Ao longo do último ano assistimos à ascensão de um novo Rei na Dinamarca, ao juramento da Constituição da herdeira do trono de Espanha, à coroação do novo soberano britânico e à celebração do centenário do “príncipe construtor” do Mónaco. Oportunidades para ver as famílias reais reunidas e no seu melhor. Contudo, todas estas fotografias de família ficaram manchadas por histórias que se tornaram incómodas, que passaram a escândalos e acabaram por acrescentar capítulos de telenovela às seculares histórias destas dinastias.
Mas ao contrário de tempos passados, em que dos escândalos sobravam documentos encerrados em torres ou lendas de época, as polémicas de hoje dão a volta ao mundo nas redes sociais em segundos e ficam eternizadas na comunicação social. Onde começam os problemas e quem pode acabar com eles? Será que pelo caminho abalam os alicerces das monarquias ou eles aprenderam a resistir com o tempo? A tradição e a contemporaneidade conseguem conviver juntas? Depois de muito ler e escrever sobre os protagonistas das casas reais, tanto nos seus momentos de esplendor como de pudor, pedimos ajuda a verdadeiros especialistas em realeza para perceber até onde podem os escândalos afetar, atualmente, uma monarquia em vigor.
Era uma vez… a realeza do século XXI
O Reino Unido vive por estes dias um drama mediático que já tem nome próprio, o “Kate Gate”. A princesa de Gales estava de baixa médica até à Páscoa, por causa de uma cirurgia abdominal a que foi submetida em meados de janeiro, e anunciou agora que a sua situação clínica se complicou e está a fazer tratamentos de quimioterapia. Mas o vazio que a sua ausência provocou ao longo de três meses foi ocupado por um enredo de teorias da conspiração que atingiram proporções internacionais. O Rei, que esteve décadas à espera da sua vez de chegar ao trono, ocupava o lugar há meses quando divulgou que padece de um cancro. O príncipe William afastou-se para cuidar da família e coube às eficientes septuagenárias princesa Ana e rainha Camila conduzirem uma máquina real, que nunca pára. Se Peter Morgan, o criador da série “The Crown”, quiser alguma vez acrescentar este caso numa nova temporada talvez precise da ajuda de autores especializados em espionagem.
Estaremos perante uma crise na casa real britânica? Adélaïde de Clermont-Tonnerre é chefe de redação da revista Point de Vue, uma autoridade editorial no que aos temas da realeza diz respeito, e dá uma ajuda com os seus conhecimentos para contextualizar e analisar a gravidade destas situações. Considera que o momento dos Windsor será o caso mais complicado entre as famílias reais referidas no início do texto, “mas os erros de comunicação não ofuscam uma popularidade bem estabelecida na população britânica, e um fascínio global cuja extensão vimos recentemente desde que Kate esteve de licença médica”. A jornalista lembra que o famoso “annus horribilis” de Isabel II, em 1992, “foi muito mais agitado”, com um incêndio, separações e escândalos na família.
Em Espanha o fim de ano da rainha Letizia foi difícil, com o antigo cunhado Jaime del Burgo a acusá-la de infidelidade ao marido em sucessivas publicações na rede social X e num livro do jornalista Jaime Peñafiel, que deixou a história eternizada em papel. A imprensa espanhola fez silêncio, mas tal não impediu que a história se espalhasse por outros países. Veio a saber-se mais tarde que esta polémica já tinha deixado uma sombra no dia do 18º aniversário da princesa Leonor, em que também fez o juramento da Constituição, um acontecimento de grande solenidade que pôs o país de olhos postos na família real, em especial na herdeira do trono. “O Rei Felipe, a Rainha, as suas filhas são respeitadas e o seu trabalho reconhecido. Estamos num momento de calma em comparação com os grandes escândalos do caso Noos e os erros do rei emérito Juan Carlos. Quanto à geração anterior, viveram completamente no exílio…”, lembra Clermont-Tonnerre.
Na Dinamarca o final do ano 2023 da família real também foi agitado. Em novembro a divulgação de umas fotografias do então príncipe herdeiro Frederik a passear por Madrid com uma socialite mexicana ligada à aristocracia espanhola ganhou dimensão de intriga internacional e até levou a casa real dinamarquesa a reagir. Quando a polémica parecia ter acalmado, a Rainha Margarida anunciou a sua abdicação nas últimas horas do ano e agendou para 14 de janeiro a ascensão do novo Rei. “A rainha Margrethe era muito popular e a sua abdicação até criou um verdadeiro choque, apesar dos desentendimentos com o seu filho mais novo, Joachim”, analisa a jornalista da Point de Vue, lembrando que a soberana causou em 2022 um drama familiar ao retirar os títulos de príncipes aos netos do lado do seu filho mais novo. “A transição com o seu filho Frederik está a correr, no geral, bem e se há rumores de infidelidade do Rei, até à data, nada foi provado e a Rainha Mary também é muito respeitada pelo seu trabalho.”
Falta o Mónaco, onde as teorias de conspiração à volta da princesa Charlene até nos podem lembrar o atual caso de Kate Middleton. A mulher do príncipe Alberto esteve retida na África do Sul por motivos de saúde durante vários meses e quando, finalmente, regressou ao principado foi protagonista de uma série de rumores que viram no seu afastamento uma potencial crise familiar. Mais recentemente, duas investigações revelaram problemas no círculo muito próximo do soberano. “O Mónaco enfrenta as dificuldades mais graves depois dos escândalos em torno dos ficheiros Rocher e agora da investigação liderada pela Bloomberg, mas o príncipe reagiu de forma muito direta, demitindo a sua antiga equipa e abordando o assunto de frente.”
A monarquia ainda é o que era?
Na base de todas estas questões está o interesse que as figuras da realeza geram. Afinal, porque é que os seus dramas pessoais dão origem a tantos títulos na imprensa, discussões nas redes sociais e proporcionam horas de leitura aos cidadãos plebeus? “A realeza continua a fascinar pelo seu elemento de mistério, mas também com um sentimento oposto: a familiaridade que nos inspiram. Vimo-los nascer, crescer, apaixonar, amar, separar, errar, atualizar, é uma espécie de novela contínua”, explica a editora da Point de Vue. “São também marcos, a personificação da história de um país e contribuem para o sentimento de pertença a uma comunidade, a um terreno comum.”
Há ainda que juntar toda a pompa das tradições, cerimónias, roupas e joias, que são já a parte inalcançável para a maioria do público e que contribuem para a sacralização destas pessoas como símbolos de uma sociedade. Nesta revista francesa, a editora conta-nos que as famílias reais preferidas do público são a monegasca pela proximidade, a britânica, “porque são a família real mais famosa do mundo” e os franceses têm um carinho especial pela Rainha Isabel II e pelo Rei Carlos III, e por fim a família real sueca, porque diz que há uma ligação entre França e aquela monarquia.
Hoje, na sua maioria, as famílias reais não têm poder executivo, mas têm um papel unificador da sua nação e, sobretudo, mediático. A monarquia enquanto instituição junta-se a causas e nunca a políticas, e o serviço público é a prioridade. Há um esforço notório das mais recentes gerações de membros da realeza de se aproximarem do seu povo, mostrarem que, apesar do privilégio, mantêm nas suas vidas elementos nos quais os súbditos se podem projetar. Vemo-los transportarem os filhos bebés, levarem-nos à escola, passear em família e no caso das senhoras há a transformadora questão de usarem roupa de marcas low cost que podem facilmente ser adquiridas.
Já vimos as princesas e os príncipes virem do povo, usarem calças de ganga e até tirarem as suas próprias fotografias. Terá a proximidade com os súbditos acabado com o encanto? “Há uma parte do mistério que acabou, mas quem deu cabo do mistério foi a Lady Di”, explica o ex-embaixador José de Bouza Serrano ao Observador, porque foi ela quem revelou o que se passava dentro do núcleo fechado da casa real. Contudo, garante que “há um interesse anormal sobre essas pessoas, o poder seduz”, diz o ex-diplomata que trabalhou em países com monarquias e conviveu com inúmeras figuras reais.
“A Dinamarca está bem porque passou o testemunho para uma geração nova” e o país “gosta do seu Rei novo”. Bouza Serrano acredita que o escândalo que ameaçou colocar em Frederik o rótulo de “adúltero”, para os súbditos está esquecido. “Os dinamarqueses não se preocupam. Os comentadores internacionais continuaram, mas para os dinamarqueses não foi relevante.” A Suécia, garante, também está feliz com o seu Rei e este está feliz no seu papel, que não terá grande poder e será sobretudo representativo, mas a família real goza de grande popularidade.
Espanha é um caso mais complicado, a agitação política do passado afastou a família real e entregou o poder a uma ditadura. Quando Juan Carlos ajudou a construir a nova era democrática fez questão de garantir que o seu país era um reino, mas nos quase 10 anos de reinado de Felipe VI a contestação à monarquia tem estado sempre presente. A família real, composta pelos reis e pelas duas filhas, tem feito um enorme esforço por se afastar das polémicas dos familiares e mostrar que está próxima dos espanhóis e dedicada ao serviço público.
No Mónaco, Bouza Serrano aponta o facto de a princesa Charlene não falar francês como um dos elementos que dificultou a sua adaptação à vida no principado. “A língua é uma coisa muito importante. [Antigamente] as pessoas reais eram treinadas para reinar em qualquer reino”, lembra o diplomata. “Nisso, tanto Mary [da Dinamarca] como Máxima [dos Países Baixos] foram brilhantes, a primeira coisa que fizeram foi aprender línguas complicadíssimas. Foi inteligente, elas viram que era um meio de serem aceites.”
Os contadores de histórias
Numa instituição com tantas regras como a monarquia a comunicação é fundamental. E a cronologia de quase dois meses do mistério de Kate Middleton exemplifica a importância de uma estratégia de comunicação. Já a pergunta “Onde está Kate?” circulava à velocidade dos cliques pela internet quando os príncipes de Gales tentaram acalmar os ânimos com uma fotografia da princesa com os três filhos partilhada nas redes sociais, para assinalar o Dia da Mãe. A ideia era boa, mas saiu o tiro pela culatra e a imagem veio acrescentar mais um capítulo à já longa lista de teorias da conspiração. Da fotografia alterada digitalmente ao passeio num mercado que levou uma dupla da princesa a manifestar-se, a trama de rumores adensou-se e não se sabe se irá parar, mesmo depois de Kate ter revelado parte do seu diagnóstico.
Enquanto o mundo estava em busca de Kate, o gabinete de comunicação do palácio de Kensington estava em busca de quem pudesse resolver a real embrulhada mediática. A solução não passará por alguém à altura do agente 007, mas sim por alguém com conhecimentos de relações públicas, porque os contadores de histórias já não são só os órgãos de comunicação social. Antes, os gabinetes de comunicação das casas reais lidavam com jornais, mas começaram a ser cada vez mais os meios a que têm de atender, como por exemplo os sites, em constante atualização de notícias, e as redes sociais, onde cada pessoa com um telemóvel em punho é um potencial repórter. Bouza Serrano concorda que os gabinetes de comunicação têm muita influência nas crises que as casas reais atravessam. “O problema é que eles são “his master’s voice”. É muito difícil. Eles têm autoridade, mas o problema é se conseguem convencer os soberanos de que aquele é o melhor caminho.”
Contudo, foi graças a verdadeiros estrategas da comunicação que o então príncipe Carlos conseguiu limpar a imagem de Camila e das infidelidades de ambos, e ainda fazer ultrapassar o efeito negativo do casamento com Diana. Por outro lado, o ex-embaixador lembra que ainda hoje há quem diga que foi um erro o Rei Juan Carlos de Espanha ter pedido desculpa pelo que se passou na caçada de elefantes no Botswana na qual se ficou a saber publicamente do seu caso com Corinna Larsen. E quanto à questão se há crise na própria comunicação, a resposta é clara: “Há, sim, porque entre o secretismo absoluto e o ‘never explain, never complain’ até à divulgação das agendas e tudo o que se faz, tem de haver um meio termo que ainda não conseguiram arranjar”, explica Bouza Serrano e essa parte é apanhada pelas redes sociais e pela especulação dos tablóides.
As próprias casas reais têm hoje as suas contas de Instagram e de Twitter o que lhes permite estarem mais próximas das pessoas e das causas e também controlar melhor as narrativas. Contudo também estão expostas ao fenómeno das fake news e, o falso anúncio da morte do Rei Carlos III por alguns meios russos no início desta semana e na sequência da mais recente eleição de Putin, é a prova. Ainda no campo dos contadores de histórias, além das fake news, Hugo Vickers, um historiador real por terras de Sua Majestade Carlos III, aponta o dedo a “programas como “The Crown” da Netflix” que acusa de criarem “falsas narrativas” e levarem a que as pessoas não se importem se algo é verdadeiro ou falso.
O ar dos tempos e o vendaval que provoca
Voltando à questão que aqui nos trouxe: Estão as monarquias ameaçadas pelas recentes crises? Vickers não considera que as monarquias estejam em risco. “Creio que é algo mais complexo do que isso”, disse ao Observador, “tem mais a ver com a avalanche de redes sociais e a forma irresponsável como as famílias reais são relatadas”. Acredita que “não estão fundamentalmente em risco, contudo por vezes são afetadas.” Biógrafo de diferentes personagens reais, Vickers acha que hoje há mais especulação, e o público é mais exigente: “os membros da realeza não foram sempre tão escrutinados como são hoje, tinham consideravelmente mais privacidade e eram tratados com mais respeito”. O que não significava que não fossem escrutinados, porque o eram, e também não evitava que houvesse escândalos — lembra aquele que será um dos maiores traumas dos britânicos, a abdicação de Eduardo VIII, em 1936.
As guerras na Europa tiveram impacto nas famílias reais. A Primeira Guerra Mundial e, de certa forma, também a Segunda, causaram verdadeiras crises. De facto, algumas delas não resistiram aos regimes autoritários que tomaram conta de alguns países, sobrando hoje apenas uma dezena de casas reinantes no continente. E essas, ao longo da segunda metade do século XX e deste início de século XXI, têm resistido a todo o tipo de crises. “Na verdade, as famílias reais são muito boas a resistir a tempestades”, conclui o historiador.
As crises a que assistimos recentemente nas casas reais europeias “são normais, ou de crescimento ou de encolhimento”, afirma o ex-embaixador Bouza Serrano, que continua com o olhar atento sobre a atualidade internacional. “O problema destas crises é aquela atração, injustificada e incompreensível para muita gente, que as monarquias geram na população. Os Reis, com muito ou com pouco poder, exercem um fascínio enorme, normalmente fora das suas fronteiras. Quando se passa qualquer coisa no seio de uma família real é tudo amplificado.” E se o que conduziu este texto foram as polémicas, acaba por ser o anúncio da princesa de Gales sobre o seu estado de saúde o exemplo que melhor ilustra esta conclusão. As teorias da conspiração sobre o desaparecimento de Kate percorreram o mundo em tempo (e criatividade) recorde, ao ritmo de um toque com as pontas dos dedos. Mas a simplicidade honesta da sua frágil e inspiradora imagem viriam a conseguir algo ainda mais difícil nos tempos que correm, fazer as pessoas pararem para pensar.
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