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Trabalho de campo da Missão Antropológica e etnológica à Guiné, em Canhabaque (Colecção do Instituto de Investigação Científica Tropical, 25823)
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Trabalho de campo da Missão Antropológica e etnológica à Guiné, em Canhabaque (Colecção do Instituto de Investigação Científica Tropical, 25823)

ULisboa/IICT

Trabalho de campo da Missão Antropológica e etnológica à Guiné, em Canhabaque (Colecção do Instituto de Investigação Científica Tropical, 25823)

ULisboa/IICT

No Padrão dos Descobrimentos há fotografias para debater impérios e colonialismo

A exposição "Visões do Império" vem reforçar a relevância que se reconhece nestes documentos e mostra, de novo, como a fotografia tem um estatuto próprio e diferenciado no estudo da História.

O Padrão dos Descobrimentos, em Belém (Lisboa), acaba de inaugurar mais uma das suas exposições que estão a tornar a sua pequena cave um dos fóruns de debate contemporâneo sobre a aventura dos portugueses “que descobriram o caminho do mar” e a experiência colonial que dela resultou (além de algumas outras dedicadas ao “espírito do lugar” e ao contexto da sua própria construção em 1940). A nave desenhada por Cottinelli Telmo e Leopoldo de Almeida não é, portanto, o ícone supostamente obsoleto e anacrónico que alguns gostariam de ver deitado abaixo, mas também não é uma canoa reversível que percorre incólume os rápidos de arestas aguçadas da grande corrente de politicamente correcto que tomou de assalto boa parte da academia e dos historiadores. Tem, na verdade, o bom senso e a coragem de não desviar o olhar de temas que, à escala global, entraram decisivamente na agenda de um grande número de instituições museológicas e afins, procurando que figuras de reconhecido mérito e autoridade nas matérias em causa cuidem das exposições que acolhe ou promove.

“Racismo e Cidadania” (Maio-Setembro de 2017), comissariada por Francisco Bethencourt, professor do King’s College London e autor de Racisms: from the Crusades to the Twentieth Century (Princeton Universty Press, 2014, 464 pp., 2014), merece ser particularmente lembrada neste contexto. Mas também importa dizer que a concretização de projectos deste tipo — e a respectiva convocação dos objectos a expor — tem dado às coordenadoras Margarida Kol de Carvalho e Maria Cecília Cameira, e à sua equipa técnica, uma experiência muito singular de aproximação a um leque alargado de instituições patrimoniais portuguesas, parte das quais — por incrível que pareça — denuncia a precariedade do estado das suas colecções ou a inépcia do seu trabalho arquivístico, preferindo talvez não ser “incomodada” com pedidos e solicitações. Outras, ao contrário, verdadeiramente exemplares, como o projecto Diamang Digital pela Universidade de Coimbra, são bem mais discretas do que deveriam.

Batuque cerimonial aquando da visita da Duquesa de Aosta ao Buzi moçambican, em 1909 (Companhia de Moçambique, ANTT, Lisboa); Brigada de Estudos Geológicos do Estado, Goa (IICT, 28367)

Quase cinquenta anos — sublinhe-se as vezes que for preciso! — após a revolução de 1974 e o fim do dito “império”, boa parte da nossa memória colonial continua ainda por descobrir, revelar e debater à luz de muitos documentos que os historiadores actuais sequer viram em instituições científicas, académicas, militares, museus e arquivos nacionais mantidos durante décadas sem orçamento, meios logísticos, equipas técnicas qualificadas e outras condições essenciais ao cumprimento das suas funções perante imponentes massas documentais produzidas por séculos de história ultramarina, que continuam por catalogar e descrever, quanto mais por digitalizar e partilhar em regime aberto (o chamado digital scramble). Se só isso bastaria para colocar alguma reserva ao que em diferentes registos e tonalidades — sobre alguns assuntos mais do que outros, também é evidente — tem sido escrito, importa dizer que apenas a mais completa inventariação e difusão digital deste património nos poderá pôr a salvo de interpretações feitas “a pedido” de declinações ideológicas de todo o tipo, em resultado de pesquisas arquivísticas preconceituosas.

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E ainda que a imagem fotográfica, por vezes inédita, tenha sido recurso de variadas exposições anteriores no Padrão, como “Álbum de Memórias: Índia Portuguesa, 1954-1962”, no Outono de 2012, o facto de “Visões do Império” se basear quase exclusivamente nela também vem mostrar que a equipa desta instituição cultural percebeu — e muito bem — a relevância e acuidade que cada vez mais se reconhecem a esses documentos históricos, ou historiográficos, e que a própria história da fotografia ganhou enfim um estatuto próprio e diferenciado, até entre nós, e com substancial e o costumeiro atraso.

Quase cinquenta anos — sublinhe-se as vezes que for preciso! — após a revolução de 1974 e o fim do dito "império", boa parte da nossa memória colonial continua ainda por descobrir, revelar e debater à luz de muitos documentos que os historiadores actuais sequer viram em instituições científicas, académicas, militares, museus e arquivos nacionais.

O livro O Império da Visão: a fotografia no contexto colonial (1860-1960) (Edições 70, 2014, 504 pp.; “actas” dum colóquio de três dias em Setembro de 2013), organizado pela historiadora Filipa Lowndes Vicente — em que Miguel Bandeira Jerónimo, um dos comissários da actual exposição, tratou de “fotografia, colonialismo e direitos humanos” — abriu caminho, desenhou um mapa, afirmou um roteiro de estudos e enfeixou investigações dispersas no tempo e espaço, colocando ao menos uma parte delas em ambiente comparativo global, onde a bibliografia anglófona é predominante.

Mais recentemente, o aplicado coleccionador Paulo Azevedo deu um valioso contributo solitário sobre os primórdios da fotografia em Moçambique (edição da Glaciar, Maio de 2020, 163 pp.), mas o comissariado de “Visões do Império” entendeu ser-lhe indiferente pois deixou de lado, entre outros materiais-chave, o bem conhecido álbum da visita do príncipe D. Luís àquele território na costa africana do Índico (Setembro de 1907), por Azevedo tido como uma das produções mais bem orquestradas de fotografia colonial, levada a cabo pelo estúdio local dos Irmãos Lazarus, com edição de bilhetes-ilustrados alusivos, aliás muito difundidos, por sinal. E quanto às imagens expostas que representam a viagem de Helena de Orleães, irmã da nossa rainha D. Amélia, à circunscrição moçambicana de Buzi, dois anos depois (1909) — num total de 44 fotografias “etnográficas” depois reunidas num álbum, uma das quais serviu de capa ao livro de Paulo Azevedo — não se destaca no comentário parietal a raridade de se tratar de uma mulher fotógrafa.

Aula de religião ao ar livre por um missionário da Machava, Angola (Colecção da Torre to Tombo); Pintura de estradas em Angola

No circuito em U invertido, a exposição avança em linha do tempo histórico. Começamos por ver a fotografia ao serviço de campanhas de reconhecimento geográfico, geológico e etnográfico, a primeira das quais, naturalmente, a de Serpa Pinto, em 1877, a expedição geodésica de Gago Coutinho, em 1907-10 — percebe-se, por omissão, que a I República nada fez nesses domínios científicos… —, e a partir de 1927 a missão botânica organizada pela Universidade de Coimbra.

Contudo nada nos é dito, sequer numa tábua cronológica, do muito e bom que haveria de ser feito depois, como a missão antropológica e etnológica de Moçambique, em 1936-56, chefiada por J. R. dos Santos Júnior, a da Guiné, em 1946-47, por Mendes Correia e Magalhães Mateus, a missão de recolha de folclore musical no angolano Dundo em 1950, a missão da Junta de Investigações do Ultramar do estudo da habitação nativa de Timor, em 1950, com Ruy Cinatti, António de Sousa Mendes e Leopoldo Castro de Almeida (em que também foram feitos registos cinematográficos), e na mais que evidente e notória campanha de Jorge Dias, Margot Dias e Manuel Viegas Guerreiro junto dos Macondes de Moçambique, e o seu monumental estudo homónimo em quatro volumes, publicado pela mesma Junta entre 1966 e 1970, com excelentes imagens, entre muitas outras, de danças de mapikos mascarados e de vanalombos com pintas brancas de tinta vegetal em todo o tronco e braços…

Esquecidos foram também os registos fotográficos de Manuel Alves de San Payo (1890-1974), durante o I Cruzeiro de Estudantes Universitários às colónias portuguesas da África Ocidental, nas férias grandes de 1935. Que pensariam — é a pergunta que não se pode fazer calar — os Dias e Cinatti vendo o seu trabalho empático de antropólogos ser referido por Jerónimo e Pontes como condição absoluta para “a recolha de impostos, a obtenção de mão-de-obra ou a exploração das matérias-primas coloniais”, “legitimando a tutela europeia sobre um conjunto muito diverso de seres humanos, validando a sua subjugação e exploração”? (do painel “Os outros documentados (e exibidos)”).

Apenas a mais completa inventariação e difusão digital deste património nos poderá pôr a salvo de interpretações feitas "a pedido" de declinações ideológicas de todo o tipo, em resultado de pesquisas arquivísticas preconceituosas.

Tão-pouco se fazem referências ao famosíssimo álbum fotográfico e descritivo da África Ocidental produzido em 1882-83 por José Augusto Cunha Moraes, ou à não menos conhecida colecção fotográfica de Elmano Cunha e Costa que nas décadas de 1930-50 fez pelo menos quatro missões fotográficas a Angola, testemunhando danças dos rituais de circuncisão, penteados e adornos femininos (que mostrou no Palácio Foz, em Lisboa), ou, noutro tipo de registo, o álbum da visita a Moçâmedes do presidente Francisco Craveiro Lopes em 1954.

O “trabalho forçado” como legalização duma escravatura moderna e a insensatez da brutal “guerra colonial”, que parece ter suscitado um surto de desenvolvimento que ficou praticamente por quantificar e representar em termos, dominaram sem dúvida as principais atenções expositivas e a abordagem curatorial. Ao contrário da promessa inicial, com o destaque visual dado a uma grande fotografia de Ricardo Rangel (1924-2009), o moçambicano mestiço que se destacou no fotojornalismo urbano pré- e pós-independência, muito poucas imagens dele e do seu parceiro Kok Nam (1939-2012) podem ser vistas nesta exposição, ainda que elas tenham sido denúncia de um regime racial e injusto. (Ambos foram grandes apreciadores de jazz, que sabe-se lá como chegava a muitos naquela recôndita e abandonada terra, como aliás muito cinema, como saberá quem leia as fundamentais memórias de Eugénio Lisboa.)

O livro de 1972 Moçambique a Preto e Branco — um título tecnicamente certeiro mas, ainda assim politicamente ousado, que a censura consentiu — feito para edição natalícia exclusiva duma empresa portuária de Lourenço Marques (o que supõe alguma liberalidade), pôde exibir trabalhos de Rangel, Nam e outros, e teria sido apropriado trazê-lo até aqui, e no mínimo justíssimo que fosse posto em diálogo ou contraste com um ícone da época, o álbum A Ilha de Próspero do poeta e fotógrafo Rui Knopfli (1932-97), prefaciado por Jorge de Sena então em visita académica àquela colónia, e publicado na mesmíssima ocasião e, obviamente, sem um pingo de propaganda oficial…

Funeral das vítimas de um desastre aéreo em Chitado, Angola, 1961 (Komitee Zuidelijk Afrika-Mondlane Stichting); Porto de Lourenço Marques, 1975 (Frits Eisenloeffel)

Uma exposição — qualquer exposição — é o resultado de um grande número de decisões e contingências que não transparecem, tal como o trabalho dum escritor não fica registado nas entrelinhas dum livro. Nunca saberemos o que ficou de fora, por uma razão ou outra. Todavia, outras coisas saltam à vista. O cenógrafo e designer António Viana deu uma vez mais ao pequeno espaço expositivo do Padrão dos Descobrimentos uma plasticidade conveniente, que surpreende. Abordando um tema de grande interesse, a fotografia dita colonial, os comissários não lhe seguiram o exemplo, preferindo a estreita e pouco matizada narrativa histórica em voga, que às irrefutáveis dores de uns no passado exige que suceda a autoflagelação histórica de outros, no presente. Está por provar, creio, que esse seja um verdadeiro caminho para redenção e apaziguamento, inclusão e bom viver de todos e com todos.

É que, no meio disso tudo, a dor de alguns ficou sem voz, como a rapariga desolada sentada num baú de lata num porto de exílio em 1975, na fotografia da colecção holandesa de Frits Eisenloeffel. E disparates não faltam, de resto: no livro que referi, O Império da Visão, a fotografia dum grupo de muçulmanos negros da Guiné junto à vizinha Torre de Belém — podia ter sido aproveitada? — é descrita como “reencontro histórico com as origens da sua condição subalterna de colonizados”. Mas não só: “pode conotar igualmente a submissão do Islão à Cristandade, corporizada pela Torre” (p. 269). Todo o cuidado é pouco…

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