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Nos 200 anos da independência do Brasil também se canta contra "a guerra que mata esse povo": esta é a música que celebra a Amazónia

O ano do bi-centenário brasileiro é o mesmo do maior desmatamento da floresta. No dia da Amazónia reunimos músicos que enaltecem a cultura indígena e dão o tom pela defesa do ambiente.

A remota floresta da Amazónia, um sonho febril de mata exuberante a serpentear entre rios, nunca esteve tão próxima. Subitamente, está nas capas de jornais, motiva manifestações, está ligada a uma juventude inquieta com uma realidade cada vez mais presente: o desaparecimento e morte de Dom Phillips e Bruno Pereira, no Vale do Javari, Amazonas; o último 22 de agosto, o dia com mais queimadas em 15 anos; e há poucos dias, no primeiro debate das eleições presidenciais, Jair Bolsonaro e Lula da Silva em acalorado bate-boca sobre a Amazónia, qual Flamengo-Fluminense, a disputar quem marcou mais golos a favor da floresta.

Nos bastidores do debate presidencial, Ricardo Salles, o controverso ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, reconhecido por reverter políticas de preservação da Amazónia, exaltou-se após Lula da Silva argumentar que o seu governo obteve índices menores de desmatamento. A bem ou a mal, a Amazónia está finalmente no centro do debate. “O momento atual é muito triste, não só para a floresta amazónica, como para o Brasil de maneira geral. Nos últimos anos observamos que houve desmatamento recorde na região, que comporta uma das maiores biodiversidades do planeta”, lamenta Pablo Araújo, vocalista e compositor dos Luneta Mágica, a sublinhar que as decisões do ex-ministro do Meio Ambiente impactaram particularmente a cidade da banda, Manaus, capital do Amazonas. “O nosso papel é refletir sobre o momento atual, interpretando o cenário de maneira crítica. Todos os elementos, tanto na linguagem, como na estética sonora do álbum, foram incorporados com o objetivo de criar esse universo particular, traduzindo a floresta como esse complexo organismo vivo que nos mantém”.

5 de setembro, Dia da Amazónia. O Brasil celebra este complexo organismo vivo que percorre nove estados, em concertos, exposições e palestras. Por aqui, reunimos algumas propostas musicais de 2022 que enaltecem a cultura amazónica, a retomar os rituais ancestrais de guerrear com cantiga e dança. Na frente do pelotão, No Paiz das Amazonas, o novo álbum dos Luneta Mágica. “Com o cenário sócio-político atual”, argumenta Daniel Freire — baixista, teclista, e o que mais for preciso — “entendemos que esse era o momento de incluir a voz e a manifestação cultural de artistas do Amazonas, cujo modo de vida está diretamente conectado com a natureza amazónica, a cidade e suas contradições e a herança cultural manifestada em seus vários níveis.”

“Não é incomum ver pessoas de fora da região tentando tomar as rédeas da discussão sobre o futuro da Amazónia enquanto os povos tradicionais locais são colocados em segundo plano", diz Diego Souza dos Luneta Mágica.

A primeira semente foi plantada em Rio Preto da Eva, a 80 quilómetros de Manaus, num casebre cercado pelos igarapés e mata. O álbum anterior, No Meu Peito, de rock juvenil classicista, uns Kinks à brasileira, revelou-se um molde desajustado ao estado de emergência que assola a região. O retiro sintonizou a banda a novas frequências, às vibrações amazónicas. “Nos momentos de descompressão, nossos sentidos eram invadidos por essa natureza amazónica”, descreve Daniel Freire; e Diego Souza, outro multi-instrumentista, clarifica o método de composição: “Enxergamos a Luneta mais como um coletivo, onde cada membro tem a possibilidade de se expressar criativamente, do que uma banda de rock no sentido tradicional da palavra. Não existem preconceitos sobre o que cada membro deve fazer ou qual instrumento deve tocar.”

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A entrada de No Paiz das Amazonas é cinematográfica, uma secção de cordas lidera a excursão, pé-ante-pé, as gotas de chuva espessas escorrem pelo chapéu, adiante, o chilrear de uma ave rara, o rugir de uma fera, a atração do abismo. “Trago esse canto/ de paz e amor/ Claudio Santoro/ me revelou”. Segue-se no trilho de outro aventureiro, Claudio Santoro, o compositor vanguardista de Manaus que marcou a música brasileira do Século XX. “Semeia essa terra/ acabem com a guerra/ que mata esse povo”. A próxima canção, “Além das Fronteiras”, relembra que este povo Amazonas também apregoa a batucada, vejam-se as associações populares do Boi Garantido e do Boi Caprichoso, representações contemporâneas das culturas afro-indígenas. É o percussionista Tércio Macambira, ou a cantora e investigadora Karine Aguiar, que guiam os tambores desta molecada do rock, que apertam na guitarra progressiva para condenar o descaso da humanidade:

“Além das fronteiras
que secam a cidade
existe a floresta
floresta
verdade”

A cidade é Manaus, que contém tanto de cultura indígena e ribeirinha como de asfalto e funk. Afinal, é a capital do estado, o coração financeiro do Norte do Brasil. “A realidade da cidade não é muito diferente da realidade urbana de outras grandes cidades do Brasil”, elucida Diego Souza. “Mas a nossa perceção é que Manaus ainda é vista pelo resto do país com um véu de exotismo, no mau sentido, como se não fossemos cidadãos plenos e nossas visões de mundo não fossem tão válidas quanto as dos demais”. Em “Presságio”, os Luneta Mágica colaboram com o rapper conterrâneo Victor Xamã, hoje um dos principais responsáveis por demonstrar ao Brasil que Manaus — ou melhor, “Manaus Delírio” — não é “passeio para gringo” nem “parquinho pro crime”, é uma “uma estante de livros” por desbravar. “Não é incomum ver pessoas de fora da região tentando tomar as rédeas da discussão sobre o futuro da Amazónia enquanto os povos tradicionais locais são colocados em segundo plano.” Na canção “Eldorado das Ilusões”, a banda utiliza um sample do filme icónico de Glauber Rocha, “Terra em Transe”, quando aquele personagem populista, sob o som de metralhadoras, anuncia que: “Pela liberdade morreremos, por Deus, pelo poder” — qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

A meio caminho da excursão amazónica, “Conduzido” vagueia pelo Rio Negro, manifestando as mesmas penumbras que tento assombraram Joseph Conrad — “Fecho os olhos/ vejo o universo dentro de mim”. O mantra, com o saxofone a romper entre as preces, é uma tarefa ingrata, gota a gota, até furar a rocha — “uma hora transforma/ um trabalho silencioso”. O trabalho silencioso dos Luneta Mágica é semear na terra a certeza que há mais riqueza na preservação que destruição da Amazónia, que amanhã há de ser outro dia. Na colaboração com Tatá Aeroplano, “Orquídea”, acrescentam um elemento primordial ao debate apocalíptico do desmatamento: “Venha me reflorestar/ Vem plantar sementes/ Venha me semear”. A cinza cobre-se com terra e uma carga de água encarrega-se do resto. “O brasileiro é um povo forte, generoso e alegre”, reflete Pablo Araújo. “A floresta amazónica é como nós, exuberante e com capacidade de transformação e regeneração sem igual.”

A maior referência na música indígena é provavelmente Djuena Tikuna, a ativista e cantora que foi a primeira deste com estas características a pisar o palco do imponente Teatro Amazonas, um símbolo vivo da exploração das riquezas amazónicas.

“Vim da terra do calor, meu suingue não calô”

No passado fim de semana, a decorrente edição do Rock in Rio, no Rio de Janeiro, apresentou uma novidade inusitada: um palco em forma de barco reluzente, em homenagem às embarcações da Amazónia e às célebres aparelhagens faraónicas das festas do tecnobrega — estilo musical característico do Pará, que como o nome indica, é entre o eletrónico e o brega, para facilitar, imaginem um EDM pimba. Além das inevitáveis Fafá de Belém e Dona Onete, este palco do Rock in Rio recebeu pela primeira vez no festival um grupo indígena, os Brô MCs, a demonstrar novamente como a Amazónia persiste a ocupar o espaço público, até num festival sucessivamente criticado pelo avesso à mudança.

Os Brô MCs são das aldeias Bororo e Jaguapiru, no Mato Grosso do Sul, integrados numa das maiores regiões protegidas do Brasil que, apesar da demarcação legal, permanece ameaçada pelos garimpeiros, os mineiros amadores que, em alguns casos, ocupam terras demarcadas — o próprio pai de Jair Bolsonaro, Percy Geraldo Bolsonaro, foi um entusiasta do garimpo. Além dos garimpeiros, os fogos postos e a consequente plantação agrícola, nomeadamente de soja, são outra ameaça à destruição das zonas demarcadas.

“Ver morrer parente, ver morrer diversidade
Cana, soja nunca foram comida de verdade
Nem você come o que você produz
É ganância o nome do que te conduz”

Assim canta a Marina Peralta com os Brô MCs no reggae “Demarcação”, uma das canções que o grupo gravou na própria aldeia, num estúdio improvisado, com nomes fictícios para evitarem tornarem-se alvos a abater.

A maior referência na música indígena é provavelmente Djuena Tikuna, a ativista e cantora que foi a primeira deste com estas características a pisar o palco do imponente Teatro Amazonas, um símbolo vivo da exploração das riquezas amazónicas. O último álbum é Torü Wiyaegü, uma colisão da ancestralidade do povo Tikuna com as eletrónicas da urbe, a canção tradicional feita de arma de arremesso. Outro álbum da recente leva de músicos indígenas é Mbaraeté, de OWERÁ, um rapper do povo Guarani Mbyá, curiosamente gravado a meias entre Leiria e São Paulo — o produtor é Rod Krieger, o músico ex-Cachorro Grande radicado em Lisboa. Mbaraeté é resistência em guarani, um pedido de socorro ao som de flautas nativas: “Vamos cuidar/ cuidar e não queimar/ a nossa floresta S.O.S Amazônia”.

Se um genuíno pedido de socorro não aflige, outra estratégia é pegar-nos pela anca, uma dança frenética para dar o corpo às balas: “Conectando energia na trilha do mato/ por aí, poraquê, por ali/ Pra quebrar motosserra/ Defender minha terra/ Espírito Saci/ Que brinca, pula, fuma/ E mete dança para se divertir”. O rapper do Belém do Pará, Cronixta, uniu-se à lambada fogosa de Filipe Cordeiro, e criou um novo hino amazónico: “Vim da Terra do calor/ Meu suingue não calô”. E para os mais místicos, ainda em Belém do Pará, a companhia de teatro Bando Mastodontes fantasia em Ciranda Celestial uma floresta transcendental, afrofuturista, de propriedades curativas: “Todo o amor/ Toda essa dor/ Toda essa alegria/ Às vezes me habita/ Eu fico meio tonto/ Vez em quando levo um tombo/ Mas eu sei levantar/ Livre”.

Em 2014, Portugal recebeu uma breve visita de Patrícia Bastos, cantora do longínquo Amapá, que nos revelou inebriantes composições caboclas, isto é, de origem branca e indígena. Agora, entra em cena a mãe de Patrícia, Oneide Bastos, num álbum homónimo de canções graciosas, a boiarem serenas à beira-rio, com produção de Dante Ozzetti.

Este ano, pela primeira vez, as celebrações do Dia da Amazónia integram-se num festival espalhado por oito cidades, os Festivais Dia da Amazónia. E alguns músicos, como Patrícia Bastos, lançam agora canções dedicadas à floresta:

“Nasci pajé nessa floresta
Na tribo das Icamiabas
Em ninhos tiro a minha sesta

Moro nos cachos da bacaba
A lua cola em minha testa

O sol conduz minha tiara
O arco-íris cor empresta
Pra eu pintar a minha cara”

Em 2014, Portugal recebeu uma breve visita de Patrícia Bastos, cantora do longínquo Amapá, que nos revelou inebriantes composições caboclas, isto é, de origem branca e indigena. Agora, entra em cena a mãe de Patrícia, Oneide Bastos, num álbum homónimo de canções graciosas, a boiarem serenas à beira-rio, com produção de Dante Ozzetti. A voz desta cantora octogenária é um canto de sereia, de sotaque amazónico, um encantamento que nos empurra corrente acima, de encontro às divindades que, ante os fogos e o desmatamento, resistem às maldades do ser humano: “Jurupari/ É o pai da mata/ É o rei das tribos tuxaua/ Suas leis ninguém desacata”.

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