi um conflito judicial que se arrastou (e ainda se arrasta) em tribunais de diferentes instâncias ao longo dos últimos anos, mas que teve um desenvolvimento recente: a entrega de 337 mil euros pela Câmara Municipal de Lisboa ao clube Estrelas S. João de Brito, mesmo depois de um tribunal ter considerado a associação responsável pelo incumprimento contratual.

Em outubro de 2020, o Tribunal Arbitral Desportivo (TAD) tomou uma decisão em relação ao processo n.º 62/2019, que tinha como demandante a Associação Centro Cultural e Desportivo Estrelas São João de Brito. O demandado era o município de Lisboa e em causa estava a validade do ato de resolução do contrato-programa de desenvolvimento desportivo que tinha colocado contra a associação, depois de esta não ter entregue a piscina requalificada no prazo estabelecido.

O TAD entendeu que no caso referido do incumprimento era definitivo, grave e que era imputável à associação, uma vez que se afigurava “irrelevante a alegada atuação de um terceiro subcontratado pela demandante para executar tal prestação contratual”, neste caso a Tanagra com os seus falsos engenheiros.

No entanto, a mesma sentença aponta que o ato de resolução de um contrato deste tipo “deve ser antecedido de audiência prévia do contratante/beneficiário, sob pena de nulidade, atenta a violação de um direito fundamental, com assento constitucional”. E foi isso que aconteceu, uma vez que a Câmara Municipal de Lisboa não tinha ouvido o clube antes de decidir anular o contrato, a resolução não era válida.

O município recorreu da decisão, mas o Tribunal Administrativo Central Sul confirmou a decisão do TAD. A autarquia, na altura liderada por Medina, continuou a insistir na rescisão de contrato com dono de obra da piscina da Penha de França. Em março de 2021, propunha apreciar de novo a rescisão, uma vez que a Associação Centro Cultural e Desportivo Estrelas São João de Brito já tinha exercido o “direito de audiência prévia”, ou seja, a formalidade que provocava a nulidade ficava cumprida.

O município apresentava como argumento que ambos os tribunais deram como provado “o incumprimento definitivo, grave e por facto imputável à associação”. Já a associação, numa comunicação enviada à Provedora da Justiça, em fevereiro de 2021, alegava que, já depois da decisão do TAD, a autarquia assinou “um contrato ilegal” com a Junta de Freguesia de Penha de França para retomar as obras de requalificação da piscina.

“Hora de enterrar o machado” para o clube desportivo

E o Estrelas de São João de Brito não largou mesmo a causa. Em abril de 2021 voltou a interpor novo processo no TAD, onde pedia mais uma vez a anulação da rescisão contratual e ainda uma indemnização à autarquia pelos danos no atraso do pagamento. Nuno Lopes garante que todo o processo fez com que a associação se visse obrigada a despedir 18 trabalhadores, alguns com 20 anos de casa, a “extinguir a secção de natação federada com atletas Olímpicos e a secção de vela, vender barcos, autocarros e carrinhas”. Tudo para pagar ordenados em atraso, fornecedores, despesas judiciais e advogados.

O conflito parecia não ter fim à vista, nem mesmo com a reabertura da piscina em dezembro de 2021, já a autarquia da capital tinha virado com a coligação “Novos Tempos”. Mas um novo executivo municipal, deixava esperanças à associação de que tudo fosse resolvido.

Um acordo de transação celebrado em abril de 2022 pela Câmara e a associação parece ter sido suficiente para dar por terminada a batalha judicial. “Todos os processos contra a CML estão encerrados. Igualmente contra a junta de freguesia de Alvalade”, garante o presidente do clube desportivo.

A autarquia, perante o “historial lesivo da contenda mantida desde 2019”, decidiu negociar com o representante legal do clube desportivo, através do gabinete do atual vereador do Desporto, Ângelo Pereira. A associação comprometeu-se a desistir do novo processo mediante o pagamento pelo município de uma quantia global de 337 mil euros. Além disso, o acordo estabelece que “as custas processuais [fixadas em 166 mil euros] ficariam a cargo do município”, já que a associação beneficia de proteção jurídica na modalidade de isenção do pagamento de taxa de justiça (no caso, de arbitragem) e demais encargos com o processo.

“Este acordo foi o possível legalmente que este executivo nos apresentou, que é muito abaixo do valor que pretendíamos (menos 110 mil euros), mas como dizem mais vale um mau acordo do que continuarmos eternamente a desgastar financeiramente em tribunal”, garantiu Nuno Lopes, que assegura que “estava na hora de enterrar o machado”.

Autarquia justifica acordo “risco de desfecho desfavorável” em nova ação

Ao Observador a Câmara Municipal de Lisboa assegura que a decisão de seguir pelo caminho do acordo se deveu ao “risco de um desfecho desfavorável ao município caso o Tribunal viesse a entender não existir incumprimento por parte da associação e como tal, determinasse infundada e ilegal a deliberação que aprovou a resolução do contrato programa“.

Isto porque o Tribunal Arbitral, no processo de 2021, entendeu que toda a argumentação do município quanto ao incumprimento da associação iria ser novamente objeto de apreciação e julgamento, podendo o novo tribunal, “vir a entender ao contrário do tribunal anterior, que não se verificava o incumprimento contratual da associação”.

Ou seja, a autarquia garante que poderia ficar na obrigação de pagar “todas as prestações em dívida por parte do município e subsequentes até ao termo do contrato, além de eventual indemnização”, o que a levou seriamente a ponderar a realização do acordo. Além disso, garante, pretendeu conter os “custos processuais avultadíssimos deste Tribunal do Desporto”, cujo regulamento determinou que no primeiro processo arbitral o município pagasse de custas finais o montante de €86.464,00 e no segundo tribunal o valor de €153.403,00.

Segundo o executivo de Moedas, a transação judicial celebrada foi, assim, motivada pela necessidade de resolver um litígio que se arrastava há muito, retomando a posse do equipamento público e, por outro lado, com a intenção de “conter os custos avultadíssimos que as ações interpostas pela associação vinham a acarretar para o município”.

Contactado pelo Observador, o atual gabinete dos vereadores do PS tem um entendimento diferente e critica a “ausência de fundamento jurídico para fazer uma análise de racionalidade económica e de probabilidade de causa”. Garante que as negociações, levadas a cabo pelo gabinete do vereador Angelo Pereira são contrárias ao que costuma acontecer em qualquer lado, “onde poder executivo (vereador, neste caso) toma decisão política depois de ter fundamentação técnica dos serviços”.

Os laços recentes entre Nuno Lopes e o PSD de Moedas

Nas eleições autárquicas de 2021, o diretor da associação desportiva concorreu à Assembleia da Junta de Freguesia de Alvalade. Nuno Lopes era o cabeça de lista do movimento independente Mudar Alvalade, que arrecadou 824 votos que lhe garantiram o lugar de membro da assembleia de freguesia no órgão deliberativo.

As eleições locais ficaram marcadas pela transição de poder. Os socialistas governavam há 14 anos em Lisboa, mas isso acabou com a coligação de direita “Novos Tempos”, encabeçada por Carlos Moedas. Mas não foi só a liderança da autarquia que virou, aconteceu o mesmo com várias juntas de freguesia tradicionalmente socialistas. Alvalade foi uma delas. Assim, à semelhança do que aconteceu nos Paços do Concelho, passou a ser um político do PSD a sentar-se na cadeira de presidente – José Amaral Lopes. É este o atual líder da autarquia de Alvalade, eleito há dois anos.

Desde que ocupou o lugar de deputado municipal, não foram poucas as vezes que Nuno Lopes votou ao lado dos social-democratas. O seu voto, aliado ao dos quatro deputados municipais do PSD, três do CDS-PP e mais dois da Iniciativa Liberal e Chega perfaz a maioria (dez votos) contra os nove deputados do PS, CDU e BE. O cenário 10-9 colocou-se várias vezes, tal como demonstram as atas das reuniões da Assembleia de Freguesia de Alvalade, na votação de mapas de pessoal, compromissos plurianuais e orçamentos de receita e despesa.

No entanto, o presidente da associação desportiva garante que “não existe qualquer proximidade política seja com o PSD, o PS ou outro qualquer partido”. Reitera que representa um movimento independente e que, como tal, estará “sempre mais próximo da força política que melhor servir os interesses da freguesia”.

Questionado sobre o timing do acordo em relação ao conflito que envolve a requalificação da Piscina de Penha de França, que apenas foi elaborado no atual mandato da Câmara de Lisboa, Nuno Lopes entende que todos os acordos têm um “processo de negociação para ambas as partes”, bem como “o tempo certo para a conclusão”, que neste caso sucedeu “com atual presidência”.