Nove anos depois de lançar a Kinematix, Paulo dos Santos entrou pela casa dos norte-americanos adentro. Com umas sapatilhas, uma app, um smartphone e um inglês com sotaque do Porto, mostrou-lhes a tecnologia com que estava a ajudar os atletas dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro a melhorar o seu desempenho. No calendário: 13 de julho de 2016. Na televisão, o canal NBC. Nas mãos, o Tune, o wearable (tecnologia que se pode vestir) com que a startup do Porto queria conquistar os consumidores e as marcas desportivas. Objetivo: monitorizar como se comportam os pés das pessoas quando andam ou correm (a pressão plantar) e sugerir-lhes planos de treino personalizados para melhorarem a sua performance e diminuírem as lesões. “O Tune é um grande game changer no mundo dos wearables“, escrevia Paulo Santos na altura.
O lançamento oficial do Tune ficou marcado para dali a quatro meses, a 27 de outubro, em São Francisco. Durante essas semanas, foram vários os especialistas e bloggers da área que o utilizaram, testaram e escreveram sobre ele. A dar o rosto pela inovação portuguesa, estava o maratonista norte-americano de 31 anos, Ryan Vail. Poucos dias depois do lançamento oficial das cinco mil unidades que a Kinematix desenvolveu para mostrar ao mundo Tune, a Portugal Ventures (que investia na empresa desde 2007) anunciava uma ronda de dois milhões de euros (Série C) na empresa. Até aquele momento, o organismo de capital de risco público já investira oito milhões de euros na startup do Porto.
A 14 de novembro de 2016, saía o comunicado da Portugal Ventures (PV) a anunciar o investimento. Celso Guedes de Carvalho, que liderava a capital de risco desde a saída de Marco Fernandes, em maio de 2016, escrevia na altura: “A Kinematix é um exemplo perfeito do tipo de inovação, tecnologia revolucionária e talento que podem ser encontrados em Portugal e capazes de competir a nível global.” Acrescentava ainda o presidente da capital de risco que o mercado da tecnologia de consumo era “difícil de penetrar”, mas que acreditava que o Tune ia “mudar a forma como os utilizadores interagem com os wearables — indo além da novidade e de ser ‘fixe’, para se tornar numa verdadeira ferramenta para ajudar as pessoas a melhorar a sua saúde a longo prazo”.
Na primeira semana de fevereiro de 2017, três meses depois do anúncio público da PV, Paulo dos Santos sentou-se na reunião habitual que tinha com os acionistas da Kinematix e soube que não veria o resto dos dois milhões de euros que a capital de risco tinha dito que iria investir na empresa. “Na reunião do conselho de administração, a Portugal Ventures manifestou indisponibilidade para transferir quaisquer fundos para a empresa, caso algum objetivo falhasse, o que não é uma afirmação nada comum em investidores em startups, que se movem na incerteza. O normal é as metas serem avaliadas, não com ‘régua e esquadro’, mas dentro do contexto e na altura prevista para a avaliação”, afirmou o presidente executivo da Kinematix ao Observador.
Naquela reunião, Paulo percebeu que, se cabia ao conselho de administração “sanar responsabilidades” caso os objetivos não fossem alcançados, então estava perante “um sinal claro de que a empresa tinha perdido o apoio do investidor. Ora, qualquer startup sem o apoio do investidor está condenada à morte. É ver como os investidores da Uber, mesmo sem suporte contratual para isso, conseguiram afastar o CEO, pois este sabe que, se a empresa perder o apoio dos investidores, mesmo tendo a dimensão que tem, morrerá e por isso ‘voluntariamente’ afastou-se”, explicou o presidente executivo.
Contactada pelo Observador, fonte oficial da Portugal Ventures explica que “o encerramento da empresa não é, naturalmente, o desfecho desejado nem pelos fundadores, nem pelos seus parceiros e acionistas, incluindo a Portugal Ventures. Foi motivado por circunstâncias que impediram a Kinematix de alcançar os objetivos que traçou, nomeadamente, a impossibilidade de assegurar o levantamento de nova ronda de investimento internacional que, em complemento com o investimento já acumulado pelos acionistas na empresa, permitiria dotá-la de capacidade financeira capaz de suportar o seu crescimento no cada vez mais exigente mercado de consumo internacional, onde se posicionou”.
A partir daí, Paulo teve duas ou três semanas para encontrar outras fontes de financiamento, explica o CEO. O investimento de dois milhões de euros tinha como objetivo investir em campanhas de marketing e comunicação do Tune e ficou, assim, sem efeito. Ainda assim, fonte oficial da investidora de capital de risco esclarece: “A Portugal Ventures acompanhou a equipa desde muito cedo no projeto e tem investido na empresa desde 2008. Apoiando a ambição de tornar o Tune num produto de sucesso, investiu no total cerca de oito milhões de euros, o que é atípico no ecossistema nacional“.
A solução para a empresa passava por duas vias, explicou o CEO da Kinematix: captar outros investidores ou acabar por ser adquirida (exit). As cinco mil unidades do produto com que a empresa se apresentou ao mercado tinham sido uma espécie de teste e era preciso produzir mais. “Quando se está a pensar numa escala global, cinco mil unidades é uma coisa muito pequenina. Tínhamos de dar o salto para, no mínimo, 50 mil a 100 mil unidades. Tudo o que fosse acima disso é que permitia resultados muito bons. Sendo uma empresa de hardware, os resultados não são como os das aplicações móveis. Olhe para a Apple. Os primeiros 10 anos da Apple foram tão maus que despediram o Steve Jobs”, conta.
Sublinhando que a PV tinha o “direito legítimo” de não pôr mais dinheiro na empresa caso não quisesse, Paulo conta que, na altura, não recebeu justificações para a decisão dos investidores e que tentou reverter a posição, negociando. Queria mais quatro ou cinco meses de financiamento para conseguirem outros investidores, mas sem sucesso. “Tentámos outras soluções, mas a conversa com os investidores terminava quando lhes dizia que o tempo limite para chegarmos a acordo eram duas ou três semanas. É muito difícil fechar um investimento em duas ou três semanas”, diz ao Observador.
O encerramento da empresa começou a parecer inevitável e a decisão de fechar portas foi tomada pelo conselho de administração. A partir dali, tinham várias hipóteses: a liquidação ou a insolvência. A prioridade começou por ser “estancar” tudo aquilo que consumia recursos financeiros, ou seja, salários. “Iniciámos um processo de despedimento coletivo. Empregávamos 27 pessoas. A partir do momento em que é claro que não há equipa, a empresa deixa de ter razão para existir. Não é possível desenvolver um produto tecnológico sem equipa”, disse. Entre a fatídica reunião do conselho de administração e o despedimento coletivo, passou “um mês e pouco”. No entretanto, Paulo pôs a equipa toda de férias.
“No minuto em que perdemos a equipa, para mim, a empresa morreu. Não havia alternativa. O que conta são as pessoas e o resto é conversa para especialistas, não é a patente que faz o produto, o que faz o produto é o know-how e a capacidade de execução das pessoas“, afirma. Até ao despedimento coletivo, os investidores estavam de acordo que, se aparecesse outro investidor, a atividade da empresa se mantinha. Não apareceu e, por isso, a atividade não se manteve. Em janeiro, a empresa tinha estado em destaque na publicação tecnológica de referência Wired como um dos gadgets para atletas a manter debaixo de olho durante 2017. Já em 2015, tinha sido eleita a Startup da Semana pela mesma publicação.
We're really excited to be featured in @WIRED :"Become your very own coach with these #athletic gadgets. "https://t.co/rXIlPIsh1n @bobparks pic.twitter.com/3sxgdpvKKr
— Kinematix (@_kinematix) January 24, 2017
Há 10 anos a monitorizar a mobilidade dos pés
Para falar do encerramento da Kinematix, é preciso recuar ao dia em que Paulo dos Santos se inscreveu no mestrado em Inovação e Empreendedorismo Tecnológico da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Estávamos em 2007 e “startup” era apenas um palavrão que ninguém sabia muito bem o que significava. Foi o ano em que nasceu o primeiro iPhone. E o Facebook era apenas uma criança a caminhar para o gigante que se tornou hoje.
Paulo dos Santos, pelo contrário, não era criança nenhuma. Tinha 42 anos, mas queria ter uma experiência diferente na vida. “Já não era novo e quando cheguei aos 40 entrei numa fase em que estava a pensar emigrar, queria ter uma experiência internacional forte. O meu grande objetivo era o de descobrir uma tecnologia que me permitisse ir para fora estando cá dentro”, conta o presidente da Kinematix.
Paulo é formado em Informática de Gestão, já tinha lançado uma empresa no ramo do imobiliário, mas quis inscrever-se num curso tão ousado como a sua ambição. “Era um mestrado novo, feito em parceria com uma universidade americana. Os alunos ficavam a saber o que andava a ser investigado na universidade e podiam pegar numa tecnologia para desenvolverem. Há 10 anos isto era muito arrojado e interessante, porque as universidades eram opacas em relação ao que se andava a fazer por lá “, conta. Foi assim que teve conhecimento do sistema que permitia monitorizar a mobilidade das pessoas.
Em 2007, Paulo direcionou a tecnologia para a área das correções ortopédicas. Juntamente com Catarina Monteiro e dois investigadores, Sérgio Cunha e Miguel Velhote, agarrou no projeto e apresentou-o ao Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores — Tecnologia e Ciência (INESC-TEC), que se tornou sócio da então Tomorrow Options (só em 2013 a empresa se viria a chamar Kinematix). O portuense vendeu a empresa que tinha e investiu cerca de meio milhão de euros do seu bolso no projeto novo.
“A minha missão era desenvolver o produto, mas era um desafio grande desenvolver hardware naquela altura“, conta. Ainda em 2007, a Tomorrow Options recebeu investimento de um consórcio de universidades, o Ciencinvest, que mais tarde foi absorvido pela Portugal Ventures. Foi assim que a investidora de capital de risco pública entrou no capital da startup, já em 2008.
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— Portugal Ventures (@PortugalVenture) January 16, 2017
Até 2014, a Kinematix atuou na área médica com três produtos diferentes, que recorriam à mesma tecnologia (monitorização da mobilidade): o primeiro permitia aos médicos que fazem correções ortopédicas avaliarem a evolução do paciente quando este sai do gabinete, registando todos os seus passos. O segundo estava direcionado para aquilo a que Paulo diz ser o sexto sentido.
“Ensinam-nos os cinco sentidos, mas não nos ensinam o sexto. Temos um sensor que nos dá a noção do mundo que nos rodeia. É por isso que sei que, se esticar o meu braço, consigo pegar naquela caixa. Há algo que se formou no meu cérebro sobre a distância que tenho de percorrer para que isso aconteça. Exploramos sempre a temática do movimento e desenvolvemos um segundo dispositivo, o moving sense, para colocar no peito dos pacientes acamados, que determinava durante quanto tempo estavam em cada posição e quando tinham de ser mudados. Isto ajudava os enfermeiros a reposicionar os pacientes”, conta.
Os produtos começaram a ser comercializados em 2011 e 2012. “É preciso dizer que, em 2007, tudo o que havia para análise biomecânica era muito grande e estava em laboratórios. O nosso desafio era fazer dispositivos mais pequenos, mais baratos, usáveis e que pudessem monitorizar as pessoas no dia a dia, sem que estas dessem por ela“, conta. O terceiro produto que desenvolveram foi a pedido de uma empresa norte-americana, a Hanger, mas não chegou sequer a ser comercializado.
“A Hanger é a maior empresa da área e queria que desenvolvêssemos ortóteses inteligentes”, conta. Cotada na bolsa de Nova Iorque, em 2014, aquela que era a empresa líder na área das próteses e ortóteses nos EUA começou a ter vários problemas que afetaram a relação com a startup portuguesa. “Começou a entrar em erosão interna e acabámos, nesse ano, a dialogar com uma empresa completamente diferente. Quando chegámos ao final do processo, a pessoa com quem interagimos já não tinha poder nenhum lá dentro. Foi a gota de água, que depois usei para convencer a Portugal Ventures a utilizar o mesmo conhecimento para a área de consumo”, diz.
Por esta altura, a empresa tinha vendido poucos dispositivos, sendo que os maiores mercados eram a Bélgica e a Holanda. O CEO queixa-se de que não tinha recursos financeiros suficientes para conseguir que uma empresa de dispositivos médicos vingasse num mercado que é altamente regulado. Nos Estados Unidos, sofreu o impacto da nova regulamentação para a área da saúde de Barack Obama, o Obamacare. “As grandes empresas têm forma de se adaptar a estas mudanças regulatórias, mas uma empresa como a nossa não conseguia mudar tão rapidamente”, conta.
Foi aí que resolveram mudar o ângulo, o modelo de negócio e o mercado. “Cansado da área médica e do pouco dinheiro que tinha para conseguir resultados”, Paulo propôs aos acionistas que utilizassem o conhecimento que tinham adquirido até então numa nova área, ligada ao desporto e ao consumo. “Já sabíamos muito sobre monitorizar braços, pernas, tronco e sobre como obter informação em aplicações de inteligência artificial e já tínhamos dado um grande salto tecnológico para baixo, baixando o custo de produção em cerca de 100 vezes nalguns casos”, conta. E o conselho de administração aprovou a proposta de mudança.
Estava dado o pontapé de saída para o Tune, uma tecnologia que se aplica na sapatilha, capaz de fornecer planos de fitness personalizados e individuais para cada utilizador, que permite aos treinadores manterem-se em contacto com os atletas e evitar potenciais lesões. Como? Medindo estatísticas básicas de GPS como ritmo ou velocidade ou o comportamento do pé no solo (dinâmica de postura, tempo de postura, passos e simetria). Os dados recolhidos nas palmilhas são sincronizados com a aplicação Tune no smartphone ou smartwatch e essa informação é processada para a cloud (nuvem) para elaborar planos de exercício personalizados.
Questionada pelo Observador, fonte oficial da Portugal Ventures explicou que “o Tune é um produto inovador a nível global, fruto de um processo de investigação e desenvolvimento de vários anos e encabeçado por uma equipa altamente qualificada. A sua inovação foi reconhecida internacionalmente e beneficiou de parcerias nacionais e internacionais para ser implementada no mercado e conseguir atingir um crescimento acelerado de vendas — o principal desafio que qualquer startup enfrenta quando quer crescer internacionalmente”. A equipa tecnológica da Kinematix começou a desenvolver o que viria a ser o Tune em janeiro de 2015 e a 27 de outubro de 2016, a tecnologia estava no mercado.
Entretanto, Paulo conta que começou a introduzir o produto em departamentos de Investigação & Desenvolvimento de algumas marcas desportivas, para testes, mas que sem investimento não havia como continuar. “As necessidades que a empresa ia tendo para cumprir com os planos foram sendo difíceis de conseguir junto dos acionistas, porque começámos a desenvolver um produto que seria lançado dali a dois anos. Dependíamos exclusivamente do dinheiro dos acionistas para cumprir com o plano de desenvolvimento. E foi o que aconteceu. Lançámos o produto em outubro do ano passado em 2016, dentro do prazo que seria esperado”, conta.
No momento em que o Observador falou com o presidente executivo da Kinematix, este ainda empregava uma pessoa que estava encarregue de formalizar as burocracias inerentes à atividade da empresa, e tentava evitar a insolvência abrindo vários processos de negociação com os diferentes credores. Havia dois que ainda estavam pendentes: um contrato com um pequeno fornecedor e outro contrato com “o maior de todos”. “Não posso falar em valores, mas estou otimista de que vamos chegar a acordo, porque a distância que nos separa não é muita”, afirmou, explicando que o nível de faturação não era o suficiente para fazer face às despesas. Não foram revelados valores.
“Só quero fechar esta empresa com toda a dignidade”
Na hora de olhar para o passado e tentar perceber o que correu mal, Paulo dos Santos confessa que houve “muitas coisas a terem grande influência nos resultados”. A primeira falha que aponta é a si próprio. “Fui demasiado ambicioso ao acreditar que se calhar era possível fazer uma empresa de hardware em Portugal“, diz, apontando o segundo dedo à mentalidade dos investidores em Portugal. “Acho muito difícil, contrariamente ao que muita gente imagina, que vai ser fácil captar investimento estrangeiro de grande qualidade e volume para Portugal. Não vai ser, não pela falta de qualidade das startups portuguesas ou dos empresários, mas pela natureza do capital de risco. E isto é um problema europeu”, diz.
Para Paulo dos Santos, a Kinematix teve de encerrar atividade, porque “não teve possibilidade de testar o produto no mercado, porque não teve recursos financeiros suficientes para implementar” o seu plano de negócio conseguir os resultados que acredita que estavam ao seu alcance. “Esta é a minha razão, outros terão outras razões. E agora ninguém vai saber quem tem razão… Outras pessoas podem dizer que não investiram porque não acreditavam que o produto pudesse ter sucesso e também é uma razão legítima. Mas vamos ficar sempre na dúvida, porque falta o facto. Acho que nunca se vai saber quem tinha razão, porque não houve os mínimos financeiros para vender o produto no mercado”, refere.
Agora que está a tratar dos últimos encargos da Kinematix, Paulo dos Santos diz que só quer “encerrar este capítulo o mais rapidamente possível” e fala do que lhe custa “ter de acordar de manhã e ser profissional o suficiente para lidar com assuntos que são desagradáveis, que é fechar uma empresa e fazê-lo com toda a dignidade“, diz. Sobre o futuro, diz que tem várias propostas em cima da mesa e que uma passa por emigrar. Mas a família quer ficar em Portugal e o portuense confessa que tem outras ideias de negócio por explorar, mas que precisa de descansar uns dias.
“Começar uma empresa em 2007 ou agora não é a mesma coisa. As condições hoje são muito melhores. Aprendi que o dinheiro não é todo igual e, em 2007, as opções de investimento são diferentes. Hoje, até a minha avó fala de startups. Este boom não existia, a visão que eu tinha do mercado de investimento era muito redutora. Hoje percebo que é um jardim zoológico. Se quero girafas, encontro. Se quero águias, encontro. É tudo muito mais acessível do que há dez anos. Mas a Europa está atrasada pelo menos uns 10 ou 15 anos em relação aos EUA. Estamos agora a cometer os erros que eles cometeram há vários anos”, conclui. Dez anos e mais de oito milhões de euros de investimento depois, a Kinematix chegou ao fim.