Luís Montenegro está a jogar em todos os tabuleiros e com todos os calendários. Apesar da maioria absoluta de que gozam os socialistas, vai crescendo a convicção na direção social-democrata de que António Costa pode mesmo não resistir até ao final da legislatura. Para muitos no núcleo duro de Montenegro, Fernando Medina é a “chave para abrir o cofre” socialista. Se o ministro das Finanças cair, insistem destacados dirigentes do PSD, a torre de jenga em que assenta o Governo de António Costa não resistirá.
A crescente tensão social, que conheceu na manifestação contra o pacote habitacional o seu pico (até ver), indicia que o ponto de ebulição pode estar próximo. As sondagens, mais pela queda evidente do PS do que pelo crescimento avassalador do PSD (que não existe), apontam nesse mesmo sentido. Os problemas acumulados na Saúde, Educação, Defesa e, sobretudo, na Economia, estão a alimentar o descontentamento e a desgastar o Governo. A desilusão de Marcelo Rebelo de Sousa com a execução do PRR, confirmada em termos duros pelo semanário Expresso, reforça o desgaste entre São Bento e Belém. Mas se é verdade que tudo isto mói, não é menos verdade que não mata o Governo. E é aqui que entra Fernando Medina.
Os “brilharetes” nas contas públicas enquanto a carestia de vida aumenta ameaçam-lhe a popularidade e arrastam o Governo. O possível envolvimento em casos judiciais, tema que entretanto desapareceu da agenda política e mediática mas que promete voltar no futuro, pode ser o empurrão que falta para apear o ministro. Até lá, há um dossiê – a TAP – que queima Medina. Resta saber se o queimará ao ponto de tornar insustentável politicamente a sua continuidade. E, caído Pedro Nuno Santos, é ele o principal alvo do PSD.
Basta ver a primeira reação de Luís Montenegro no dia seguinte às revelações de Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP, no Parlamento. Sem deixar de criticar Pedro Nuno Santos, João Galamba e Ana Catarina Mendes, ou de deixar de exigir a António Costa que viesse dar a cara, o líder social-democrata carregou contra Fernando Medina. “Ficámos a saber que o CFO da TAP tinha e tem contactos com o Ministério das Finanças. Não é crível que isto suceda [sem o seu conhecimento]. Ou então tem um comportamento de tal maneira ligeiro que a sua legitimidade está posta em causa. Quando eu for primeiro-ministro, comportamentos destes não passarão incólumes”, atirou Montenegro.
Apesar desta pressão, a verdade é que, até ao momento, parece não existir a arma fumegante que comprometa diretamente Fernando Medina. Christine Ourmières-Widener, a ainda presidente executiva da TAP, e, sobretudo, Alexandra Reis, a antiga administradora da companhia aérea, disseram várias vezes que o ministro das Finanças não esteve envolvido nem foi informado do processo de rescisão. Pelo contrário: de acordo com os testemunhos que prestaram, o único interlocutor da TAP em todo o processo era mesmo o Ministério então liderado por Pedro Nuno Santos.
Aparentemente, o único elo de ligação entre o ministério de Medina e a TAP é o diretor financeiro da TAP. No Parlamento, Gonçalo Pires garantiu que não teve “conhecimento do valor” da indemnização atribuída a Alexandra Reis – versão que Christine Ourmières-Widener desmentiu, o que vai obrigar, muito provavelmente, a nova audição do CFO da TAP. “Só acredita quem quer que Medina não tivesse sido informado. O ministro das Finanças está cada vez mais diminuído”, insistiu Montenegro. Prova provada de que o PSD vai continuar a insistir na tecla “Medina” mesmo sem provas evidentes de que o ministro omitiu informação.
De resto, os sociais-democratas usaram a audição de Alexandra Reis para escrutinar a suposta relação de proximidade entre a ex-administradora e Stéphanie Sá Silva, mulher de Fernando Medina e, à epoca dos factos, diretora jurídica da TAP – estava de licença de maternidade quando Alexandra Reis foi afastada e a indemnização lhe foi atribuída. A ex-administradora negou alguma fez ter falado com Stéphanie Sá Silva “sobre a saída da TAP” ou “sobre a indemnização”. Aparentemente, foi mais um beco sem saída. Vistas as coisas, têm faltado trunfos ao PSD para atirar a matar. “Fernando Medina está muito fragilizado, mas estão a fazer uma barreira de proteção”, desabafa com o Observador um destacado dirigente social-democrata.
Pedro Nuno pode derrubar redoma que protege Medina
Ainda assim, há uma frase de Alexandre Reis durante essa audição que ficou gravada na memória dos sociais-democratas. Segundo a ex-administradora, quando transitou da NAV para o Ministério de Fernando Medina teve o cuidado de informar Pedro Nuno Santos, que lhe terá dito que já sabia da decisão, desejando-lhe a melhor das sortes. Ora, para os sociais-democratas, Pedro Nuno só saberia desta mudança se já tivesse falado com Fernando Medina. Se falou, não informou o colega de Governo do conturbado processo de saída da Alexandra Reis da TAP? Improvável, suspeita-se no PSD.
Aos olhos da equipa de Montenegro, a comissão parlamentar de inquérito à TAP está a ser “catastrófica” para Pedro Nuno Santos, de quem, insistem no PSD, o obituário político já está praticamente escrito. Restam-lhe, portanto, três opções: ou ensaia um golpe de asa que lhe permita lavar a face e preservar algum capital; ou deita a toalha ao chão e assume todas as responsabilidades políticas, arriscando-se a hipotecar o futuro; ou – e esta é hipótese que mais agrada ao PSD – tenta distribuir responsabilidades e arrastar mais gente consigo – Fernando Medina, leia-se.
Aqui, é preciso puxar a fita. Assim que Pedro Nuno Santos se demitiu, os seus fiéis agarraram-se aos colarinhos de Fernando Medina, como contava o Observador no final de dezembro. À boca pequena, dizia-se que Medina estava tão metido nesta embrulhada como Pedro Nuno Santos e, pior, tinha lavado as mãos como Pilatos. Foi desta ala do PS que começaram a circular nos bastidores as referências ao envolvimento da mulher de Medina em todo o processo e as acusações de traição. Até se acrescentava: Medina, pela forma como se comportou nos idos de dezembro, tinha acabado de perder o carinho que lhe restava no aparelho socialista.
Daí para cá, muita coisa mudou. Medina, por todos os factos conhecidos até à data, pode mesmo não ter sido informado de tudo o que se passava na companhia aérea. E Pedro Nuno Santos veio a assumir publicamente que, afinal, não só tinha acompanhado todo o processo como tinha dado o ‘ok’ por iMessage ao valor de indemnização entregue a Alexandra Reis – o que derruba a tese de que o ministro saíra com a “dignidade” de Jorge Coelho, assumindo responsabilidades que não eram diretamente suas. Por outras palavras: Pedro Nuno Santos está cada vez mais atolado no pântano; Fernando Medina vai-se mantendo, apesar de tudo, à tona.
Passaram-se mais de quatro meses desde o episódio do iMessage e o ex-ministro das Infraestruturas mantém-se em silêncio. Terá, no futuro, oportunidade de dar a conhecer a sua versão dos factos e os sociais-democratas depositam grandes esperanças na possível acareação entre Pedro Nuno Santos e Fernando Medina. Nos bastidores, não é segredo para ninguém que há informação sensível sobre o dossiê TAP a ser alimentada por fontes socialistas ligadas a Pedro Nuno e a Medina. Esse possível ajuste de contas entre os dois putativos candidatos à sucessão de António Costa pode tornar o tema ainda mais tóxico para o Governo socialista. E precipitar tudo o resto.
Marcelo terá dado o sinal: se Medina cair, Costa cai
Não é para menos. Até hoje, ficou gravada na cabeça de alguns elementos da direção do PSD uma notícia divulgada pelo Correio da Manhã e nunca desmentida por Marcelo Rebelo de Sousa: “Presidente da República avisa que Governo cairá se Medina sair”, escrevia aquela publicação. De acordo com o mesmo texto, que não citava qualquer fonte, o Chefe de Estado não colocava de lado a hipótese de demitir o Governo se Fernando Medina fosse forçado a afastar-se.
Na altura, o recado atribuído a Marcelo foi levado a sério por elementos socialistas e entendido como um aviso sério à navegação do PS: o ministro não teria mais oportunidades para causar uma boa primeira impressão. Aliás, na entrevista que deu à RTP, no início de março, o Presidente da República disse-o com praticamente todas as letras: Medina estava na lupa de Belém e ia ser analisado ao detalhe.
“Para ser muito sincero, acho que o Governo tem que ter noção que vai ser, daqui ate ao fim das suas funções, alvo de escrutínio rigorosíssimo. O ministro [das Finanças] é o mais importante do Governo neste momento. Tem de fazer um exercício que é ver nas suas intervenções políticas e não políticas, tudo o que foi o passado, de forma a ver se não há nada suscetível a causar problemas”, avisou na altura, referindo-se, implicitamente, à questão da TAP e às investigações em que Medina se viu envolvido na Câmara Municipal de Lisboa.
O Observador sabe que Marcelo Rebelo de Sousa terá confirmado em sondagens informais – que não são públicas – que Fernando Medina goza de uma larga taxa de rejeição e que uma grande fatia da opinião pública defende o seu afastamento do Governo. Sabendo que a queda do ministro das Finanças pode ser sinónimo de novas eleições, para Marcelo, será tudo uma questão de timing e oportunidade. O Presidente da República não é indiferente ao ar dos tempos e, com essa informação nas mãos, terá ficado municiado com argumentos para, se a realidade assim o ditar, concluir que o Governo não tem mais condições para continuar.
Apesar de tudo, o PSD habituou-se a não contar com a bênção de Marcelo Rebelo de Sousa. Por cada ataque disferido contra o Governo, o Presidente da República faz outros tantos à sua família social-democrata. Desde as pressões nada discretas para que Luís Montenegro se afaste de André Ventura à insistência no regresso de Pedro Passos Coelho, passando pelas referências permanentes à inexistência de uma alternativa ao PS, tudo tem contribuído para a consolidação de uma ideia na São Caetano: o PSD terá de fazer o seu caminho sem Marcelo – ou apesar de Marcelo.
Aliás, a fórmula encontrada por Marcelo para definir um patamar mínimo para considerar a existência de uma maioria alternativa foi considerada no mínimo esdrúxula por muitos dirigentes do PSD. Disse o Presidente da República na já citada entrevista à RTP: “Neste momento, as sondagens mostram que o partido mais importante daquela área está acima do somatório dos outros dois, mas não chega a ter o dobro do somatório dos outros dois. Portanto, isso dá uma alternativa fraca na liderança”.
As contas de Marcelo não passam no teste do histórico mais recente, apontaram vários dirigentes sociais-democratas que assistiram à entrevista de Marcelo a partir da Madeira, onde Luís Montenegro participava nas jornadas interparlamentares do partido. Em 2015, quando António Costa formou a ‘geringonça’, o PS tinha 32%; o “dobro do somatório” de Bloco e PCP ultrapassava os 36% – e a legislatura durou quatro anos. Também por isso, as contas de Marcelo foram mais um balde de água fria nas expectativas do PSD em relação a Marcelo.
Mesmo com todas as cautelas, o núcleo duro de Montenegro vai absorvendo os sinais. Esta quinta-feira, foram dois: ao Expresso, fonte de Belém garantiu que o Presidente da República não mais participará no périplo pelo país do PRR por entender que tudo que de pouco há para ver já está visto; o semanário Nascer do Sol acrescentou que Marcelo está de cabelos em pé com tudo o que tem sido revelado na comissão parlamentar de inquérito e fez saber aos partidos da oposição que isto pode mesmo provocar danos irreparáveis ao Governo de António Costa.
Curiosamente, na já citada entrevista à RTP – a tal da “maioria requentada e cansada” –, Marcelo quase que definiu três condições para dissolver a Assembleia da República: se até ao final de 2023 existir “um panorama desgraçado do ponto de vista da execução do PRR”, uma “desgraçada situação económica” ou uma idêntica desagregação “social”, poderia dar guia de marcha ao Governo.
Não se pode dizer que, aos olhos de Marcelo, estas três condições estejam longe de ser uma realidade. “Se acontecerem coisas neste mundo que são do outro mundo, o Presidente tem o poder de dissolução. Não teria a angústia existencial que teve o Presidente Jorge Sampaio”, ameaçou Marcelo. Resta saber se a comissão de inquérito à TAP ficará ainda mais sobrenatural.
[Já saiu: pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]