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Roger Schmidt e Rui Costa com Daniel Lorenz, agente que conheceu o técnico na China e apresentou o nome do alemão ao Benfica
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Roger Schmidt e Rui Costa com Daniel Lorenz, agente que conheceu o técnico na China e apresentou o nome do alemão ao Benfica

Roger Schmidt e Rui Costa com Daniel Lorenz, agente que conheceu o técnico na China e apresentou o nome do alemão ao Benfica

Paixão por Portugal, o avião privado de Rui Costa, uma exigência da mulher: a história da contratação de Schmidt e como montou o Rogerball

Técnico foi proposto em dezembro. Primeira reunião em fevereiro, Rui Costa viajou até Düsseldorf em abril. Mulher pediu apenas para levar cães e cavalos para Lisboa. Sucesso foi "ganho" na pré-época.

Não é a resposta mais comum olhando para todas as conferências ao longo da época, podia ser uma resposta natural dentro de um outro contexto, ficará como uma das respostas mais bruscas e em paralelos diferentes da temporada. Quando Roger Schmidt foi questionado sobre a arbitragem no encontro com o Sp. Braga e sobre uma possível grande penalidade por assinalar de Grimaldo sobre Ricardo Horta, o alemão foi taxativo na forma como arrumou o assunto. “Se viu este jogo e quer falar sobre o árbitro, não pode gostar de futebol. Se alguém depois deste encontro, em que uma equipa jogou de uma forma ofensiva e com coragem e venceu apenas 1-0, vem falar de árbitros, isso para mim é ridículo”, atirou, já depois de ter considerado todos os momentos de tensão nos minutos finais da partida como “uma confusão bem controlada pelo árbitro”.

Em condições normais, esta seria uma resposta tipo de um treinador que teve apenas um grande excesso que lhe valeu o cartão vermelho em Vizela após ter respondido às provocações que vinham dos adeptos da casa – e que o próprio assumiu que tinha sido bem exibido. Aliás, até determinada fase, falar de árbitros e do tempo era a mesma coisa para o germânico. Foi isso que lhe foi valendo, por mais do que uma vez, os elogios de ser “uma lufada de ar fresco”. E uma lufada protagonizada por alguém que outrora ficou reconhecido por ações e reações mais temperamentais. Os anos foram mudando Schmidt. Schmidt mudou o Benfica. E o Benfica, neste caso o facto de estar inserido na realidade portuguesa, também mudou o Schmidt que se tinha mudado com o passar dos anos. Exemplo? Os piores 13 dias da época, com quatro jogos sem vencer.

Uma das vantagens da chegada do antigo técnico do PSV foi também a possibilidade de trazer alguém alheio aos casos e casinhos que tendem a proliferar no futebol nacional. No entanto, e nessa série, Schmidt falou e muito de arbitragem. “Tivemos azar no penálti, acho que também podíamos ter tido um ou dois a favor mas temos de aceitar”, referiu após a derrota por 2-0 com o Inter, que se seguiu ao desaire na Luz com o FC Porto. “Não sei porque é que o VAR não interferiu, era penálti. Talvez tenha sido difícil para o árbitro ver mas na televisão vê-se que há um pontapé no Otamendi, é penálti”, comentou depois do desaire por 1-0 em Chaves. “Fomos infelizes com a arbitragem. Houve um penálti claro sobre o Aursnes, não percebo por quê o VAR não chamou o árbitro. Na semana passada foi igual. Por mim podem acabar com o VAR, não faz sentido assim”, atirou no empate a três em Milão que valeu a eliminação nos quartos da Liga dos Campeões.

Assim como houve uma germanização na maneira de ver um jogo de futebol que foi a chave do sucesso do Benfica, com uma vertente mais dominante e ofensiva do que era habitual tentando conciliar algo que nem sempre anda de mão dada entre resultados e qualidade, Schmidt foi alvo de um aportuguesamento  na forma de avaliar os desaires que foi tendo numa fase onde se fez também uma ligação precoce entre a renovação de contrato e a queda nos resultados. No entanto, e recuperado que foi esse equilíbrio que tinha sido a imagem de toda a temporada (nos primeiros 45 jogos da época, incluindo os duelos com o PSG, a equipa só perdera uma vez em Braga, para a Liga), o retrato final que fica é o de um treinador que chegou, viu e venceu pelos seus princípios e com os seus princípios à luz dos princípios que a nova estrutura do futebol gizara.

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“Roger Schmidt foi o primeiro pilar do projeto. Traçámos o perfil. Definiu-se se seria português ou estrangeiro. O primeiro aspeto era a qualidade, queríamos um jogo atrativo. Desde que tivemos a notícia que poderia não renovar, fizemos a primeira abordagem. Na primeira conversa fiquei com a convicção que seria o futuro treinador do Benfica. Se olharmos para o plantel do ano passado e o deste ano conseguimos perceber as mais-valias de futuro. O esforço que fizemos está salvaguardado com o futuro do Benfica e com os ativos que tem. Umas das premissas foi não olhar tanto para os números de forma racional e apontar a um plantel forte, coeso e que dá garantias. Vai ser preciso tempo para estarmos bem desportivamente e financeiramente. Foi uma reestruturação grande mas foi tudo feito com princípio, meio e fim”, frisara o líder dos encarnados após o fecho da janela de mercado do verão, já depois de explicar numa Assembleia Geral a necessidade de mudar o paradigma. Luís Filipe Vieira, o antecessor, criticou a escolha. Até aí Rui Costa ganhou a aposta, assumindo agora que o alemão não era uma primeira opção porque não sabia que teria interesse no Benfica.

Roger Schmidt chegou, viu e venceu no Benfica, onde além de sagrar-se campeão chegou aos quartos da Champions

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como a China mudou a parte mais impulsiva de um técnico com sangue frio e coração quente

Roger Schmidt poderia ser hoje apenas um engenheiro mecânico que de quando em vez jogava ou treinava equipas amadoras ou de amigos ao fim de semana. Aliás, a própria carreira que teve como jogador (jogando na frente) não fazia apontar a tão altos voos, entre equipas amadoras ou mais modestas como o RW Lüdenscheid, o TuS Plettenberg, o TuS Paderborn-Neuhaus, o SC Verl, o Paderborn, o SV Lippstadt 08 ou o Delbrücker SC. O que fez a diferença? A paixão que sempre teve desde miúdo pelo jogo. Como todos os mais novos, gostava de jogar o jogo; como só alguns mais velhos, gostava de perceber o jogo. E a forma como falou desse início numa entrevista ao Der Spiegel em abril, explica em parte o fenómeno de transformação de um Benfica que não ganhava qualquer título desde agosto de 2019, na goleada ao Sporting na Supertaça.

“Primeiro apareceu o amor pelo futebol. Eu amo o futebol, já em pequeno gostava. Comecei a jogar na rua, não tive uma grande carreira. Joguei na 3.ª Divisão mas ainda assim gostava de jogar. Adorei jogar todos os domingos e nunca pensei que o futebol viesse a ser a minha profissão. Não achei que viesse a ser treinador, para mim isso era inconcebível. Quando comecei a trabalhar como treinador continuava a ser inconcebível, era mais um passatempo. Ainda assim o amor ao futebol marcou-me tanto… Era avançado e a coisa mais bonita quando uma criança começa a jogar é o momento em que se chega à baliza e marca um golo. No fundo, tudo passa por marcar golos, ter a bola no fundo das redes. Quando o [David] Neres faz o cruzamento e o João Mário encosta para golo, esse é o momento que o estádio todo esperava. A ideia de criar esses momentos marcou-me. Nunca acreditei em ficar na defesa à espera que acontecesse algo na área adversária. Temos de agarrar o destino com as nossas próprias mãos. Não há vitórias garantidas mas podemos aumentar as probabilidades de vencer e isso só pode acontecer se tivermos uma abordagem muito ativa”, referiu.

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Episódio 1: “O Sequestro do Voo 131”

“Quando comecei a trabalhar como treinador, em Delbrück, nem sequer pensava muito nisso. Era uma coisa minha, vinha de dentro, não tinha grande… Fui dando passos na formação de treinador paralelamente à minha carreira ativa mas na realidade nem pensava muito nisso, como queria jogar, como queria que fosse o meu futebol. Comecei e depois, a cada dia, tentava encontrar a melhor forma para treinar os jogadores, para transmitir essa motivação, essa paixão. Depois, com a experiência, isso foi-se desenvolvendo. Acabei por reparar que estava a resultar e pensei ‘Isto é mesmo possível’. Quanto mais acreditas em ti, mais os jogadores acreditam. Quanto mais os jogadores acreditam, mais possível se torna que venham a marcar a diferença. Contudo, antes de conseguires que os jogadores acreditem, é preciso que sejamos nós a acreditar. É esse o primeiro momento e é preciso encontrar esse caminho. Não sou um treinador que pensa que o adversário joga de determinada forma. Para mim é 100% claro como vamos jogar. Vejo como o adversário joga, dou algumas indicações, mas nós jogamos à Benfica e jogamos para vencer”, acrescentou o alemão.

Nascido em Kierspe, Schmidt nunca abdicou dos estudos e foi na Universidade de Paderborn que fez o curso de engenheiro mecânico, indo depois trabalhar para a Benteler Internacional. Durante essa fase, em 2004, foi convidado pelo Delbrücker para ser jogador e treinador ao mesmo tempo. Em 2006, após decidir acabar a carreira com 31 anos, teve uma proposta para ficar apenas como técnico. Aceitou mas com uma condição: iria fazer apenas um ano. Porque queria focar atenções por completo no trabalho como engenheiro, porque não pretendia ter uma vida semelhante à que tivera como jogador em detrimento de mais tempo com a família, porque queria ver os filhos crescer. O futebol era uma paixão, o bom ordenado como engenheiro a fazer algo que também gostava era a sua realidade. No final de 2007, era isso que estava assente na sua cabeça. O que mudou? Um convite do SC Preussen Münster que tinha uma cláusula importante: caso saísse, o clube teria de encontrar um emprego como engenheiro na cidade. Em março de 2010, o próprio abdicara disso.

Aquilo que vivera tinha sido demasiado intenso para colocar um ponto final no futebol. Preferiu colocar entre parênteses a carreira para a qual se tinha formado e optou por adotar as reticências que norteiam a vida de qualquer treinador sem saber o passo seguinte. O Paderborn, da Bundesliga II, abriu-lhe as portas para que sentisse que tinha ali uma janela de oportunidade para fazer carreira. Apesar da quinta posição com uma goleada por 10-0 na Taça ao modesto Rot Weiss Ahlen, chamou a atenção do Red Bull Salzburgo. Atingira o patamar seguinte, nos dois anos mais importantes no desenvolvimento enquanto treinador com nomes que hoje todos conhecem como o então diretor desportivo de todo o projeto desportivo da Red Bull, Ralf Rangnick, que passou pelo Manchester United, ou o seu adjunto Oliver Glasner, que ganhou a última Liga Europa pelo Eintracht Frankfurt. O futebol ofensivo que sempre quisera na teoria ganhava outro corpo.

Quando assinou pelo SC Preussen Münster, Schmidt colocou uma cláusula no contrato onde o clube teria de encontrar um trabalho como engenheiro mecânico na cidade em caso de despedimento

Bongarts/Getty Images for DFB

Schmidt deu nas vistas por pormenores atípicos mas que corporizavam a sua obsessão por todos os detalhes como a sirene que fazia soar nos treinos quando a equipa sem bola demorava mais de cinco segundos até recuperar a posse. Nem sempre os princípios funcionam, bastando para isso ver o que Rangnick sofreu na sua curta passagem por Old Trafford, mas ali consolidavam uma identidade do treinador que até há bem pouco tempo ainda andava entre engenharia e futebol sem que deixasse de existir flexibilidade (e um pouco à força) em termos táticos: após várias discussões com o diretor desportivo pelos golos que o suplente Alan marcava saído do banco por não ter lugar num 4x2x3x1 que contava sempre com Jonathan Soriano na frente, começou também a arriscar jogar com dois avançados mais puros. Tendo jogadores que chegaram ao topo mundial como Sadio Mané ou outros que foram para patamares maiores como Kevin Kampl (Red Bull Leipzig), a primeira época correu mal, sem troféus e com uma eliminação nas qualificações para a Liga dos Campeões frente ao modesto Dudelange, mas a segunda acabou em dobradinha com 18 pontos de avanço.

Seguiu-se novo desafio um patamar acima, no Bayer Leverkusen, com um início a cumprir os “mínimos” no contexto onde estava inserido: quarto lugar na Bundelisga, derrota nos penáltis nas meias-finais da Taça da Alemanha com o Bayern, saída da Champions nos oitavos com o Atl. Madrid. No entanto, Schmidt fazia a diferença e chamava a atenção da própria imprensa internacional pelo futebol ofensivo e atrativo que tinha construído na equipa, como numa entrevista ao The Guardian onde admitiu que nunca quis ser treinador. Mais: aquilo que hoje se vê do alemão no banco tem pouco a ver com aquilo que era nessa altura, sempre com grande atividade no banco e com atitudes menos ponderadas como numa expulsão num jogo frente ao B. Dortmund onde se recusou sair do banco e fez com que o encontro fosse mesmo suspenso. Só em 2016/17 houve uma época abaixo do que era esperado e de forma natural acabou por ser dispensado ainda antes do final da época. Como a engenharia ficara de parte, esperou pelos próximos convites. E arriscou.

Roger Schmidt teve uma ligação próxima com Ralf Rangnick no Red Bull Salzburgo, onde ganhara o único campeonato da carreira

Pela primeira vez desde que conhecera Heike, a sua mulher, o futebol levava Schmidt para um país onde não estava com a família, a China. Todas as pessoas mais próximas “concordaram” com essa passagem para o Beijing Guoan numa altura em que o país estava ainda apostado em fazer crescer o futebol (agora a realidade mudou também pelos problemas financeiros adensados pela Covid-19), a experiência diferente de tudo o que viver também o cativou e a parte financeira obviamente que pesou — e muito. O técnico não teve propriamente uma grande escola para crescer na forma como olhava para o futebol mas foi mudando na maneira como olhava para a vida pessoal e profissional, aproveitando a realidade diferente onde estava inserido para ir anulando alguns excessos que tinha fruto da impulsividade e trocando-os por novas “armas” para conquistar um grupo através das interações pessoais, do trabalho de campo e da crença na ideia que era colocada.

Dois anos depois de ter assinado, e com a conquista de uma Taça pelo meio, Schmidt teve uma despedida de herói no aeroporto quando deixou o clube, sinal de que o trabalho tinha deixado marca a vários níveis. A começar pelo plantel, o alemão acabou com algumas más rotinas que estavam enraizadas, como o controlo da alimentação perante dietas demasiado calóricas dos jogadores e a limitação do uso de telemóvel durante as concentrações dos jogadores por forma a conseguir criar um maior espírito de grupo entre os atletas, deu nas vistas por uma forma ofensivas de olhar para o jogo que “pegava” nos treinos e teve gestos que marcaram o plantel como quando conseguiu evitar que um jogador fosse preso no aeroporto por protestar com um atraso no avião que ia transportar a equipa. Assim, e quando partiu da Ásia em 2019 para mais tarde comandar os neerlandeses do PSV, teve um grupo de adeptos a despedir-se e a agradecer pelo trabalho feito.

Ao longo de pouco mais de dois anos, Schmidt consolidou a versão mais madura enquanto treinador. Não chegou a ser campeão, ganhou uma Taça e uma Supertaça frente ao Ajax, continuou a criar jogadores de base como acontecera antes no Red Bull Salzburgo e no Bayer Leverkusen (Kai Havertz é exemplo paradigmático disso mesmo), manteve uma ideia de jogo ofensiva, intensa, com especial atenção à organização da equipa sem bola para a partir daí transformar uma recuperação num ataque rápido e deixou de ter respostas mais azedas aos jornalistas ou atitudes mais temperamentais em campo como acontecera sobretudo na Alemanha. “Como treinador, podes ter toda a convicção sobre um sistema tático mas nunca podes ignorar a vontade dos jogadores para o implementarem. O sucesso da equipa tem de estar sempre em primeiro lugar”, defendeu durante a passagem nos neerlandeses. Os jogadores eram cada vez mais o centro de tudo.

Schmidt foi expulso por Felix Zwayer num jogo entre Bayer Leverkusen e B. Dortmund mas recusou sair do campo durante alguns minutos

Bongarts/Getty Images

Quando foi contactado pela primeira vez pelo Benfica e por Rui Costa, Roger Schmidt entendia que o ciclo no PSV já se tinha esgotado. Aliás, olhando para todo o seu percurso, percebia-se que ou renovava por mais uma época ou saía já em 2022, mesmo que isso fizesse com que parasse por uns tempos – e com isso tivesse mais tempo para estar com a família e nos seus hobbies, onde se incluem snowboard, ténis ou jardinagem na casa de férias que tem em Palma de Maiorca. Aquilo que os encarnados apresentaram foi como um amor à primeira vista na fase da carreira em que chegara ao estado de maioridade. Aliás, a partir do momento em que surgiu essa possibilidade o próprio alemão, que tinha recusado algumas propostas em janeiro incluindo um regresso pela porta grande à Bundesliga, deixou de ouvir mais abordagens. O acordo foi fácil de alcançar e, quando terminou a temporada nos Países Baixos, focou-se a 100% no novo desafio.

Mas a própria forma como Roger Schmidt chegou ao Benfica é por si só o primeiro capítulo daquilo que se viria a tornar uma história de sucesso com outro elemento pelo meio que até tivera antes ligações ao rival FC Porto. Ainda na China, o técnico conheceu o agente Daniel Lorenz quando este transferiu Hulk para a Liga do país em 2016/17 e a partir criou-se uma relação boa entre ambos que viria a ajudar na chegada do alemão à Luz apesar de antes ter estado no outro lado da barricada: Lorenz, antigo diretor jurídico da SAD portista, foi o grande protagonista do caso dos encarnados e do V. Guimarães contra os dragões pela participação na Champions em 2008/09, numa batalha que terminou com a vitória para os azuis e brancos.

Schmidt estava a cumprir a segunda época do PSV mas terminava contrato no verão. Em tempos, o técnico explicara ao agente o tipo de desafio que gostaria de abraçar após a passagem pelos Países Baixos, sendo que as ideias tinham como enquadramento um destino: o Estádio da Luz. Ainda no final de dezembro, quando o Benfica enfrentava a turbulência criada com a saída de Jorge Jesus (e tudo o que se disse na altura), Daniel Lorenz apresentou a Rui Costa o nome do alemão como opção para 2022/23, sendo que com a promoção de Nelson Veríssimo da equipa B para a formação principal ficara definido que a vitória no Campeonato seria um carimbo de garantia na continuidade para a época seguinte. Os resultados não apareceram e, no final de fevereiro, surgiram os primeiros contactos com o alemão. Nessa altura, o presidente não esteve.

Lourenço Pereira Coelho e Nuno Gomes marcaram presença na primeira conversa que houve com o técnico e com Daniel Lorenz na Alemanha. As impressões foram muito positivas para os dois lados, os contactos foram prosseguindo e Rui Costa viajou pessoalmente num avião privado até Düsseldorf no final de abril para falar com Schmidt, de quem tinha referências não só dos jogos com o PSV na qualificação para a Champions mas também do Bayer Leverkusen (duas equipas com uma matriz de jogo muito idêntica). Essa conversa veio confirmar aquilo que o técnico tinha há algum tempo na cabeça: vir para Portugal, país do qual sempre gostou, vir para o Benfica que reconhecia como grande clube, e vir para uma realidade que permitiria ter outra visibilidade e ambição a nível de títulos. Ainda assim, os encarnados não eram os únicos na corrida e, antes de formalizar em maio os acordos que tinham vindo a ser discutidos, Roger Schmidt recusou duas propostas da Premier League e da Liga espanhola. Queria viajar para Portugal. Ele e a família.

Como o filho Jordi viria a reconhecer no final do jogo com o Santa Clara, todo o clã Schmidt ficou rendido não só a Lisboa mas também ao próprio clube. “Nunca tínhamos sentido isto nos outros clubes, nem sequer a 25%. Melhor momento? Hoje [Sábado[, 100% de certeza. E não fui só eu, a minha mãe também se tornou cada vez mais e mais seguidora do futebol”, comentou à BTV. E a mulher do treinador teve a sua influência na vinda de Schmidt para o Benfica, sendo que perante tudo o que foi conversado a única coisa que pediu foi mesmo para levar os cães e os cavalos de Düsseldorf para Lisboa, como viria a acontecer a partir de 24 de maio, quando uma semana depois do final de 2021/22 o casal veio procurar casa e esteve no Seixal.

Roger Schmidt entrou com Rui Costa e Otamendi na cerimónia da entrega da taça e das medalhas de campeão ao Benfica

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“Roger Schmidt teve sempre um grande fascínio por Portugal e pelo futebol português. Quando esteve a trabalhar na China fazia estágios em Portugal, no Algarve, e isso ajudou a que esse amor pelo nosso país fosse crescendo ainda mais. Ele queria muito ter esta experiência. Sou meio-português, meio-alemão e claro que isso ajudou a aproximar-nos. Temos uma boa relação e quando foi público que o Benfica poderia estar prestes a trocar de treinador, achei que o Roger poderia ser uma boa solução. Alguém fora do circuito, que iria partir do zero, em Portugal, e que traria seriedade, ética no trabalho e, claro, um futebol positivo, muito ofensivo, de grande espectacularidade. O presidente Rui Costa disse-me, mais tarde, que já apreciava muito as ideias e o estilo de jogo deste treinador desde o momento em que o Benfica tinha defrontado o PSV”, confidencia ao Observador o agente Daniel Lorenz, que resumiu os segredos do sucesso.

“Roger Schmidt privilegia as boas relações com os jogadores, a educação e a proximidade. Foi sempre assim na sua carreira. Sabe premiar quem merece, tenta sempre ser justo”, salienta Lorenz.

Da surpresa António Silva quando ninguém o conhecia ao plano B dentro do plano A

A contratação de Roger Schmidt foi não só a tentativa de fazer uma mudança de paradigma mas também a estreia de uma nova dupla a pensar o futebol do Benfica, entre Rui Costa e o regressado Lourenço Pereira Coelho. Apesar de ser uma peça discreta, que gosta de andar longe dos holofotes mas que conhece muito bem os cantos à casa por onde passara até 2017, o novo líder do edifício profissional esteve envolvido no dossier da contratação do treinador e percebeu aquilo que o presidente dos encarnados pretendia, com um nome que não lhe tinha passado ao lado quando o Bayer Leverkusen e o PSV se cruzaram com o conjunto da Luz e/ou equipas portuguesas. Em termos internos havia quem pensasse que não fazia sentido apostar num treinador estrangeiro, para Rui Costa isso era quase uma necessidade e o alemão sucedeu mesmo a Quique Flores, que tinha sido o último técnico não português nas águias (sem qualquer sucesso) 13 anos antes.

Os elogios de Schmidt à chegada no dia 1: “É um dos melhores do mundo. Se amamos futebol, amamos o Benfica”

De acordo com o que foram explicando ao Observador, Schmidt começou a fazer a diferença ainda na pré-temporada. Aliás, sendo certo que os resultados e as exibições no arranque também ajudaram, foi ainda antes do início dos treinos que começou a dar nas vistas pela forma como analisou todos os processos pendentes. Um exemplo prático: em termos internos, Tomás Araújo estava na calha para subir ao conjunto principal que contava com Otamendi, Vertonghen, Morato e Lucas Veríssimo, ainda a recuperar de lesão e como tal de fora das opções a breve prazo. Primeira decisão, neste caso a difícil: explicar a Vertonghen que, caso ficasse na Luz, não teria grandes hipóteses de jogar até pelas características que pretendia nos seus centrais, algo que aconteceu por mais do que uma vez. Segunda decisão, neste caso a mais “fácil”: procurar um jogador dentro do perfil definido que até acabou por ser emprestado (João Victor, sendo que Brooks veio por seis meses porque também se lesionou). Terceira decisão, neste caso a que criou surpresa: Tomás Araújo poderia sair por empréstimo mas António Silva era para manter, mesmo que a treinar na A e a jogar na B, numa decisão “confirmada” pelos estudos internos que o colocavam potencialmente ao nível dos melhores.

Roger Schmidt já tinha ganho uma Supertaça pelo PSV e despediu-se com a conquista da Taça dos Países Baixos

Depois, aconteceu futebol: Vertonghen saiu, Lucas Veríssimo e João Victor continuavam a recuperar, John Brooks nunca foi uma real opção de início, Morato também se lesionou com alguma gravidade. António Silva, o tal que Schmidt pedira para ficar no seu radar, foi promovido a titular ao lado de Otamendi. Até hoje, tanto que foi mesmo ao Mundial como quarto central de Portugal. E o jovem brasileiro, que antes era indiscutível, desceu a terceiro da hierarquia. Como António Silva houve mais, mas o que ficou para os responsáveis foi a forma como o alemão foi analisando um por um todos os jogadores com quem o Benfica tinha ligação para ir promovendo aquilo que seria melhor a curto e médio prazo para o clube e para os atletas, sendo que se a opção passasse por uma saída (em definitivo ou por empréstimo) o próprio fazia questão de chamar o jogador em questão não só para comunicar mas para explicar de forma detalhada o porquê da sua decisão.

Depois, um outro ponto que fez a diferença. Mesmo estando na pré-temporada, uma fase habitualmente vista como um período de testes, Schmidt apostou sempre na mesma equipa de início (algo que não é habitual de ver) para ir consolidando um sistema e uma ideia de jogo e não teve qualquer problema em “mostrar” aquilo que estava a trabalhar mesmo aos adversários que teria pela frente até à fase de grupos da Champions, neste caso o Midtjylland e o Dínamo Kiev. Os encarnados foram ganhando todos os encontros oficiais (e foram 13 vitórias consecutivas travadas por um nulo em Guimarães), jogavam bem e empolgavam uma massa adepta que até poderia inicialmente desconfiar mas que de forma rápida ficou rendida enquanto o treinador lidava de forma muito pragmática com a possibilidade de saída de Gonçalo Ramos ou a chegada de Ricardo Horta, que chegou a elogiar numa conferência de imprensa. Nenhuma chegou a acontecer.

O primeiro objetivo estava alcançado: encurtar o natural período de adaptação da equipa ao que era pedido fazendo-o com jogos oficiais e com margem de erro quase nula. Seguia-se a segunda meta, também ela com o seu quê de complicado mas superada, de manter a motivação de todos os jogadores para que fossem opção assim fosse necessário em nome de um bem maior que era a equipa. Foi assim que Alexander Bah foi tendo as suas oportunidades até ganhar o lugar a Gilberto, foi assim que mais tarde Chiquinho mostrou ter as condições necessárias para disfarçar no plano interno a saída de Enzo Fernández, foi assim que de forma mais recente Petar Musa mostrou que é uma opção importante no ataque como titular ou suplente utilizado. Houve “azias”, como a passagem de David Neres pelo banco, mas sempre com o balneário controlado.

epa10578926 Benfica’s head coach Roger Schmidt  speaks with his players during a training session at Giuseppe Meazza stadium in Milan, Italy, 18 April 2023. Benfica will face Inter Milan in a second leg quarter final match of the UEFA Champions League on 19 April 2023.  EPA/MATTEO BAZZI

Treinador alemão teve de acelerar processos de trabalho na pré-temporada, tendo em conta a proximidade das eliminatórias da Champions

MATTEO BAZZI/EPA

Essa foi a outra chave do sucesso quase instantâneo de Schmidt: a forma de lidar com os jogadores dentro das suas opções, algo que começou também a ser construído desde a pré-temporada e que se foi percebendo em termos internos em pormenores como os dias de folgas ou férias dados ao grupo quando havia uma pausa competitiva maior por entender a necessidade de descanso mental dos atletas. De forma quase natural, e perante os resultados no Campeonato e na Liga dos Campeões que quase “apagaram” as saídas da Taça da Liga (pela diferença de golos) e da Taça de Portugal (nas grandes penalidades, tendo jogado largos minutos com menos um jogador), Rui Costa quis salvaguardar o treinador e abordou Roger Schmidt para renovar contrato, aumentando não só o salário mas também a cláusula de rescisão numa conversa que, antes dos habituais formalismos, durou um par de minutos – o alemão queria continuar.

“Estou muito feliz por estar aqui, fazer parte do Benfica e trabalhar nesta linda cidade e país. Aprecio muito o facto de as pessoas acreditarem em mim e vou dar o meu melhor para trabalhar arduamente com a minha equipa, os jogadores e jogar bom futebol para sermos bem sucedidos. O Benfica é um dos melhores clubes do mundo. Se amamos futebol, amamos o Benfica. Desde o primeiro momento, das primeiras conversas, esteve sempre na minha mente que poderia ser uma ótima opção fazer parte deste clube e desta família”, disse quando aterrou em Lisboa para assinar. “Não sei se é o meu clube de sonho, é difícil dizer isso. Mas é, sem dúvida, um clube especial. Senti-o desde o início. Estou em Lisboa há duas semanas e consigo sentir a paixão e o amor dos adeptos pelo clube. Olho para o mar durante os treinos e às vezes acho que tenho de me beliscar para acreditar que é verdade”, destacou em setembro em entrevista ao Münstersche Zeitung. Em paralelo com esse estado de espírito, também a família teve quase um amor à primeira vista com a cidade, sendo que a mulher esteve presente na maioria dos jogos e o filho tornou-se “um verdadeiro adepto”.

“Para mim, como amante de futebol, podemos falar de grandes clubes e o Benfica é um deles, ao nível de um Real Madrid ou de um Barcelona. O Benfica é o expoente máximo do futebol. Historicamente, e em termos de dimensão, é muito especial. Não houve ninguém a comprar o clube por quatro mil milhões de euros e a injetar aqui dinheiro de repente. É um clube em que as pessoas poupam todos os meses para poder ir ao estádio, é um clube que tem de vender jogadores para funcionar, um clube com 20 modalidades diferentes e todas as pessoas acompanham essas modalidades com paixão. O clube tem grandes objetivos. O Benfica joga para vencer títulos, temos de dar alegrias aos adeptos. É preciso preparar os jogadores para assumir essa responsabilidade. Têm de estar ao mais alto nível e isso não acontece se nos concentramos apenas em 11 jogadores. É claro que em todos os jogos há uma equipa titular, mas temos de olhar para o grupo todo”, destacou em abril numa entrevista à Der Spiegel, onde entre sorrisos assumiu que só falhara numa “promessa”: aprender português, “uma língua difícil e que envolvia grande investimento temporal”.

Foi pouco depois que Roger Schmidt enfrentou os 13 dias mais complicados desde que chegara à Luz, com uma série de quatro encontros consecutivos sem vencer que valeram a eliminação da Champions com o Inter e a passagem da vantagem do Campeonato de dez para quatro pontos. Falou-se de tudo um pouco, da parte das férias concedidas aos jogadores na paragem para as seleções à renovação de contrato antes do final da temporada, mas o principal problema na cabeça do alemão era resolver um problema técnico que começava a mexer com a parte anímica dos encarnados. Quando Gilberto ou Bah se lesionaram, houve solução. Quando David Neres teve questões físicas, houve solução. Até quando Enzo Fernández saiu, houve solução (mais num plano interno do que na Europa). Agora, era necessário algo mais para mostrar que o Benfica tinha um plano B mesmo que esse plano B fosse um plano A com outros intérpretes. Assim se tornou campeão.

Roger Schmidt encontrou um plano B dentro do plano A frente ao Estoril, num encontro que estancou a pior série da temporada

Nessa fase, o técnico mudou. Acusou o momento. As conferências eram diferentes, até aquele cumprimento sempre a olhar nos olhos aos jogadores e com um sorriso nos lábios antes do início de qualquer treino e/ou jogo mudara de forma circunstancial. Apesar de aparecer no calendário como apenas mais uma partida, a chave do título esteve na receção ao Estoril. Schmidt mexeu na equipa: manteve Aursnes no lado direito da defesa como arriscara na segunda parte do jogo em Milão, ganhou espaço na frente para promover o regresso de David Neres e apostou em João Neves para a primeira fase de construção abdicando do mais posicional Florentino Luís (na jornada seguinte seria ao contrário e Chiquinho começaria no banco um encontro em Barcelos onde foi lançado e marcou o primeiro golo). Ganhou aí e nos quatro jogos seguintes.

Sendo um treinador que não celebra de forma muito efusiva os golos, cumprimentando os adjuntos que estão no banco e que festejam de uma maneira mais visível esses momentos, a forma como Schmidt fechou o seu punho e gritou quando Grimaldo fez o 2-0 contra o Gil Vicente mostrou que o título estava mais próximo e estaria praticamente confirmado em caso de vitória na receção ao Sp. Braga. Foi isso que aconteceu, com a vitória no Campeonato a ser uma mera questão de tempo. Uns queriam um português no banco, outros pretendiam alguém com maior currículo, mas Roger Schmidt, alemão de 56 anos com quase 20 anos de carreira como treinador e pouco mais de dez ao mais alto nível, chegou viu e venceu enquanto primeiro técnico estrangeiro nos encarnados 13 anos depois e que só ganhara uma Liga austríaca entre cinco títulos nas passagens por Red Bull Salzburgo (Áustria), Beijing Guoan (China) e PSV (Países Baixos).

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