É um fenómeno que está presente na vida de muitas crianças e adolescentes, por vezes com contornos mais graves. O vídeo divulgado recentemente, que mostra um jovem a ser atropelado no Seixal depois de fugir das colegas que o insultavam, voltou a chamar a atenção para um problema muitas vezes escondido, mas que, segundo dados da GNR, afetou mais de 5.600 crianças em 2020.
Caracterizado por uma “diferença nos poderes e de forças” entre duas partes, o bullying consiste numa prática “sistemática e intencional de sofrimento emocional” através da violência física ou psicológica (ou ambas) a uma vítima. O bully — ou seja, o agressor — sente-se numa posição superior “ou porque é mais velho, mais forte fisicamente, ou porque se sente mais poderoso do ponto de vista da influência num determinado meio”, explica a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, Sofia Ramalho.
O problema atinge sobretudo crianças e adolescentes e tem muitas vezes lugar nos recreios das escolas, sendo que tem uma “maior prevalência nos jovens a partir dos 13 anos”, numa idade em que é normal que ocorram “desentendimentos breves” que até são “desejáveis”, por oferecem “oportunidades de desenvolvimento” no que diz respeito à “resolução de problemas”, destaca Sofia Ramalho. No entanto, o bullying distingue-se deste quadro, dado que as desavenças se prolongam no tempo e podem resultar em danos físicos e psicológicos para o agredido, que não é capaz de se defender por si próprio.
Ao Observador, a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos realça que, embora exista uma diversidade de casos de bullying, “os engenhos psicopatológicos [ou seja, o comportamento base de cada uma das partes] não são muito diferentes” entre eles. Por norma, enquanto o agressor não apresenta empatia, imitando “mecanismos de humilhação”, o agredido mostra um comportamento “passivo” e de “submissão” e não consegue travar o comportamento do bully.
O vídeo tornado público na terça-feira foi mais um episódio disto mesmo. É essa a convicção de José Lemos, pai da vítima, que acusa a escola que o filho e as agressoras frequentam de não fazer nada para impedir os comportamentos mais violentos. A Escola Básica Dr. António Augusto Louro negou, contudo, ter “conhecimento de conflitos entre estes alunos” e adiantou que, “tendo a direção tomado conhecimento do sucedido, deu início ao procedimento disciplinar previsto na lei”.
Rui Martins, da Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação (SNIPE), lembra que o bullying não é um fenómeno novo, mas, garante, “está a tomar contornos mais graves e perigosos e cada vez em idades mais novas”. “Preocupa-nos a forma leviana como tudo isto é tratado. Não só o bullying como depois a publicação nas redes sociais”, afirmou.
Pais devem ser responsabilizados por atos de bullying dos filhos
Rui Martins admite mesmo que em alguns casos se deve avançar para “uma penalização ajustada relativamente aos agressores e encarregados de educação”. Será uma solução? O que deve um pai fazer quando sabe que um filho é um bully e agride outros? O que está por detrás destes comportamentos mais violentos? E quais são os sinais de alerta a que os pais devem estar atentos?
O que leva uma criança a tornar-se um bully?
A pergunta não tem uma resposta simples. Sofia Ramalho explica que há uma “multiplicidade de fatores”, mas aponta que existe sempre “um sentimento de desajustamento”, principalmente na “integração do contexto escolar”. “Pode ser uma experiência de insucesso escolar, de insucesso da relação com os pares”, explica a psicóloga, que acrescenta que este sentimento dá lugar a “uma tentativa do uso de poder de forma sistemática como maneira de gerir o mal-estar e a insegurança”.
“Normalmente, o agressor vem de um fenómeno de escalada crescente de agressão em relação ao mal-estar”, aponta a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, que descreve que “há um aumento de agressões face aos seus pares”, havendo depois a “seleção daqueles em que o bully pode ter mais influência e poder para depois poder exercer essa agressividade”.
Na origem deste comportamento desajustado também podem estar problemas no contexto familiar ou ainda uma conciliação de fatores. “Há situações em que há disfuncionalidade familiar, sobretudo caracterizadas por ambientes onde predomina a violência e a agressão, que podem ser reproduzidos no contexto escolar”, refere Sofia Ramalho.
Ana Vasconcelos aponta no mesmo sentido. Conta que, na suas consultas, vê jovens sinalizados como agressores que copiam os comportamentos dos pais, que têm “atitudes pouco empáticas”. “O que acontece muitas vezes é: os filhos têm essas atitudes — de um certo gozo de humilhar os outros — porque eles próprios na sua própria casa veem alguém a ser vítima disso”, relata a pedopsiquiatra.
Sofia Ramalho lembra, no entanto, que pode até nem existir mau ambiente em casa, mas pode haver um fator de stress, como uma situação de divórcio, que pode desencadear um comportamento mais violento, sendo um mecanismo para lidar com essa adversidade. Pode ainda ser, de acordo com a especialista, uma “questão intra-individual que acontece no processo de desenvolvimento do jovem que, a partir de certa altura, se torna mais adaptativo e agressivo”.
E há ainda um fenómeno surpreendente: muitas vezes acontece que os jovens submissos podem também utilizar “os mecanismos dos agressores”, convertendo-se em bullies, explica Ana Vasconcelos.
A tudo isto, a Covid-19 também não ajudou. As “vicissitudes” trazidas pela pandemia, como a baixa autoestima e baixa autoconfiança, também acabaram por agudizar “mecanismos” que potenciam a adoção de comportamentos mais violentos, indica a pedopsiquiatra.
Quais são os sinais a que os pais devem estar atentos?
As duas especialistas reforçam que há sinais a tomar em atenção para se conseguir detetar que um jovem é um bully. A pedopsiquiatra defende que os pais “devem estar atentos às atitudes dos filhos”: “Quando dizem coisas de forma demasiado crua, desajustada da qualidade humana, simplesmente para ofender e sem qualquer sinal de empatia, é um motivo para estar alerta”.
Por seu turno, Sofia Ramalho aponta que “as situações de conflito constantes”, “as dificuldades a relacionar-se adultos”, os “comportamentos desafiantes por parte do bully” e a “a tendência para o descontrolo das emoções”, principalmente em situações em que “normalmente há uma maior externalização de emoção”, são sinais a que os pais devem estar atentos. Também se o jovem se desresponsabiliza constantemente das suas ações e culpabiliza os outros pelas suas atitudes, pode ser uma indicação de que pode existir um contexto de bullying.
Além disso, convém que os pais estejam atentos ao tipo de amigos que o agressor tem. Se forem violentos, há uma maior probabilidade de um jovem copiar o seu comportamento. E também há que monitorizar o comportamento dentro da sala da criança ou adolescente — se houver faltas disciplinares, faltas de respeito ao professor e atitudes agressivas, tal pode ser encarado como um sinal de preocupação.
De acordo com o portal do governo norte-americano stopbullying, os pais também devem estar atentos a se os filhos têm dinheiro extra ou então novos bens — isso pode significar que estão a tirar o dinheiro a alguém, neste caso a uma possível vítima.
O meu filho é um bully. O que posso fazer?
Não é fácil para um pai receber uma notícia destas, admite Sofia Ramalho, sendo a maneira como é comunicada “muito importante”: “Normalmente há uma tendência mais generalizada para olhar para um bully como um agressor, como alguém que tem de ser penalizado”. E, embora tenha de haver consequências relativas ao comportamento do jovem, há que ter em consideração que o agressor está “num processo de deajustamento psicológico” e uma atitude mais dura e acusatória pode ainda aumentar os “comportamentos exacerbados”.
É necessário haver, por isso, “um envolvimento de técnicos especializados para que esta comunicação com a família seja ajustada e para que se ative de imediato o apoio ao bully“, que vai fazer com que ele diminua “os comportamentos agressivos, promovendo-se a autorregulação e dando-lhe as competências necessárias para lidar com os fatores de stress” que estiveram na origem destas atitudes.
A família tem um papel determinante: tem de haver o esforço de se “conseguir conciliar a essa necessidade de apoio com a necessidade de haver regras e consequência para aquilo que foram os comportamentos desajustados”, sublinha Sofia Ramalho, que, dependendo também da gravidade das ações praticadas, aconselha a que os pais tomem algumas atitudes.
- É importante que se afaste o agressor e a vítima o máximo possível.
- Os pais devem tentar ir buscar os filhos à escola, uma vez que fora do recinto escolar há um menor controlo e pode haver uma escalada da violência.
- Aconselha-se a que haja um maior acompanhamento parental ao bully: observar os seus comportamentos e tentar entender o que despoleta os impulsos mais agressivos.
- Evitar culpabilizar e envergonhar o bully pelo seu comportamento. Em vez disso, deve tentar ter-se uma conversa assertiva sobre o dano que o agressor pratica à vítima e sobre as suas consequências.
- Interagir com os colegas e amigos de agressor e influenciá-los a dissuadir os impulsos do agressor.
- Sofia Ramalho defende ainda a perda de algumas regalias dos agressores, de modo a entenderem as dimensões das suas ações, responsabilizando-os pelos seus comportamentos. Castigos como perder o acesso ao telemóvel, não poder sair com os amigos e limitar o acesso às redes sociais são algumas sugestões.
Como é que as escolas devem lidar com o bullying?
A maior parte dos casos de bullying acontecem na escola, principalmente nos intervalos, num local onde deveria existir uma maior vigilância. Sofia Ramalho diz ser “fulcral” que os episódios de bullying sejam visionados “quer pelos pares, quer pelos assistentes auxiliares”, do modo a dar o alerta para a situação.
Sobre os jovens, a psicóloga considera que tem de haver uma “sensibilização das próprias crianças e adolescentes” por equipas especializadas, para que consigam identificar os sinais e depois informar um adulto. Também é importante “empoderar as vítimas” e isso só pode ser feito através da dinâmica com as testemunhas do bullying e incentivando-as a defender o agredido. Ou seja, os outros colegas têm um papel fundamental: se apoiarem a vítima, colaboram para travar o comportamento agressivo do bully. Daí que uma boa estratégia escolas possa passar por eles.
O papel dos professores também é fundamental, uma vez que eles podem servir como intermediário entre a família, o agressor e ainda o serviço de psicologia oferecido pela escola. Os psicólogos deverão ser depois capazes de “trabalhar o problema” em colaboração com os pais, de modo a “procurar uma solução para intervir e evitar episódios que podem evoluir para uma situação dramática”.