O coordenador do PS na comissão parlamentar de Orçamento e Finanças justifica com a “mudança do contexto político” a alteração de posição quanto ao aumento do Imposto Único de Circulação (IUC). Miguel Cabrita diz que o PS “não é autista” e que desde o início “foram chegando ecos da preocupação que estava a surgir na sociedade”.
Para o deputado socialista e ex-secretário de Estado do Emprego este Orçamento do Estado pode servir a qualquer um dos futuros líderes do PS e lembra até a “tradição” de não apresentar orçamentos retificativos, que “deve ser preservada”. Quanto ao convite a Mário Centeno, sem discutir o nome, reconhece que é uma figura “muito acima de qualquer ligação ao PS, não é sequer militante partido, é alguém credível internacionalmente”.
Sem tomar ainda uma posição pública sobre o sucessor de António Costa, Miguel Cabrita critica a escolha de eleições antecipadas, ao dizer que “pesados os prós e os contras das várias decisões creio que para o país e para os portugueses, a ideia de estabilidade é uma ideia que deveria ser preservada”. O deputado socialista acrescenta que “teria sido preferível que as coisas tivessem acontecido de outra maneira a respeito do modo como as coisas foram colocadas na opinião pública” sobre a operação que envolve o primeiro-ministro.
[Ouça aqui o Sofá do Parlamento com o deputado Miguel Cabrita]
“O IUC é uma medida justificada, nós não temos dúvidas disso”. Sabe quem é que disse esta frase há nove dias?
Provavelmente fui eu e posso perfeitamente repeti-la. A medida tinha um objetivo muito claro de tentar harmonizar do ponto de vista fiscal o tratamento dos diferentes veículos, de diferentes idades e com diferentes consequências ambientais. No entanto, e poderia também ter pegado noutras frases que eu teria dito há nove dias e noutras ocasiões. O PS sempre disse que ia avaliar a medida em função do debate público que se gerou, dos argumentos que foram aduzidos e também do debate que foi decorrendo aqui no próprio Parlamento. Os partidos não podem ser autistas. O que o grupo parlamentar do PS fez foi exatamente aquilo que tinha dito que ia fazer: avaliar as opções em função do debate, em relação ao IUC como em relação a qualquer outra matéria do Orçamento de Estado. Quanto ao IUC, o debate ganhou uma proporção que diria inesperada, até em relação à dimensão que a proposta tinha, porque estamos a falar do Orçamento do Estado e o IUC é, felizmente, uma pequena parcela desta equação.
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Quando usam uma grande parte da argumentação da oposição para pôr fim a esta medida, isso é sinal de recuo do PS?
Não diria que houve um recuo do PS. Houve uma ponderação daquilo que foi o debate público nesta matéria. O debate sobre o IUC, para alguns partidos quase parecia substituir o debate do próprio orçamento, sinal de que havia partidos que não queriam discutir o orçamento, mas o PS também não ignora o clamor social que se instalou. Além disso, existiu uma questão crítica que penso que qualquer partido responsável tem que ter em conta: o quadro político em que nos movimentamos mudou de maneira muito inesperada nas últimas semanas. Vivemos neste momento um clima de crise política que foi induzida por fatores externos inesperados e vamos ter eleições dentro de pouco tempo. Devo aliás dizer que este é um cenário que tem consequências graves para o país e, portanto, espero que não venhamos todos a pagar o preço desta incerteza e desta crise que foi criada. Não havia condições políticas para, neste momento, manter uma medida que tem um objetivo de longo prazo e gradativo. Vale ainda a pena dizer que sempre houve um travão ao aumento e que o PS disse que estaria aberto a alterações.
A bancada discordou desde o início da forma como a medida estava a ser desenhada?
Uma vantagem de um grande partido plural como o PS é que reflete muito a sociedade portuguesa. Temos deputados de todos os círculos eleitorais, temos muitas ligações à sociedade civil e, portanto, no grupo parlamentar nós tivemos desde muito cedo um pouco o eco daquela que era a preocupação que estava a surgir na sociedade portuguesa sobre esta questão e até de alguma incompreensão que poderia existir acerca dos objetivos da medida. O grupo parlamentar fez aquilo que sempre disse que estaria aberto a fazer, que era ponderar alterações e neste momento em concreto e neste contexto político aquilo que nos pareceu mais sensato foi, simplesmente, eliminar esta alteração mais aprofundada ao IUC. Esta é a atitude responsável por contraponto a outros partidos que simplesmente queriam revogar esta proposta. O PS vai tratar o IUC como qualquer outro imposto e fazer uma atualização como qualquer outro imposto.
O PSD avisou que depois de marcadas as eleições o PS podia impor aqui algumas medidas mais eleitoralistas, isto é dar razão à oposição?
Não. Medidas eleitoralistas são aquelas que o PSD tem proposto, desde logo acabar simplesmente com o IUC. O PSD passou de ser um partido com preocupações com os impostos para as empresas para passar a ser um partido com preocupações súbitas com a questão dos rendimentos. O PSD passou a ser um partido que aparentemente despreza o equilíbrio orçamental, porque ao mesmo tempo que diz que aumentaram os impostos indiretos, quer fazer muito mais cedências às reivindicações de todo o tipo de diferentes classes profissionais, sem nenhuma preocupação com a equidade e com as contas públicas. Verdadeiramente eleitoralismo é aquilo que o PSD tem feito, perdendo o discurso que gostaria de fazer, tem embarcado em todas as reivindicações e em promessas eleitorais que não respeitam aquela que é a tradição política do PPD/PSD.
Este é um orçamento que pode ter um ciclo muito curto e ser alvo de um retificativo a partir de abril. Isso não fragiliza este debate e este documento?
Não, aquilo que é da maior importância — e é nisso que o PS está focado — é em garantir ao país as condições de estabilidade e de confiança que ao longo de oito anos António Costa e os seus governos conseguiram dar. Temos uma crise política inesperada, diria que indesejada pela maioria da sociedade portuguesa, embora acredite que alguns partidos políticos tenham ficado contentes com esta janela de oportunidade. Muita coisa mudou nestas últimas semanas, mas há uma coisa que não mudou, que são os resultados económicos de 2023 e as previsões para 2024, sem negar as dificuldades que evidentemente ainda existem. O PS está focado em aprovar o melhor orçamento possível, que aprofunde esta trajetória e que dará melhores condições ao próximo Governo, que vai sair de eleições e que eu espero que seja um Governo do PS.
E se for do PS, este é um orçamento que dá para todo o ano de 2024?
Estou convencido que sim. Caberá, como é evidente, à futura liderança do PS e ao futuro Governo tomar essas decisões mas eu gostaria de recordar que ao longo destes oito anos, tirando no quadro da pandemia, não houve necessidade de fazer nenhuma correção orçamental significativa, nenhum orçamento retificativo e acho que esta tradição de contas certas e esta capacidade de ter resultados, com estabilidade e confiança é uma marca que o PS deve preservar. Para além disso, este orçamento dá margem a um Governo para poder, dentro do quadro orçamental que está a ser aprovado e cuja solidez é reconhecida por todos, governar neste quadro orçamental, sem prejuízo das opções de política, que um Governo novo empossado terá legitimidade para fazer.
Com eleições marcadas, o PS está mais fechado a aceitar propostas da oposição porque há oportunidade de apresentá-las ao país em breve?
Antes pelo contrário, um traço distintivo desta maioria absoluta do PS e com um cunho muito forte também da liderança do Eurico Brilhante Dias, foi apoiarmos devidamente os orçamentos da maioria mas com capacidade de o melhorar, quer com propostas do PS quer sobretudo com propostas da oposição. Todos os anos temos aprovado mais propostas da oposição do que aquelas que o próprio PS apresenta para melhorar o orçamento e é sempre importante lembrar que nestes dois anos aprovámos mais propostas da oposição do que o último Governo de direita, liderado então aqui no Parlamento pelo Luís Montenegro. O PS tem esse crédito, construiu esse capital e não pretende neste último orçamento deixá-lo cair.
Dissolução e a hipótese Mário Centeno. “A estabilidade é uma ideia que deveria ser preservada e hoje não estaríamos a ter esta conversa sobre eleições antecipadas”
O PS procura já ir olhando para o futuro. Há um colega de bancada seu que é candidato, falo de Pedro Nuno Santos. É o melhor candidato para que o PS possa vencer as eleições em março?
Não gostaria de numa entrevista enquanto coordenador da Comissão de Orçamento e Finanças do PS tomar posição na eleição interna, coisa que farei em breve. Ambos os candidatos têm muito boas condições para se apresentar ao país como secretários-gerais do PS e como candidatos a primeiro-ministro. Aliás, como já tem sido sublinhado, o PS tem um conjunto de quadros que felizmente permite ter essa possibilidade de escolher entre diferentes pessoas, com experiência governativa, com credibilidade, com combatividade, com solidez do ponto de vista das suas ideias e do seu discurso. Sendo o PS um partido plural, este quadro de eleição e de disputa interna é absolutamente natural e que tenho a certeza que vai resultar num PS mais forte, clarificando qual é a pessoa em melhores condições neste momento para enfrentar um desafio que é particularmente exigente, tendo em conta a crise que foi desencadeada.
Teria preferido a continuar com o Mário Centeno como primeiro-ministro de um novo governo do PS?
Independentemente dos nomes, creio que teria sido muito positivo para o país que não se tivesse desperdiçado algo que muito poucos países na história têm, que é um quadro de estabilidade política, de maioria absoluta parlamentar que suporta um governo, que foi sufragado há menos de dois anos nas urnas. Tendo em conta tudo aquilo que sabemos hoje sobre os eventos que precipitaram estes desenvolvimentos não tenho dúvidas que nestas circunstâncias seria muito preferível estarmos a olhar para o ano de 2024 com um quadro de estabilidade e com solidez ao invés desta incerteza que se instalou.
Mas já invocou aqui o lugar de coordenador da bancada e nesse sentido pode dar um sinal se Mário Centeno seria capaz de garantir essa estabilidade em conjunto com a bancada maioritária?
Tal como em relação à liderança do PS, felizmente havia várias figuras num espaço até mais amplo do que do PS. A figura do Mário Centeno está hoje muito acima de qualquer ligação ao PS, não é sequer militante partido, é alguém credível internacionalmente, é governador do Banco de Portugal. Havia um conjunto de personalidades que poderia perfeitamente assegurar esta ideia de estabilidade num momento que era difícil. Reforço a opinião de que, à medida que vamos tendo os elementos e os dados que vão sendo conhecidos, teria sido francamente preferível que o país não tivesse sido empurrado para uma situação de instabilidade e de eleições antecipadas que do ponto de vista das condições da estabilidade política, do apoio parlamentar e do projeto político, que é mais importante do que a figura A ou a figura B, estavam asseguradas. Infelizmente, e aqui não é só para o PS, é para os portugueses, vamos ter um cenário de arranque de 2024 muito diferente daquele que estávamos a conseguir ter.
Mas houve uma precipitação por parte do Presidente da República ao demitir o governo e dissolver a Assembleia?
Não consigo falar em precipitação, não consigo nem adjetivar, nem utilizar nenhum substantivo. Não tenho é dúvidas que a decisão de assegurar a estabilidade política ao país era uma das opções. Pesados os prós e os contras das várias decisões, entre essa estabilidade política e avançar de imediato para uma dissolução do Parlamento e para eleições antecipadas, creio que para o país e para os portugueses, a ideia de estabilidade é uma ideia que deveria ser preservada e portanto estaríamos hoje a ter esta conversa, não sobre eleições antecipadas, não sobre possíveis nomes que vão ocupar o cargo A ou o cargo B, mas a discutir aquilo que interessa verdadeiramente aos portugueses, que é o trajeto que temos feito e as condições que teremos para 2024.
DEFESA DA HONRA
Aquilo que aconteceu à volta de António Costa com Vítor Escária e Diogo Lacerda Machado não era motivo suficiente para o primeiro-ministro pedir a demissão?
Respeito inteiramente a decisão que foi tomada por António Costa. É uma decisão também pessoal, que tomou entendendo as condições e ponderando as condições em que as questões foram colocadas de maneira, como digo, talvez precipitada por parte de quem desencadeou estes acontecimentos. Preferia que estivéssemos num outro quadro, mas foi uma decisão que cabe-nos respeitar e todos compreendemos. Ainda assim, também sabemos que teria sido preferível que as coisas tivessem acontecido de outra maneira, não no que diz respeito à decisão do primeiro-ministro, mas a respeito do modo como as coisas foram colocadas na opinião pública, que convoca uma reflexão sobre o modo como a justiça opera e se relaciona com os poderes políticos.
Mas teria existido maneira de preservar a autoridade do primeiro-ministro sem uma demissão?
À luz do que sabemos hoje, dificilmente essa não seria a situação. O que se foi sabendo dos desenvolvimentos que existiram fizeram com que em três ou quatro dias aquilo que foi colocado de uma certa maneira na opinião pública e na comunicação social se tivesse esboroado significativamente, em particular no que diz respeito à figura do primeiro-ministro. Penso que todos os portugueses reconhecem que, independentemente das diferenças políticas, têm tido desde 2015 um trajeto de seriedade, de reformas, de trabalho, com resultados e com uma estratégia que funcionou e que tem resultado para o país e é sobretudo por isso que os atores políticos e em particular quem lidera os destinos do país deve ser avaliado.
INTERPELAÇÃO À MESA
Nos corredores do Parlamento e nos sofás que existem por estes corredores, com quem é que costuma trocar impressões ou ter conversas entre os trabalhos parlamentares?
Sobretudo nos corredores, dos sofás confesso que sou pouco utilizador, não quero dizer que seja com isto que trabalho mais ou menos do que ninguém, quer dizer que simplesmente é mesmo pouco habitual estar sentado ali nos sofás dos corredores. Nos corredores, falo com muita gente, sobretudo com colegas da bancada, que felizmente é numerosa, plural, com pessoas com experiências muito diferentes, de todo o país e portanto é sempre muito revigorante ter trocas de impressão com os deputados, não só do PS, mas sobretudo do PS, como é normal.
E quando quer ter uma conversa mais resguardada aqui no Palácio de São Bento, tem algum sítio que escolhe para não ser ouvido?
O Parlamento tem uma característica, que é muito interessante para quem já cá está e um pouco desafiante para quem não conhece tão bem, é que que há muitos espaços e os próprios corredores, alguns são mais movimentados, mas há outros que são menos movimentados. Entre os corredores com menor tráfego de deputados e de outros intervenientes ou o gabinete, enfim, há sempre algum espaço onde possamos conversar com mais reserva.