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ANDRÉ DIAS NOBRE

ANDRÉ DIAS NOBRE

Maria João Sopa. "Lembro-me de descer o Chiado e apontarem-me o dedo: 'Tu não me deixaste entrar no Frágil!'"

Entre o Bairro Alto e o Lux, à porta de moradas históricas ou ao lado de Manuel Reis, eterna curiosa e singular no estilo. Maria João Sopa guia-nos agora pela nova concept store no Príncipe Real.

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Por estranha coincidência ou feliz alinhamento dos astros, na discoteca Lux eram quase todos leões de signo, uma “conjuntura curiosa” que deu garra ao sonho e viu nascer um monumento.”O Manel, eu, muitos Djs, há ali muito fogo”. Maria João Sopa (ou Sopinha, como carinhosamente é tratada) vai cada vez menos aos três andares à beira rio que ajudou a erguer com Manuel Reis, saudoso artífice de uma Lisboa cosmopolita a quem “ainda não se fez toda a justiça”. Se a virem por lá, no entanto, não estranhem que a antiga relações públicas e braço direito do visionário fundador tenha um café com leite nas mãos. Apesar de tantas andanças noturnas, a “miúda do galão” nunca foi de excessos nessa Lisboa de todos os fascínios. Conheceram-na responsável, à porta do Frágil, a decidir se sim ou sopas a quem queria entrar. Ou atarefada, entre a loja que José António Tenente manteve no Chiado, as aulas no Ar.Co, e o ponto de encontro na Brasileira. Positiva, sempre, “pela formação espanhola” e pela efervescência de uma capital em transição, nessa viragem dos anos 80 e 90. E pronta para mais uma volta.

11 anos depois de abrir, a um passo do jardim do Príncipe Real, a sua 21pr Concept Store mudou de número na Rua da Escola Politécnica, motivo para rebatismo. A nova 50 tem menos metros quadrados  mas segue a fórmula de sempre neste c de achados e bom gosto: cuidado máximo na curadoria, para um acervo de peças únicas. Por questões logísticas, as roupas veem presença aqui reduzida, mas continuarão a entrar em cena, através de pequenas cápsulas de artigos facilmente prováveis, como blazer ou bombers. Em última instância, pode sempre apreciar o look do dia da mestre de cerimónias, com os inseparáveis óculos escuros e o detalhe de quem sabe que o estilo não tem horas. “Para os portugueses é sempre tudo too much. Quando me veem na rua acham que estou sempre super bem vestida para as dez da manhã.”

Costuma dizer que as mudanças têm que ser rápidas. Também aconteceu assim nesta mudança do número 21 para o 50?
É verdade. Também foi assim. Desde o início, houve o pré-aviso da Eastbank, que é o fundo americano que praticamente é proprietário do Príncipe Real quase todo, de quem um dia aquele edifício, antigo Banco de Portugal, ia entrar em obras. Passaram 11 anos, ainda é uma grande margem de tempo. Tive um aviso no final de setembro, não ia passar muito mais da viragem do ano. Tentei procurar um sítio, foi muito difícil. Lisboa tem poucos imóveis e cada vez mais caros, principalmente nestas veias, Príncipe Real, Santos, São Bento, que era o meu interesse, para fugir ao Chiado. De repente apareceu este local, tem o mesmo senhorio, e a única coisa é que tinha que esperar até março. Foi o timing de um mês, o tempo de obra aqui, e preparei-me para mudar rapidamente. Não valia a pena ficar a chorar.

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Até porque continuava no seu bairro de eleição.
Continuava aqui, no bairro que gostava. A transição tinha que ser rápida, não podia ficar fechada muito tempo, nem acho que seja bom para os negócios. O layout desta loja era fácil de resolver, era espelhar as paredes todas, não tinha grande obra. É o meu lado da noite, entre o preto e os espelhos.

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É a sua pequena discoteca?
Tal e qual. Seria um bocadinho essa transição da minha vida com o Manuel Reis. Foi rápido. Trazer tudo dali para aqui. Deixar os 170 metros quadrados e cortar nas opções, para uma área de 75. Aquilo que deixei cair, e não deixa de ser “em casa de ferreiro espeto de pau”, porque é a minha área, foi a parte toda do vestuário e moda. O que vou fazer aqui são brincadeiras de cápsulas, que não implica ir a um provador. Uma coleção de blazers, bombers, coisas divertidas. De resto, mantém-se toda a área dos acessórios e das joias, velas. Tem graça não ter o vestuário.

Que é a sua marca por excelência.
É, no fundo é a minha área de vida. Sou formada em Moda, trabalhei sete anos com o [José António] Tenente. No fundo, a 21PR vem de uma transição que começou com o [designer] Ricardo Preto, ele tinha a parte de vestuário e eu tinha os acessórios. Deixo cair a área que no fundo, dentro das cidades, é a que está mais preenchida. Sempre gostei mais de trabalhar os acessórios, o detalhe, o pormenor, o rematar de um look, que passa por um lenço, por uma carteira, os brincos.

Costuma dizer também que neste bairro se sente no nosso Marais, ou no nosso Soho. Para quem assistiu à  evolução da zona, sente que os portugueses que por aqui passam estão mais atentos à moda? 
Acho que esse lado dos portugueses se interessarem mais vem do tempo da Zara, todo esse império construído no final dos anos 80 e começo de 90 ajudou muito a mudar a forma como a sociedade portuguesa se vestia. Os espanhóis já faziam isso há muito tempo, nem vou falar dos franceses e italianos, porque esses são os grandes mentores de moda. A Zara veio mudar mentalidades e permitiu às pessoas estarem mais ligadas a esse layout, ao lado mais fashion, à possibilidade de terem a moda a preços muito mais acessíveis. Essas marcas têm uma aproximação daquilo que são as tendências de moda, que acabou por ajudar a poder consumir com um lado mais simpático. Depois pode-se pensar… eu não gosto de dizer cópia…

Era isso que lhe ia perguntar. Grandes marcas e cadeias como a Zara são muitas vezes diabolizadas na experiência de consumo.
É, mas aqui de facto é pensar em ter um mini luxo para as massas, para o senso comum. A tendência está lá, a moda lida com isto de seis em seis meses, com cadernos de tendências. No fundo todos vão beber a esse universo.

"Há imensas coisas maravilhosas, o Prince vir tocar ao Lux, o Malkovich vir abrir a casa (...) Para a cidade na altura cria dinâmicas muito curiosas, torna-se mais cosmopolita. As pessoas gostavam de ir jantar à Bica do Sapato porque achavam que podiam ver algum dos nossos ministros, ou presidentes como o Mário Soares"

A certa altura, julga que terá feito mais pela abertura da sociedade portuguesa que o nicho dos designers de autor, e trabalhos como o que fazia em particular?
Eu acho que sim. Vejo que mudou muita coisa. Claro que nasceram novos designers, como o Dino [Alves] mas muita dessa geração — falo por exemplo do meu tempo com o Tenente, ou da Eduarda Abbondanza– essa gente toda acabou. Houve ali uma coisa na sociedade que espoletou, e essas escalas mais pequeninas deixaram de conseguir sobreviver. Todo esse trabalho de autor depois veio a crescer mais tarde com outras gerações. Houve ali de facto uma geração que morreu, que não conseguiu preencher o lugar dessas marcas que vieram ocupar o mercado. Para mim o Príncipe Real tornou-se… e quero pensar que apenas há cinco anos…

Esse é outro ponto interessante. Há dez, quinze anos, esta rua não tinha quase nada do que tem hoje.
Nada. É uma grande mentira [quando dizem que sempre foi assim]. Há dez anos o Príncipe Real não tinha nada. Tinha algumas estruturas pequenas de antiquários, era a segunda rua pós São Bento e não havia restauração nenhuma, ainda era a tasquinha. Todo este crescimento foi nos últimos cinco anos. Quando viemos para a rua, foi um impulso que a Eastbank quis dar. Na altura a nossa loja tinha 400 metros quadrados. Era uma grande concept store dentro da rua. Já havia a Alexandra Moura, o Nuno Gama, que estava onde é a [Livraria da] Travessa [na Rua da Escola Politécnica].

E era bem mais difícil convencer o cliente a entrar?
Acho que sim. Esta zona ainda era muito underground, com discotecas gay, a esquina da rua da Rosa tinha ali um nicho estranho, com um Extra e uma rede ainda de toxicodepenência. As pessoas viviam entre o fascínio e o medo. Os antiquários tinham abandonado as lojas, surgiram novos negócios. A rua estava numa transição. E aí acho que a Eastbank fez um trabalho importante, de tornar este bairro algo que não existia em Lisboa. Aliás, tinha existido.

No Bairro Alto?
Houve essa tentativa de fazer isso com o Bairro, que morreu. Era o tempo da Loja da Atalaia, de tudo o que eram designs alternativos; havia ali o [cabeleireiro] Facto; muitos britânicos que vieram ocupar lojas de autor. A meio dos anos 90 também decaiu, o bairro ficou muito sujo, e as pessoas foram saindo. O Príncipe Real vem ocupar esse espaço todo e trazer um nicho mais high, que o Bairro Alto não tinha. Tem o lado de autor, de design contemporâneo, que ruas de outras capitais tinham e nós não tínhamos. Temos o luxo na avenida a parte comercial no Chiado e pouco mais.

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Dizia que não queria o Chiado para instalar a loja, precisamente por essa dimensão mais comercial e menos boutique?
O Chiado tornou-se muito comercial. A única rua que para mim é lindíssima e nunca conseguiu ganhar alguma nobreza alternativa é a rua Ivens e a rua de cima. Pós incêndio passou a ser ocupado pelas grandes marcas, pelos emporios de grande escala. A única loja de luxo que se conseguiu vincular foi a Hermès, que veio para o topo do Chiado. No meu tempo ali a trabalhar ainda me lembro de o Chiado fechar ao sábado à uma. O Chiado morria, não havia nada ao sábado à tarde.

Tendo vivido estas duas faces da cidade o que é que predomina em si? Nostalgia do passado ou entusiasmo permanente com o presente?
Acho que é o crescer normal das cidades, nem acho que tenha esse lado de nostalgia. Íamos a Barcelona e tínhamos o Borne e em Lisboa demorou a acontecer, não havia nada. Também pelo abandono dos imóveis, pela falta de incentivo à preservação… Eu venho de uma educação espanhola e acho sempre que o português é muito desconfiado. Esta mudança vem muito pela lado do dinheiro, é verdade que todos estes fundos franceses ou ingleses vieram trazer essas novas dinâmicas à cidade. Infelizmente isso só aconteceu depois de Expo, tivemos um visionário como o Mega Ferreira.

Falámos da Zara, a Expo 98 é outro momento decisivo na vida da cidade.
Sim, é o grande ponto de viragem na cidade, que nos faz entrar num burburinho. Se pensarmos em tudo o que era e passou a ser de Xabregas para lá.

Cola também com a inauguração do Lux, pouco tempo depois, onde foi relações públicas.
Tal e qual. No fundo, o Manel abandona o Bairro Alto. O Frágil deve ter fechado em 96, 97, porque houve ali um ano de trabalho até se abrir o Lux. O Manuel fez todos aqueles bunkers que se arrastam depois do Lux, cria uma nova dinâmica onde também não havia nada. Esse nicho passou a ser o lado mais avant garde, pós 98, 99.

Fala dos outros negócios vizinhos.
Sim, o Facto, a Bica do Sapato, o Delidelux, a loja dos discos, a Sneakers Delight.

"Acho que esse lado dos portugueses se interessarem mais [pela Moda] vem do tempo da Zara, todo esse império construído no final dos anos 80 e começo de 90 ajudou muito a mudar a forma como a sociedade portuguesa se vestia. (...) A Zara veio mudar mentalidades e permitiu às pessoas estarem mais ligadas a esse layout, ao lado mais fashion, à possibilidade de terem a moda a preços muito mais acessíveis."

Manuel Reis que mais uma vez percebeu antes do tempo que a cidade estava a mudar?
Sim, sim, assim como a seguir se sente, depois desse veio de Santa Apolónia, que há um regresso ao centro. Há um perder de medo. O Manel até volta a reabrir a loja da Atalaia no Bairro Alto, que reabro com ele passados dez anos. Aí já se nota a colagem à dinâmica que o Príncipe Real estava a ganhar. É preciso sempre haver alguém a impulsionar para o português não ter medo. Somos muito mais tímidos e recatados e fazemos depois desse impulso inicial, depois de alguém experimentar. Venho de um pai economista e no fundo tenho duas culturas. Portuguesa e espanhola.

E a ligação ao Algarve?
O meu pai, sim, é algarvio, eu sou mesmo lisboeta. Nasci cá e depois fui para África com dois anos, voltei aos dez e fui logo para uma escola espanhola. Acho que quem vive em África tem outro conceito de liberdade e devaneio, menos assustador do que para quem cresceu num contexto pós-25 Abril, com ditadura pelo meio. Eu cresci com uma liberdade enorme.

Há um momento em que percebe que a sua vida ia passar por estes caminhos todos?
Logo ali aos 10, 11 anos dizia que ia para Belas Artes, para pintura. A Moda apareceu apenas aos 17, 18 anos, mas para mim foi sempre Belas Artes. Os pais ainda tentam influenciar a ir para a arquitetura de interiores ou paisagística, por causa do Gonçalo Ribeiro Telles, mas aquilo não me dizia nada. Depois acabei por não ir para Madrid estudar Belas Artes e acabei por ir fazer Moda no IADE, e mais tarde ainda design gráfico, no Ar.CO.

Nessa fase está já em Lisboa?
Em Lisboa. Eu cresci na linha, sou menina da linha. Antes de irem para África os meus pais tinham comprado uma casa em Oeiras, onde o meu pai e a minha irmã ainda vivem, e quando regressei de África voltei para ali. Vinha estudar para Algés, para o Instituto Espanhol, e aos 18, 19, venho viver para Lisboa.

Como foi viver esses primeiros anos?
Era viver os anos 86, 88, já com uma grande dinâmica na cidade. Já encontramos muito essas gerações ligada à moda, os próprios Mário [Matos Ribeiro] e Eduarda [Abbondanza], o Tenente, as Manobras de Maio.

Essas pessoas vão se conhecendo no Bairro Alto?
Sim, é o ponto de encontro para tudo o que seja artes plásticas, poetas, jornalistas, Aquela coisa entre o Frágil e alguns pequenos locais. Não há telemóveis, redes sociais. Era tudo entre a Brasileira e o Bairro Alto, o lado alternativo para quem estava no mundo das artes. Eram nichos que se formavam na cidade. Todos nos encontrávamos na mesmo sitio. Sete e meia oito saíamos dos nossos trabalhos ou de pequeninos hobbies e íamos à Brasileira.

Pelo espaço, encontra peças da Goti, 5 Octubre, Room Service, Celeste Mogador, Bruno da Rocha, Carolina Curado, L’Objet, Cire Trudon, ou Comporta Perfumes

Perguntava-lhe isto porque a certa altura a propósito do livro do seu amigo Daniel Blaufuks, Lisboa Cliché, escrevia na suas redes que ainda era “a miúda do galão”. 
Digo muito isso porque é também uma brincadeira minha do Lux. Enquanto as pessoas bebiam álcool eu as quatro da manhã bebia um galão quente. Era muito reconfortante, até porque se tem fome e aquilo alimenta. Assim como as pessoas bebem um copo de vinho à saída da praia, eu bebo um galão quente. É uma coisa muito minha.

Excessos não eram consigo?
Nunca fui muito… Provavelmente tem a ver com a minha educação. Apesar de pertencer a uma geração muito virada para grandes experiências, o excesso das descobertas, as drogas… nunca me fascinou. Nunca fumei na vida, apesar de ter trabalhado tanto de noite. E há muita gente que pensa isso, por ter sido porteira do Frágil. Se pensarmos bem, o álcool ajuda a ter uma resistência qualquer, uma pré-disposição para receber as pessoas, mas acho que isso já fazia parte da minha natureza. Eu era muito positivista, muito up, não via necessidade.

Divertia-se à mesma.
Divertia-me à mesma. As contradições também não deixam de ser engraçadas. Eu tinha esse peso da responsabilidade, de estar à porta do Frágil, e mais tarde quando fui braço direito do Manel no Lux, com o me lado de RP. Temos que ter uma lucidez qualquer em momentos em que se tem que tomar decisões.

Até porque a noite exige muita diplomacia.
Exige esse trabalho diplomático, muito jogo para receber quem tem outra disposição, saber reagir a frio. Se não não dá. Eu estava a trabalhar, e como qualquer outra pessoa que está a trabalhar, sentia que tinha que estar sem beber álcool e ser responsável.

Nesse mítico Frágil, como passa de frequentadora a porteira?
[risos] Acho que era aquela coisa que o Manel tinha, e que a geração tinha um pouco. Havia sempre alguém mais carismático, como a Guida Gorda [Margarida Martins], que seguiu para a Abraço. O Manel achava graça a pessoas que teriam algum glamour, carisma. Ele percebia isso e depois fazia esses convites consoante a sua opinião pessoal, sempre muito sua. Eu era uma miúda.

Que idade tinha?
No Lux quase 30 portanto ali teria uns 22 anos. Era muito novinha. A graça do Manel é pensar que eu sou uma miúda com ar de fragilidade, por ser magra, mas que era uma pessoa responsável, com disciplina, que ele apreciava. Não era uma desvairada, era a pessoa que dava responsabilidade como braço direito. Levou-o mais tarde a procurar-me para o Lux, passando de uma dinâmica pequena no Frágil para uma escala em que tínhamos 80 e tal empregados, com uma máquina em nenhum de nós sabia o que ia acontecer.

"A nossa geração só pensava em fazer diferente. Podíamos seguir o Prince ou o Bowie mas cada um queria ter a sua própria imagem, o seu statement era demarcar-se. Mais uma vez, o português é pouco pespineta, a sua cultura continua a ser muito a estrutura familiar, as elites, se aquilo sai dali têm logo muito medo. O meu pai costumava dizer “estás-lhe no sangue”. Somos os moderados da ponta da península"

Como foi esse arranque em finais de 90?
Eu lembro-me que no primeiro ano e tal trabalhava 14 horas por dia. Entra às 11h e saía às duas ou três da manhã. Das bilheteiras à gestão de empregados era preciso perceber como tudo isto funcionava. Havia outra coisa fascinante, nós éramos umas 80 pessoas no Lux e estava tudo a trabalhar. As pessoas vestiam aquela camisola, era único, ninguém pensava se o horário tinha acabado. Se era para abrir no dia x, acontecia. Hoje não vê isso. Éramos capazes de ficar os 80 a fazer uma noitada para terminar algo

Num projeto que à época é meio piloto.
Tal e qual, era uma novidade. Foi um fascínio. Se Nova Iorque, Paris, ou Londres já tinham grandes dinâmicas de grandes discotecas, Portugal não tinha. Tínhamos o Alcântara, mas mesmo assim. O Manel vinha do Frágil, era diferente, e depois fez várias festas anuais e temáticas. Gera-se ali um grande burburinho na cidade.

Surgiu na altura certa?
Acho que sim, para mim como para todos nós daquela geração, ligados às artes. O olhar do Manel estava refletido também na loja da Atalaia que abriu ali em Santa Apolónia, no impulso das exposições. Aquele homem é o mentor de muita coisa, não há muitos na nossa cidade. A própria cidade ainda não fez essa justiça a este homem. Esquecemo-nos de tudo muito depressa, o que é uma pena. Mas se não tivesse havido dois ou três visionários não sei como teria sido. Sei que a minha geração passou a ter uma alternativa sem ter que a procurar lá fora.

Recorda-se como o conheceu?
O Manel? No Frágil. Tinha um lugar onde se sentava e estava. Todos nós, miúdos com 17, 18 anos, gostávamos de o ir cumprimentar, eu própria fazia isso. Ele às vezes também estava à porta. Conhecíamo-nos quase todos, metíamos conversa. Ele era o anfitrião e queria conhecer todos um pouco. Quem estava ligado aos poucos vínculos de moda que havia na cidade, como o Tenente e o Mário e a Eduarda, acabava por também ser o rosto da casa dessas pessoas. Provavelmente ganhei essa collage que vem dos outros.

Há uma altura que tem três ocupações diárias, já nos anos 90.
Ui. Estou no Tenente de manhã, de tarde tenho Ar.Co e faço Frágil à noite. Era muita coisa. E ainda fazia o styling e produção de imagem de uma série de bandas portuguesas, que comecei aos 22. A minha geração aproxima-se de revistas como a Marie Claire, a Kapa, a Blitz, da fotografia da Inês Gonçalves. Enquanto eu me aproximo da música e trabalho muito com os Delfins. Eu e o Ricardo Vasconcelos, que também foi porteiro do Frágil, trabalhámos sete anos com eles. Depois mais tarde, Rádio Macau, Gift, . Não se fazia videoclips em Portugal no começo.

O próprio conceito de styling…
Nem se sabia o que era! Ainda nem havia Zaras, só trabalho de nicho, coisas de atelier de costura. Lembro-me que fui a Londres comprar roupa para os Delfins. Lisboa não tinha nada. Não conseguia fazer um guarda roupa de rock star na cidade. Voltamos ao mesmo, se uns começam na música, os outros todos querem, e lá há a tal collage. A meio dos anos 90 vivia-se muito bem, a estrutura económica era outra, apostava-se no trabalho de autor. As pessoas não se importavam de investir no glamour.

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Mitificamos muito os anos 80, mas os 90 foram talvez mais decisivos, por trazerem esse desafogo?
Sim, sim. A grande viragem é feita nos anos 90. Há o tal burburinho ainda em finais de 80 com as Manobras, ou quando fomos buscar o Variações, mas não se compara. É quando a minha geração tem 23, 25 anos. Na altura, pelo facto de não haver redes sociais, a nossa curiosidade era feita na busca. A rede social leva-nos a procurar dentro daquilo que é o objeto da rede social. A nossa biblioteca era a rua, tínhamos que sair, que viajar. Ìamos ao museu, à galeria, todos estes meetings eram a biblioteca que enriquecia o nosso background, era isto a nossa cultura, absorvíamos tudo. Hoje vai-se ao google. Há quem diga que as novas gerações têm imensa curiosidade mas eu acho que não. Querem as grandes universidades, que lhes dão curriculum, mas falta-lhes bagagem de aprendizagem; querem casar aos 22 e isso foi a sua grande festa. Nós tínhamos que ir à rua, queríamos muito ir viajar.

Há todo um contexto de terem acabado de sair de uma ditadura.
Isso mesmo. Hoje acham que qualquer coisa é too much. “Ai, a mãe vai pôr esses brincos?” Ou então é logo o fascínio ao contrário, querem ter a última carteira da Vuitton, ou que a Rihanna usou; o seu statement é esse, não tem a ver com a curiosidade da busca. A nossa geração só pensava em fazer diferente. Podíamos seguir o Prince ou o Bowie mas cada um queria ter a sua própria imagem, o seu statement era demarcar-se. Mais uma vez, o português é pouco pespineta, a sua cultura continua a ser muito a estrutura familiar, as elites, se aquilo sai dali têm logo muito medo. O meu pai costumava dizer “estás-lhe no sangue”. Somos os moderados da ponta da península. Não lemos com atenção o Eça de Queiroz, continuamos a esticar tapetes vermelhos aos estrangeiros. Também precisamos, é verdade.

Para quem tem uma loja aberta, convém que aqui andem.
Tal e qual, temos uma estrutura débil, somos um país pequeno, vivemos do turismo. O sol é o nosso cartão de visita. Precisamos disso, é verdade.

Usou essa imagem dos brincos. Nasceu em 1965, cultiva desde sempre um estilo singular, continuam a olhá-la na rua com estranheza?
Ah, sim, sim. Os portugueses acham que estou sempre super bem vestida para as dez da manhã e que vou sair à noite. As pessoas arranjam-se, claro, mas ainda não é…

"O Manel [Reis] tinha uma coisa, tinha que ser ao olhar dele, e deixar lhe o jogo todo aberto para poder fazer à sua maneira. Se havia muitos entraves, se tinha que ter a imagem a ou b, a obrigação do patrocinador, ele recusava-se a fazer. Ele queria sempre fazer trabalho de autor"

Ainda se arroja pouco e reservamos a extravagância para os momentos especiais?
Isso mesmo, acham que é sempre tudo too much. Esse lado de você se arranjar, de pôr uns brincos compridos brilhantes até ao ombro, porque faz parte da sua natureza ou porque trabalha na moda, isso parece que só faz statement se for sair à noite ou tiver um evento. Aqui no Príncipe Real, um português pode achar que é uma graça, mas um estrangeiro passa e é capaz de dizer “I love your look!”.

Arriscaria dizer que nunca ligou muito ao que os outros pensam. 
Não, nunca. Já sou assim há tantos anos que nem consigo imaginar. Com o Tenente estava a receber pessoas, tinha que ter uma imagem. Depois como RP ou à porta do Frágil tinha que me preocupar com a imagem, estava a receber as pessoas, acho que são boas energias, é uma forma de valorização da minha imagem, também como mulher. É uma pena que as pessoas às vezes não percebam isso.

Como refere, a imagem também era essencial à porta do Frágil. Era mais conhecida por barrar clientes, como se diz na gíria, ou deixar entrar?
[risos] As sextas e os sábados eram sempre complicados, o Frágil era pequeno. Clientes muito alterados também não entravam. Tinha que ser muito disciplinada. E as pessoas tinham imensa curiosidade, queriam fazer a sua tentativa de entrar. O Frágil já tinha um vínculo com o meio muito arty, penso que por vezes havia a provocação; a pessoa sabia que não pertencia àquele meio mas tinha curiosidade de conhecer… A palavra barrar é engraçada, mas de facto era recusada a entrada. Também acho que se fosse ao Coconuts, a Cascais, me acontecia o mesmo. As coisas na verdade têm leituras.

Cada tribo no seu pouso?
Se ia ao Coconuts não ia ao Frágil, até porque este tinha outra conotação. Mas claro que havia o fascínio. Tenho alguns episódios mas são tão pessoais, da época, que preferia não contar. Mas chegaram-me a escrever cartas, zangadas.

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Há alguém que não lhe fale até hoje?
Isso não. Não levava nada a peito mas tinha episódios engraçados. Lembro-me de estar a descer o Chiado e apontarem-me o dedo: “Tu não me deixaste entrar no Frágil!” Eu ficava assarapantada, sem memória, mas tentava dizer que com certeza estava cheio, que era sábado. E para os casos mais conflituosos à porta tínhamos o Alfredo, o segurança, que protegia nesses momentos mais assustadores. Também nunca ouve daqueles casos como houve com o Kremlin ou o Alcântara. O Alfredo era um personagem do Bairro Alto, amortizava.

E momentos que recorde especialmente já na fase Lux/Bica do Sapato?
Há imensas coisas maravilhosas, o Prince vir tocar ao Lux, o Malkovich vir abrir a casa, e estar na Bica do Sapato. Para a cidade na altura cria dinâmicas muito curiosas, torna-se mais cosmopolita. Políticos, presidentes, frequentavam a Bica do Sapato. As pessoas gostavam de ir jantar à Bica do Sapato porque achavam que podiam ver algum dos nossos ministros, ou presidentes como o Mário Soares.

Voltamos de novo a uma Lisboa onde o cenário da restauração estava longe de ser o mais cosmopolita.
Tal e qual. Os cargos diplomáticos que passavam por Lisboa jantavam ali, o Ronaldo. Todo o Papa Açorda e a Bica são os cartões de visita, todo o décor já na época era um grande cartão de visita. Há uma certa society, eram os locais onde se sentiam protegidos. Uma das coisas boas da cultura portuguesa, pelo nosso estado reservado, é sabermos ser educados com as figuras públicas. O português não se levanta e não incomoda a pessoa, como o americano. Via isso na Bica, mesmo com o Prince, não havia avalanche de autógrafos. A Madonna viveu cá e nunca vimos grandes manifestações na Comporta ou a meio de um jantar. Eu que venho desse lado de RP noto isso. Uma ou outra pessoa podia ir cumprimentar o Malkovich, na noite de abertura, mas ele não era a atração da noite, isso era o objeto da abertura, aqueles três andares. Aquilo era um grande monumento da noite, nem lhe quero chamar discoteca.

Ainda frequenta?
Ah, pouco. Mas pouco há poucos anos, talvez de há cinco anos para cá. Também é o cansaço. Na pós pandemia achei que devia ir, gosto, mas acabo por fazer outras coisas. E acho que deixei mais de ir depois de o Manel falecer. Nós íamos la para visitar o Manel, jantar com ele, ficar a falar com ele. Isso também morreu.

Recorda-se das últimas conversas?
Sim, era um amigo, vivia aqui no Príncipe real, era capaz de parar o carro e vir cá dar um beijinho.

Como é que via este bairro, imaginava este boom?
Acho que seria capaz de criar todas as dinâmicas possíveis. Na altura a equipa do Eastbank até lhe propôs um projeto, com a Embaixada. Algo parecido ao que fez junto ao rio, com aquele conjunto de armazéns, fazer aqui algo muito trendy, mas depois não lhe deram a liberdade total, e se não lhe dessem a liberdade total ele não fazia. O Manel tinha uma coisa, tinha que ser ao olhar dele, e deixar lhe o jogo todo aberto para poder fazer à sua maneira. Se havia muitos entraves, se tinha que ter a imagem a ou b, a obrigação do patrocinador, ele recusava-se a fazer. Ele queria sempre fazer trabalho de autor. E depois com certa idade a pessoa já não faz só porque os outros querem.

É o espírito que também faz por seguir aqui na loja?
Sim, sim, quando me dizem para fazer mais para esquerda ou direita que até podia ser mais comercial…. Há uma coisa engraçada: no Lux quase todos éramos leões de signos. O Manel, eu, muitos Djs, há ali muito fogo, uma conjuntura curiosa. Têm muito esta coisa de não gostar de ver cortada a sua liberdade, uma grande alma própria, e não se sabem vender. E depois outra coisa que o Manel também tinha e que falámos quando arrancou a conversa: isto tem que ser feito rápido. Se dissesse ao Manel que era para fazer um projeto a um ano… não conseguia. Eu também, quando trabalhei em projetos como a ModaLisboa, quando me pediam coisas muito a la longue, dizia sempre: eu sei lá se estou viva daqui a um ano. É para pôr de pé? Vamos criar.

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