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HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Nuno Lopes: "É quase milagroso o que fazemos com dez filmes por ano"

O ator é um dos protagonistas do filme "Joaquim", que agora se estreia. Em entrevista, fala do estado da cultura, da cultura do Estado, de como trabalha as personagens e de DJing.

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A 6 de Setembro, na semana em que se celebra a independência do Brasil, estreiam-se em Portugal dois filmes brasileiros em volta do tema: “Vazante”, de Daniela Thomas, e “Joaquim”, de Marcelo Gomes. Neste último, centrado em Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, um mártir/herói que simboliza o início do processo que levou à independência do Brasil, Nuno Lopes interpreta Matias, um português que vai à procura de ouro num grupo expedicionário liderado por Joaquim.

Marcelo Gomes quis quebrar a identidade do herói, da personagem histórica, e colocá-lo mais terra-a-terra com o presente, para se entender também o Brasil de hoje – a conversa decorreu dias antes do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro – e a sua relação com a colonização portuguesa.

Contudo, foi inevitável olhar também para a carreira de Nuno Lopes e falar sobre o presente, o que significa ser ator em Portugal. Figura muito presente no cinema português, também faz teatro e televisão, participou em algumas séries da RTP1, como “Terapia” e “País Irmão”, e em breve poderemos vê-lo em “Sara” (RTP2), série realizada por Marco Martins a partir de uma ideia de Bruno Nogueira, que é uma reflexão humorada sobre o que significa ser ator em Portugal e como os meios audiovisuais se mexem por cá. Inevitavelmente, também se falou sobre isso.

[o trailer de Joaquim]

Como surgiu a oportunidade de trabalhar com o Marcelo Gomes?
Conheci o Marcelo quando fui com o “Alice” a Cannes, em 2005. Eu e o Marco [Martins] estávamos a ser entrevistados no Le Grand Palais e, de repente, estava uma pessoa a falar português ao nosso lado, português do Brasil. E era o Marcelo. Simpatizámos logo imenso numa conversa de quinze minutos. Nunca mais nos encontrámos, mas eu continuei a ver os filmes dele. Passado uns anos, ele estava em Portugal à procura de atores portugueses e chama-me para um casting, sem saber que eu era essa pessoa e só quando chego ao casting é que nos apercebemos que eu sou eu e ele é ele.

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Como é que foi entrar naquela personagem?
Havia um desejo meu de falar sobre esse lado da história. O cinema funciona um bocadinho como uma revisão da história. Em Portugal passa-se um pano simpático sobre as descobertas e os nossos descobrimentos. Na escola só se fala do lado heróico dos nossos descobridores, que demos novos mundos ao mundo. Não se fala dos sítios que já tinham população e que destruímos, onde adquirimos os bens, as matérias-primas e tudo mais, a escravidão, a morte dos índios, etc. Esse lado é uma falha enorme na nossa educação. Não só na nossa educação como na consciência enquanto cidadãos portugueses. Só aprendendo com os nossos erros do passado é que podemos construir um futuro melhor. O facto de isso ser branqueado na nossa história não nos ajuda a construir um futuro melhor.

17 fotos

Isso já era explorado no “Posto-Avançado do Progresso” [filme de 2016 de Hugo Vieira da Silva].
Sim, é um tema que me interessa explorar. Há uma falha muito grande em não assumirmos os erros que fizemos nessa época. Quando o Marcelo me enviou o guião e me apercebi de que era sobre isso que se falava, interessou-me. Porque o projeto era uma revisão do que de mau aconteceu no Brasil, falava um pouco também do Brasil de agora. É incrível como muitas das coisas que acontecem hoje no Brasil foram aprendidas nessa época. Depois de aceitar o projeto passei um mês no Brasil, em Diamantina, a ensaiar, ler texto, a trabalhar com atores, a explorar o local e a andar de cavalo. A rodagem foi muito rápida, cerca de quatro semanas. Normalmente são oito, nove semanas, este foi quatro. Preparámos tudo muito bem no mês antes da rodagem.

Há um lado muito realista no “Joaquim”. Essa vertente também foi algo que o cativou?
Sim, apesar de ser um filme de época, o Marcelo queria uma coisa realista para confrontar o passado com o presente. Não queria criar um filme de época fechado, no estereótipo de época, como se vê nos filmes da BBC, que parecem uma coisa engessada. Houve um trabalho de pesquisa, da vida, do que era a vida banal naquela época. E esse trabalho durante aquele mês foi fundamental para isso. Quando partimos para a rodagem já estava tudo trabalhado, ensaiado, foi só pegar nisso e relacionar com a natureza que o Marcelo escolheu para fazer o filme.

Uma das primeiras coisas que me ocorreu ao ver o filme foi a sensação de uma espécie de “Aguirre” [filme de 1972 de Werner Herzog] luso-brasileiro. Havia essa intenção?
Há algo no “Aguirre” que este filme tem, que é algo que também podes encontrar nos filmes do Albert Serra. Ajudou-me muito ver o filme sobre o Dom Quixote [“Honra De Cavalaria”, de 2006], pela forma como se faz o tratamento de época como se não fosse época: da vida banal, das ações banais e não do estereótipo do que seria. Por vezes, as personagens de época são muito endeusadas. No “História da Minha Morte” [filme de 2013 de Albert Serra] há um fidalgo que passa metade do tempo a defecar. Eu estava a ver o filme e a pensar: “De facto, isto nunca se viu”. Não é nada do outro mundo, mas nunca se viu, uma destas personagens a fazer cocó. E esse lado, que pode parecer fútil, é um lado da vida privada, da época, da vida real, que quebra o endeusamento e transforma esses personagens em algo real, como os espectadores, e aproxima-os das pessoas. Não é só um relato histórico. E isso o “Aguirre” também tem, tal como o “Joaquim” tem. Trabalhámos nesse sentido, foi uma das grandes pesquisas do nosso trabalho enquanto atores, alcançar o lado sujo, real, das pequenas acções, para que deixasse de ser só um relato de época e passasse a ser mais realista.

"Muitos dos erros do Brasil atual têm a sua génese no facto do país ter sido explorado da forma como foi. E há uma elite no Brasil que ainda é colonialista, apesar de ter nascido no Brasil, é colonialista e usa a corrupção para atingir esse fim. O país cresceu educado por nós, mal-educado, porque nós não estávamos realmente lá."

Tornam-se mais personagens do que personagens históricas.
Exato. Por exemplo, o Vasco da Gama para nós é só o homem que descobriu o caminho marítimo para a Índia. Mas não se sabe mais nada daquela pessoa. De repente é mitificado, transforma-se numa espécie de Deus. O Marcelo quis destruir esses estereótipos. O próprio Joaquim na história do Brasil é uma espécie de Jesus Cristo, com o cabelo comprido e a barba. A primeira coisa que o Marcelo faz no filme é cortar-lhe o cabelo e destruir esse mito. Transforma-o num ser humano. A grande revolução do filme é essa. Não falar do Joaquim como um herói mas dizer que qualquer pessoa pode ser um herói quando colocado em certas circunstâncias que desencadeiam isso. O Marcelo transforma o Joaquim num tipo banal, que quando se apaixona por uma negra começa a ter noção do colonialismo, da escravidão, do massacre dos índios. E as suas frustrações profissionais fazem com que ele não tenha uma ideia de futuro e perceba que o país está a ser destruído. O facto de conhecer pessoas com os mesmos interesses leva-o a criar uma revolução. Mas não porque ele seja um herói, ele é um tipo banal.

Mas também acaba por se revelar numa personagem um pouco louca, não?
Não diria louco, diria que há uma obsessão. Há uma obsessão com a riqueza, que eu acho que ainda há no Brasil. O filme também fala do capitalismo, um terço do filme mostra tipos desesperados à procura de ouro num país riquíssimo. Eles estão a procurar ouro, um metal debaixo da terra, nos rios… o filme mostra isso. E, acima de tudo, essa opção do Joaquim vem dos colonizadores, não vem dele. Muitos dos erros do Brasil atual têm a sua génese no facto do país ter sido explorado da forma como foi. E há uma elite no Brasil que ainda é colonialista, apesar de ter nascido no Brasil, é colonialista e usa a corrupção para atingir esse fim. O país cresceu educado por nós, mal-educado, porque nós não estávamos realmente lá. O Marcelo fala muito nisto, ele diz que a Inglaterra, quando colonizava um país, eles levavam para lá a família. Nós no Brasil não, levámos para lá os criminosos. As pessoas que cresceram no Brasil aprenderam a partir daqui, destes modos de vida. Acho uma parte da mentalidade brasileira ainda está em processo de descolonização, ainda é uma cópia dos maus atos dos colonizadores.

“É quase um milagre ter uma carreira como a que tenho tido”

Já trabalhou em algumas produções internacionais. Com o destaque que o “São Jorge” [filme de 2016 de Marco Martins] lhe deu…
Acabei o “São Jorge” e duas semanas depois fui filmar o “Joaquim”. Ainda estava com o cabelo rapado.

Nunca pensou em internacionalizar mais a sua carreira?
Quero fazer filmes e quero filmar mais. Infelizmente em Portugal só se fazem dez filmes por ano. É quase um milagre ter uma carreira como a que tenho tido. Tenho filmado quase todos os anos em Portugal, tenho muita sorte. Muito dos meus colega não. Mas eu tenho consciência da sorte que tenho. Eu desejo fazer filmes, fazer filmes que me interessam. Se forem feitos em Portugal, melhor ainda. Prefiro mil vezes representar na minha língua, representar noutra é super frustrante para um ator. E como quero fazer filmes, tenho apostado lá fora. Acabei agora de fazer dois filmes em França, tenho estado a apostar mais nisso. Não porque tenho o desejo de ser um actor internacional, mas porque quero fazer filmes.

[o trailer de São Jorge:]

Sendo o ator que é, e tendo em conta a forma como encara os seus papéis, imagino que queira trabalhar com certos realizadores. Trabalha nessa direção?
É algo muito difícil. A única maneira é ir fazendo filmes e esperar que os convites cheguem. A única coisa que faço é tentar apresentar-me: tenho um agente em França e outro em Inglaterra. As coisas têm estado a correr bem, tenho recebido convites. Acabei de filmar com a Rebecca Zlotowski. As coisas estão a começar a correr nesse sentido. Filmar com a Rebecca era um sonho meu, por isso esse já está cumprido [risos]. As coisas estão a acontecer, mas sei que é difícil e não estou iludido.

O prémio que ganhou em Veneza [Melhor Ator pela interpretação em “São Jorge”] ajudou-o nesse sentido?
Ajudou muito. Por vezes não é preciso verem o filme para ajudar. É diferente um diretor de casting chegar perto de um realizador e dizer “tenho este ator que é ótimo e tenho este que ganhou um prémio em Veneza”. É mais fácil quebrar barreiras com um prémio. Agora vai-se estrear em França um filme da Bettina Oberli onde participo  [“Le Vent Tourne”]. As coisas estão a começar a andar.

Gosta de fazer televisão?
Só faço televisão se gostar das pessoas com quem vou trabalhar ou do projeto. E é raro fazer televisão por causa disso, não há muitos projetos interessantes.. A “Sara”, do Marco Martins e do Bruno Nogueira, vai estrear em breve. Foi um projeto que adorei fazer, não me divertia assim há muito tempo. Gosto da televisão quando ela tem uma função de crítica social, já fazia isso em “Os Contemporâneos”. No caso da “Sara” há uma crítica ao cinema de autor, à televisão, às telenovelas e achei fundamental refletirmos sobre isso.

A Sara não sabe chorar e isso deu uma série no cinema

E como é que “Atores” [peça de Marco Martins que esteve em cena no São Luiz no início deste ano] encaixa nisto tudo?
Houve uma altura em que nos interessou, a mim, ao Marco e ao Bruno, olhar para o nosso meio. Também é daí que surge a “Sara”. Acho que depois da crise que aconteceu em Portugal houve uma necessidade de refletir sobre a forma como tem sido tratada a cultura. Durante e depois disso. Houve uma necessidade de olharmos para nós e perceber o que não está a correr bem. Claramente não está a correr bem: “artista” continua a ser uma palavra associada mais a defeito do que qualidade. E continua a haver um desinvestimento muito grande na cultura. E a parte mais triste é que acho que isso reflete a visão da população portuguesa.

A relação das pessoas com a cultura está pior?
Acho que há uma vontade política no geral e depois há casos particulares. Esta ideia da subsídio-dependência é uma forma do estado, dos políticos, esconderem o que é um dever do Estado. Quando os agentes culturais defendem o 1% não é por egoísmo, é porque se acha que o público merece ter melhor acesso à cultura: seria muito melhor para o país, antes de ser melhor para nós. Há sempre o discurso de que somos pessoas a viver à custa do Estado, quando a cultura é um dever do Estado. Há um discurso constante da política portuguesa em transformar-nos em parasitas do Estado, quando não é essa a realidade: tal como os hospitais não são parasitas do Estado. A política sempre preferiu a desinformação. A arte é contrapoder, põe o poder em causa e tende a provocar reflexão. Acho que isso é assustador para a maior parte dos políticos. Não tenho um discurso antipolítico, acho que há políticos que trabalham para nós, povo, que estão interessados. Só que não acho que sejam muitos. O mais triste disto tudo é que a culpa é nossa, do povo, no qual me incluo: quando as pessoas exigem, os governos são obrigados a ceder. E em última análise a culpa é nossa, quando não se exige, os governos fazem o que querem.

Marco Martins pergunta “o que é ser ator?”: Bruno Nogueira ou Nuno Lopes explicam

Mas sente isso em todas as áreas onde atua?
Quando comecei nos anos 1990 a fazer teatro, não havia metade do público que há hoje em teatro. Lembro-me de fazer peças para dez pessoas. Hoje as sala estão quase todas cheias. Há um lado que melhorou, mas há um grande caminho a percorrer.

O que mudou no teatro?
O teatro comercial teve sucesso. É uma coisa que ainda não aconteceu no cinema, por exemplo. Acho que grande parte do público que vê teatro não-comercial foi formado pelo facto de pessoas começarem a ir ao teatro comercial: ir ao teatro era uma coisa porreira. E acho que isso teve uma influência muito grande. No cinema isso ainda não aconteceu.

Parece que somos ensinados a não gostar do cinema português. Acha que alguma vez se vai dar a mudança?
Acho que há um grande trabalho a ser feito. Primeiro logo na educação que deveria promover a cultura ainda na escola, depois no apoio do Estado. Fazer mais de dez filmes por ano ajudaria bastante. Eu sou contra a SECA [Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual], defendo que o dinheiro do estado deveria ir para o cinema do autor. E há muito a ideia de que as pessoas que têm esta opinião são contra o cinema comercial. Pelo contrário, eu desejo que seja bem sucedido, eu gostava de fazer cinema comercial bem sucedido, e acho que se nós conseguíssemos encontrar um cinema comercial constante, bom, que as pessoas gostassem, iria ajudar a destruir essa barreira que existe entre o público e o cinema português, o que em última análise ajudaria também o cinema de autor. Agora quando se fala em atribuir subsídios do Estado, acho que deveriam ir para o cinema de autor. Porque o dever do Estado é promover a cultura e não o entretenimento.

"O cinema de autor português é uma absoluta prova de sucesso. É quase milagroso o que fazemos com dez filmes por ano. Mas no cinema de autor também se falha. Quase nunca há dinheiro suficiente para se fazer uma boa promoção e muitas vezes os realizadores parecem pouco interessados nisso."

Não sente que filmes como o “Alice” e o “São Jorge”, que são considerados cinema de autor, só não são considerados cinema comercial por uma questão de marketing?
O que é cinema de autor e comercial é uma longa discussão. O “São Jorge” correu muito bem, teve cerca de 50 mil espectadores, e parte disso tem a ver com o facto de ter ganho o prémio em Veneza, e outros prémios: o filme chegou cá com hype. As pessoas tinham curiosidade em ir ver, foram, gostavam e falavam do filme a outras pessoas. O boca a boca funcionou. Por vezes é só ter um hype que chame as pessoas. Mas falta o hábito das pessoas sentarem-se a ver um filme portugueses e dizerem que gostaram. Isso estamos longe de adquirir. O cinema de autor tem dado provas de que resulta. É incrível como nós, com 10 filmes por ano, estamos em vários festivais, ganhamos prémios: o cinema de autor português é uma absoluta prova de sucesso. É quase milagroso o que fazemos com dez filmes por ano. Mas no cinema de autor também se falha. Quase nunca há dinheiro suficiente para se fazer uma boa promoção e muitas vezes os realizadores parecem pouco interessados nisso.

“A função da televisão pública não é dar às pessoas o que elas querem”

Na televisão faz mais humor. É uma escolha propositada?
As coisas mais interessantes que me aparecem para fazer são de humor. Se fosse drama e me interessasse, faria também. Acho que o humor tem mais liberdade do que o drama na televisão.

Como a “Odisseia” [série da RTP1 transmitida em 2013]? Se há uma grande série portuguesa sobre a crise, económica, financeira, na cultura, nos financiamentos, é “Odisseia”. E vocês os três [Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Nuno Lopes] gozam uns com os outros. É muito raro por cá haver esse tipo de discurso, consciência.
Sim, de saberes brincar contigo. O humor tem mais liberdade na televisão, até porque tem figuras humorísticas que são mais consensuais com o público, agregadoras de público. Quando eles escreveram o “Odisseia”, a RTP mostrou-se aberta à ideia porque era o Bruno, o Gonçalo e o Tiago [Guedes]. Se fosse por outras pessoas não se iria para a frente. A “Sara” também é uma série que nos deu imenso prazer em fazer, porque de facto é diferente de tudo o resto. Não é melhor nem pior. É diferente. E é triste perceber que vai para a RTP2.

[o trailer de “Odisseia”:]

A sério?
Sim, era para ser para a RTP1. Arriscámos em fazer algo que normalmente não é feito em televisão cá. A RTP em vez de pensar nisso como uma coisa positiva, pensa “vamos meter na RTP2: só algumas pessoas é que vão gostar”. Isso é o oposto da função do Estado e da televisão pública. Deveria ser uma coisa que quebra algumas barreiras, algo que as televisões privadas não têm. Trabalhámos todos para que fosse um programa para agradar ao grande público. Se soubéssemos que era para a RTP2, fazíamos outro tipo de coisa. Trabalhámos para que fosse uma coisa diferente, uma reflexão sobre o nosso meio, o que está mal no meio audiovisual, mas que chegasse ao grande público e que pudesse ter momentos de humor. Conseguimos fazer isso, mas a RTP disse: “isso é capaz de ser esquisito para dar na RTP1”. Ficas triste. Espero que voltem atrás na decisão. Mas foi uma coisa que me deixou triste. Apresentámos a série no IndieLisboa e teve de ter uma sessão extra porque a primeira esgotou.

E é estranho terem esta atitude quando passaram anos a investir nas séries portuguesas.
Exacto. E a função da televisão pública não é dar às pessoas o que elas querem. Isso é responsabilidade da TVI e da SIC, onde existe uma questão monetária, capitalista, de negócio. Mas a televisão do Estado não é um negócio, é um braço do Estado. Há uma função educacional que deveria permitir que séries como a “Sara” passassem em horário nobre.

Também é preciso educar o público para televisão?
Claro. Imagina que era um sucesso? Se calhar ter-se-ia que fazer mais coisas do género. E isso iria mudar o panorama do audiovisual português. Que fique claro que sou da opinião que a RTP do Nuno Artur Silva teve muitas coisas boas, arriscou muito e tenho muita pena que tenha terminado da forma como terminou. É injusto porque houve uma aposta numa maneira diferente de olhar para o audiovisual e que me parece que estaria mais perto do que acho que deveria ser a televisão estadual. Mas esta decisão no caso da “Sara”… Não consigo compreender.

Muitos consideram-no um ator do método. Viu o “Jim & Andy”, em volta do trabalho do Jim Carrey para encarnar o Andy Kaufman?
É engraçado as pessoas dizerem isso. Não acho nada que seja um ator do método.

"Não sou a favor do meu método, sou a favor de qualquer método que resulte para qualquer ator. Quando faço cenas em que estou bêbedo, estou bêbedo, porque não sei fazer de bêbedo. E porque as vezes em que fiz de bêbedo, só estava a fazer de bêbedo, em vez de fazer a cena."

Talvez pela forma como veste as personagens.
Mas é por uma questão de defeito, não de qualidade. Não sigo um método, faço o que tenho de fazer para me sentir confortável a representar.

Vamos esquecer o método. Voltando ao Jim Carrey…
Foi dos filmes que mais gostei de ver no último ano. Acho uma homenagem incrível ao Andy Kaufman e uma reflexão incrível do Jim Carrey. E eu percebo-o…

Pegando nisso, alguma vez se imaginou a entrar assim dentro de uma personagem?
Se for necessário, sim. Há coisas mais dolorosas: o meu treino físico para o “São Jorge” foi mais doloroso. Durante um ano a seguir ao “São Jorge” não consegui entrar num ginásio, porque ainda tinha dores. Treinava seis horas por dia para me preparar para o “São Jorge”. Acordava todos os dias com dores físicas. Todos os dias tive vontade de desistir, todos os dias. Isso foi mais duro do que um trabalho como o do Jim Carrey. Apesar de tudo, já fiz coisas parecidas, já tive vários dias em que andava na rua a vestir as personagens. Agora é mais difícil porque sou conhecido. Quando era mais novo acontecia-me muito.

Lembro-me de falar nisso na altura do “Alice”.
Sim. Para o “Joaquim” não fiz nada disto, não faz sentido ir para a rua vestido à século XVIII. Eu tenho o meu método. Não faço isto no teatro. O trabalho começa e termina na sala de ensaios.

Porquê?
No teatro tenho muitos ensaios e quando chego ao palco para representar já passei dois meses com aquelas pessoas, palavras, sei o que fazer. E depois é tornar aquele momento único. Esse é o desafio, pegares numa coisa que ensaiaste milhares de meses, que está fechada, não a fechares e tornares aquele momento único. No cinema chegas ao plateau, como já me aconteceu, e apresentarem-me a mulher com quem vou ter sexo num quarto que não conheço. No cinema tenho de ter preparação para tudo, por isso é que durante a rodagem estou naquele ambiente 24 horas por dia. É horrível para os meus amigos, para quem está comigo. Não há outra maneira de fazer. Uma vez fiz um tipo super agressivo, um skinhead, ainda nos tempos da escola. Andava com a personagem na rua, fazia porcaria e tudo mais. Quando ia a um café e pedia qualquer coisa para comer, dizia “obrigado”. E pensava sempre: não posso dizer obrigado. Isso foi a coisa que mais me custou de tudo, deixar de dizer obrigado. Parece uma coisa ridícula, mas é sinal de que não estava lá ainda. A minha cabeça ainda não era a da personagem. O facto de deixar de dizer obrigado fez-me pensar na personagem de outra maneira.

“A Noite da Iguana”. Com Nuno Lopes fomos ao abismo e voltámos

O que o fez ou influenciou a trabalhar assim? É uma questão de sobrevivência?
É uma questão de sobrevivência. Não sou a favor do meu método, sou a favor de qualquer método que resulte para qualquer ator. Quando faço cenas em que estou bêbedo, estou bêbedo, porque não sei fazer de bêbedo. E porque as vezes em que fiz de bêbedo, só estava a fazer de bêbedo, em vez de fazer a cena. Prefiro beber mesmo e fazer a cena o melhor possível. Faço o que preciso para fazer o melhor possível. Agora se preferia não ter que fazer assim, claro que preferia. Preferia não fazer seis horas por dia de treino para o “São Jorge”. Mas o facto de te transformares muito… por exemplo, no “Posto-Avançado do Progresso” emagreci quinze quilos. Além do lado físico, do lado visual que dá ao filme, há um lado de confiança. Fico mais confiante porque trabalhei muito para aquele momento. É mais fácil libertar-me de tudo e entrar na cena. Quando não faço isto, chego ao plateau e as dúvidas são maiores. Isso cria insegurança, faz com que não esteja tão livre. Em última análise, prejudica o trabalho.

Além de ator também é DJ. É uma atividade regular?
Quase todas as semanas, pelo menos semana sim, semana não. Na semana passada estive no Porto, no Plano B, e em Paredes de Coura, que é um sítio onde adoro tocar. Já é a sétima vez que toco lá, quase sempre de seguida. Só não toquei num ano, por causa de compromissos profissionais. Mas é o sítio onde mais gosto de tocar. Aliás, quando estava a filmar o “Joaquim”, estive quase 48 horas sem dormir para ir tocar a Paredes de Coura. Estava a filmar em Diamantina, no Brasil, passei o dia todo a filmar, das sete da manhã às sete da noite. Acabei, fiz doze horas de viagem para o Rio de Janeiro, do Rio vim para o Porto, depois Coura, toquei, acabei de tocar e fiz o percurso de volta, sem dormir. Mas sabia que no filme o Matias poderia estar cansado. Portanto, estava em ótimas condições para desempenhar o papel.

E é uma das suas principais fontes de rendimento?
Não, é onde perco dinheiro! O que recebo enquanto DJ gasto em música. Excetuando quando toco em festivais, onde se ganha um pouco mais, não recebo nada de extraordinário. É um salário normal de DJ.

“Representar é sempre um ato político”

É difícil ver-se a si próprio, no seu trabalho? Quando se vê no cinema, por exemplo?
Sim, no cinema é horrível. Nas primeiras três vezes odeio. É difícil. Nem que seja por uma coisa: a imagem mental que tens da tua personagem nunca é com a tua cara. Esta personagem é assim e assim, vejo uma cara, uma voz, que não são as minhas. Quando me sento a ver o filme, a cara é a minha. Ando a lidar melhor com isso ultimamente. Uma coisa que ajuda é rever takes no plateau, não fico tão surpreendido com o resultado final.

Ou seja, na sua cabeça tem a cara de outra pessoa?
Sim, a cara do Jorge é um tipo com uma cara maior. É sempre uma desilusão quando te vês e não conseguiste mudar assim tanto. Aí entra a confiança com os realizadores. Tenho uma relação extraordinária com o Marco, de amizade, provocação, criação em conjunto e nesse sentido é muito mais fácil trabalhares com uma pessoa em que confias a 100% e é mais fácil entregares-te. No caso do “Joaquim” há uma simpatia no Marcelo, que faz com que seja impossível não confiar nele. Ele tem uma alegria a filmar, uma despreocupação. Quando vês um realizador tão despreocupado, isto é impossível correr mal.

[O trailer de “Posto Avançado do Progresso”:]

Facilitou terem visões da história tão parecidas?
Claro. Acho que o grande trabalho do ator é sempre as coisas que aceita e as que diz “não”. O trabalho começa aí. Os “não” que dizes são mais importantes do que os “sim” que dizes. Definem a tua carreira. Representar é sempre um ato político, quando entras num filme, estás a dizer que concordas com esta visão. A grande dificuldade em ser ator em Portugal passa pelo facto de termos uma profissão precária. Isso faz com que 95% dos atores não tenham escolha. É-lhes retirada a possibilidade de escolher. Não têm escolha e têm de fazer o que lhes aparece. E isso prejudica a criação de atores/artistas, o ator fica só uma marioneta em função dos seus convites. Quando não estás a trabalhar há três meses e convidam-te para uma novela, sabes que vais ter nove meses de trabalho. Mesmo que odeies fazer, vais fazer. Na nossa profissão não há fundo de desemprego. E com isso tiras aos atores a possibilidade de escolherem fazer as coisas que lhes interessam. Se isso existisse era mais comum fazer séries em Portugal, porque os atores prefeririam fazer séries a fazer novelas.

Essa parte de dizer “não” está relacionada com as novelas?
Não tenho nada contra as novelas. Não é essa a questão. Já fiz e tenho o maior respeito pelas pessoas que as fazem, só que neste momento não me interessa fazer. Mas tens de ter essa escolha e ter dinheiro para fazer essa escolha. Eu tenho tido sorte. Não estou a trabalhar há dois meses, mas continuo a dizer não a algumas coisas, porque não me interessa e porque ainda posso dizer que não. Daqui a quatro meses se calhar já não posso. E é triste que ainda seja assim. Em último caso, o facto de estares a transformar os atores nestes trabalhadores que necessitam de um trabalho precário, faz com que os produtos não tenham a vertente artística do ator. E isso faz com que os produtos piores possam ser aprovados. Porque o dinheiro manda e não os atores. Se aparecessem com um projeto mau que vai dar muito público e um bom que vai dar pouco público, se os atores bons quisessem fazer o projeto bom e no outro tivesse os atores maus, se calhar a televisão era obrigada a escolher o projeto bom. Porque sabiam que os atores bons estavam ali, os que as pessoas querem ver estariam ali. E se calhar isso gerava público e podíamos fazer mais projetos bons. Mas para isso era preciso que não tivessem uma profissão precária e que a escolha fosse possível.

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