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Ninguém parece saber muito sobre a colombiana Montañera, exceto, talvez, o facto de ser colombiana e de querer aliviar o seu coração

Ninguém parece saber muito sobre a colombiana Montañera, exceto, talvez, o facto de ser colombiana e de querer aliviar o seu coração

Montañera: a Colômbia cósmica cantada por María Mónica

"A Flor de Piel" não é disco para fazer a festa nem promete ser fenómeno de boca-a-boca. É tradição colombiana embalada pela kora e pela eletrónica ambiental. E é uma dedicatória ao ato da criação.

“Googla”, dizem. “Googla que está tudo no Google” é das respostas que mais ouvimos quando perguntamos “Qual a morada desse restaurante?” ou “Que outros filmes bons recomendas do Kaurismaki?”. “Googla, está tudo no Google”, retorquem, como se fazer uma pergunta simples fosse uma ofensa, uma forma de fazer do outro nosso escravo.

Tudo nice, amigão, eu googlo. E googlando o nome “Montañera” descubro coisas muito interessantes: que é uma comunidade italiana na região de Piemonte; que é o período de engorda dos porcos ibéricos; que é uma marca de presuntos; que é o nome que os espanhóis dão às bicicletas especializadas em pedalar montanha em cima.

“Googla”, dizem. Mas OK, refina-se a buscar e em vez de procurar por “Montañera” experimenta-se “Montañera – A Flor de Piel“. E finalmente eis que surgem resultados, escassos, mas resultados – um par de entrevistas a revistas das quais nunca tinha ouvido falar, duas críticas em jornais ocidentais e um link razoavelmente perturbador com um texto sobre doenças exóticas de pele (não cliquem neste, ou se clicarem vão por vossa conta e risco).

Ninguém parece saber muito sobre a colombiana Montañera, exceto, talvez, o facto de ser colombiana e de querer aliviar o seu coração, como a própria canta em A Flor de Piel, a canção que abre o disco homónimo (o terceiro da artista, depois de Encarnación, de 2017, e Salvadora, de 2020) e que de imediato estabelece as estranhas premissas desta música sem lugar nem época: a voz melancólica e um baixo em fundo, uma kora ascende, e nesse momento é justo pensarmos “mas que raio faz uma kora aqui agora”, mas a kora está ali para tornar este mundo ainda mais onírico e o regresso à terra é feito por via de uma cascata de violinos, enquanto ao redor pequenas bolhas eletrónicas saltitam.

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[o vídeo de “Un Día Voy a Ser Mariposa”:]

No gigantesco Excel em que guardo todos os discos que ouvi e os respetivos sub-géneros, não encontro nada que se assemelhe: talvez se Chavela Vargas tomasse uma caixa de Valiuns e cantasse temas de Helado Negro produzidas pelos Sa-Ra, talvez esse som se assemelhasse a esta estranha mistura de música tradicional, eletrónica narcótica e melancolia folk mas, convenhamos, ninguém vai ler a descrição atrás a pensar “Ah, já topei ao que soa”.

Convém esclarecer isso da “de música tradicional”: a kora não é um instrumento colombiano; as percussões que ouvimos em Santa Mar não soam colombianas; as melodias, no entanto, têm raiz na terra natal de Montañera – que há anos trocou a pátria por Londres e talvez seja essa a marca mais funda de A Flor de Piel: um sentimento de deslocamento, não no sentido de algo a mover-se, mas de algo que está no sítio errado, ou que não se sabe bem em que sítio está – como os instrumentos de cada canção, que era suposto não se aproximarem mas acabam por fazer sentido, quando se reúnem em torno de uma melodia.

María Mónica Gutiérrez (cujo nome artístico é, e isto não deve constituir surpresa, Montañera) foi para Londres fazer um mestrado em música – a estudar os gritos senegaleses, para sermos mais específicos. Quando lá chegou já tinha carreira como cantora profissional, mas uma professora perguntou-lhe se não queria aprender kora e ela disse que sim, que adoraria, e passou um ano a aperfeiçoar.

"A Flor de Piel" é um disco paradoxal: aberto ao mundo e solipsista ao mesmo tempo. Montañera usou instrumentos de várias partes do globo, mas estava a fazer música para si própria, embrenhada no seu prazer em aprender instrumentos novos e no desconforto de uma colombiana “deslocada” em Londres.

A kora, à partida, não tem muito a ver com o universo de Mónica – o espaço que vai da música ambiental à eletrónica experimental. Mas o brilho das cordas da kora possui um encanto celestial, como se a música produzida pelo instrumento ficasse a pairar por cima de nós, e foi essa ligação que Gutiérrez encontrou, ao ponto de começar a integrar a kora na sua música. A primeira canção em que a kora deu por si numa composição de María Mónica foi Me Suelto al Riesgo, que acabou por fazer parte do disco: a kora dá o mote lento, a voz estabelece um clima de melancolia, como uma saudade que avança pé ante pé, e a eletrónica brinca à volta, como que a dizer que nem tudo é tristeza, que há saída para isto. Metais e cordas (e a kora e coros vários) assomam no fim – no fim da tristeza, a mais admirável beleza.

Ao longo dos anos ouvi vários amigos que emigraram dizer que se sentiam deslocados – e sempre me surpreendeu a estranheza e genialidade do termo “deslocado” para descrever a situação. Porque, efetivamente, para emigrar a pessoa teve de se deslocar – mas estar “deslocado” implica estar deslocado em relação a alguma coisa; essa coisa é o país de origem. Estar “deslocado” faz sentido; mas sentir-se “deslocado” é criar um novo sentido para a palavra – como se a pessoa não encaixasse no novo cenário que a rodeia, como se as ruas que percorrem não tivessem lugar no mapa emocional do conforto do emigrado. Como se a pessoa ainda estivesse em transição para algum sítio (a deslocar-se) e não já estabelecida num local que ainda não conhece bem.

A kora dá o mote lento, a voz de Montañera estabelece um clima de melancolia, como uma saudade que avança pé ante pé, e a eletrónica brinca à volta, como que a dizer que nem tudo é tristeza

A Flor de Piel não é apenas um disco de alguém deslocado – é um disco de uma colombiana que foi para Londres estudar música e a música que escolheu é senegalesa, um disco em que todos os elementos parecem estar em trânsito e mesmo a própria melancolia, o sentimento predominante do álbum, parece ter fim. O próprio modus operandi de Montañera estava em mudança: antes da kora, ela começava por iniciar o processo de composição pela voz e só depois apunha a eletrónica e os teclados; aqui começou por partir dos instrumentos.

Nada disto fazia parte do plano inicial da rapariga – era suposto que a sua tese de mestrado debatesse o uso da música e do canto como uma forma de cura social, um tema que lhe era próximo por ter visto a devastação que a guerra civil e a violência generalizada teve sobre a população do seu país. Mas só escolhemos o nosso destino até um certo ponto: podemos dizer que queremos ir até ali; mas uma vez lá chegados não controlamos o efeito que o “ali” tem sobre nós.

Nesse sentido, A Flor de Piel é um disco paradoxal: aberto ao mundo e solipsista ao mesmo tempo. Montañera usou instrumentos de várias partes do globo, mas estava a fazer música para si própria, embrenhada no seu prazer em aprender instrumentos novos e no desconforto que sentia em estar “deslocada” em Londres – a música funcionava como fenómeno de compensação, só que em vez de repetir padrões foi na música que conseguiu arriscar e inovar e tornar-se outra coisa.

[o álbum “A Flor de Piel” na íntegra no Spotify:]

As múltiplas influências vão surgindo pelo disco fora: a região do Caribe marca a espantosa Como una Rama, em que ficamos deslumbrados com a eloquência da voz de María, as canções tradicionais do Pacífico em Santa Mar, que para e arranca ao sabor das percussões; Me Suelto al Riesgo acaba por ser a peça central de A Flor de Piel: uma canção sobre aceitar a mudança, aceitar que podemos ser outra coisa – e assim, A Flor de Piel, que podia ser apenas um disco melancólico de eletrónica ambiental, revela-se como uma pequena joia.

Não é muito provável que vos ocorra passar A Flor de Piel numa festa, embora aqui e ali seja dançável; não apostaria muito dinheiro em que do dia para a noite Montañera se tornasse na nova Rosalía. Isto é o tipo de música que passa de mão em mão, de boca em boca, que se mostra a quem mais se gosta. Isto é o tipo de música que é um ato de amor ao próprio ato de criar; essa é a música que nos acompanha anos fora, mas que não se apresenta a qualquer um, só àqueles em quem mais confiamos.

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