A quiche é a nova vichyssoise. Já os “cordeirinhos” serão sempre “cordeirinhos”, criaturas incapazes de pensar pela própria cabeça. Mas antes “cordeirinho” do que “abutre político”, dizem eles. Ou pior ainda: um “judas” entre companheiros. O congresso da JSD prolongou-se este fim de semana durante três dias em que houve de tudo: traições de última hora, “chamadinhas”, mensagens para lá e para cá, caciquismo despreocupado e ofertas tentadoras — em eleições tão disputadas, por um gin se ganha e por um whiskey se perde.

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O duelo foi tão duro que houve mesmo quem chegasse a perguntar: “Mas será que a JSD perdeu a noção?”. No final, André Neves, o “menino de Rui Rio”, perdeu e Margarida Balseiro Lopes, candidata da ala passista, venceu, tornado-se assim a sucessora de Cristóvão Simão Ribeiro. Durante os próximos dois anos, vai liderar os jotas do partido. Resta é saber que aparelho vai herdar: os golpes desferidos de parte a parte foram tantos e tão duros que é impossível, para já, avaliar o moral das tropas.

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Nem no momento da consagração da nova líder houve espaço para tentativas de reaproximação. André Neves, candidato derrotado, assistiu ao momento à distância. E Margarida Balseiro Lopes esqueceu-se de o referir, como é da praxe, no seu discurso de vitória. Preferiu lembrar apenas aqueles que estiveram com o adversário “por convicção”, sugerindo, tal como fizera noutras ocasiões, que houve quem escolhesse apoiar André Neves porque sentiu o vento a soprar nesse sentido.

Balseiro Lopes deixaria um recado à atual direção do partido: dirigindo-se diretamente ao líder do PSD, a deputada agradeceu o facto de Rui Rio ter, “pessoalmente”, respeitado a “autonomia do processo eleitoral”. A mensagem nas entrelinhas era assassina e tinha um visado especial: Salvador Malheiro, o vice de Rio de quem os apoiantes de Margarida Balseiro Lopes se queixam de ter tentado condicionar algumas estruturas a votar em André Neves.

Rui Rio, que subiu ao palco na qualidade de líder do partido, ainda ensaiou um apelo à paz. Elogiando a coragem de André Neves para avançar, o social-democrata lembrou que a sua vitória frente a Santana saiu “mais valorizada” pelo “próprio adversário” . É tempo de unir, sugeriu Rio.

Rui Rio numa intervenção durante o congresso da JSD. (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Apesar dos repetidos apelos à união, quem assistiu aos três dias de congresso diria que terão pouco ou nenhum acolhimento. Claro que há sempre o papel agregador do poder, que transforma rivais em aliados e inimigos em amigos. Mas este combate foi particularmente intenso. Primeiro, porque desde 2010 que os jotinhas não eram obrigados a escolher um de dois candidatos, o que avivou velhos e novos ódios de estimação.

Além disso, por muito que jurassem o contrário, esta eleição era mais uma réplica da disputa pelo poder entre o que resta do aparelho passista e os homens de Rui Rio. Margarida Balseiro Lopes estivera com Santana Lopes; André Neves com Rui Rio. Desta vez, no entanto, ganharam os primeiros e não os segundos. Mas todos saíram com umas quantas nódoas negras para contar.

A “quota dos bêbados”, pateadas e quiches: a noite mais quente do congresso

Gostava muito que os dois candidatos estivessem aqui, mas ainda não os vi”. São 11h18 da manhã de sábado, o segundo dia do Congresso da JSD. No palco, vão desfilando os proponentes das 72 moções sectoriais. Há quem se queixe da parca assistência e da falta de comparência dos dois candidatos. As longas mesas corridas, pintadas de laranja, estão praticamente vazias. O busto de Sá Carneiro, omnipresente em todos os congressos do PSD e da JSD, aguenta estoicamente os penosos discursos, ali e acolá intercalados com intervenções bem articuladas.

A noite anterior tinha sido longa. Os trabalhos arrastaram-se para lá da hora, com os ânimos já bem quentinhos. André Neves subira ao palco e apontara diretamente o dedo a Margarida Balseiro Lopes e à anterior direção — isto, apesar de ter sido ele próprio o primeiro vice-presidente de Cristóvão Simão Ribeiro. Críticas repetidas, de uma forma ou de outra, nas semanas que antecederam o congresso. Margarida Balseiro Lopes tinha antecipado os golpes e lançara-se à garganta do adversário: no púlpito, acusou André Neves de “ter pisado a JSD para subir mais um degrau”. O congresso estava lançado e prometia.

A poucos quilómetros dali, travava-se outra troca de argumentos, esta movida a etanol. A Fortaleza da Póvoa, no centro da cidade, recebeu a festa organizada pela JSD, onde os jotinhas procuraram descontrair depois de um dia particularmente duro. E não só. “É normal que se tentem fechar uns últimos acordos nessas noites”, assumiu um dos apoiantes de André Neves, ao Observador. “É por isso que temos uma equipa para o dia e para a noite”, brincou um membro da lista de Margarida Balseiro Lopes.

“O ir para os copos” com os delegados ao congresso é uma prática institucionalizada e compreendida por todos. Está de tal forma enraízada que chega a causar alguns problemas aos candidatos. “É a chamada quota dos bêbados”, ri-se um dos jotinhas, referindo-se aos militantes que se aventuram na dose e que não chegam a acordar a horas da eleição.

É impossível dizer com certeza que foi isso a justificar o facto de o Pavilhão Municipal da Póvoa, adaptado à cor laranja da JSD, estar praticamente deserto. O segundo dia do congresso já leva um par de horas e não se vê vivalma. A maior agitação pertence aos homens do candidato, que se vão esforçando por enfeitar uns cartazes no já enfeitado pavilhão municipal. André Neves chegaria dali a instantes. Margarida Balseiro Lopes só chegaria já perto da hora do almoço.

Na manhã de sábado, o congresso estava quase deserto (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

A tensão entre as duas fações sentir-se-ia apenas mais tarde, já o dia ia a meio. São feitas as referências mais acesas ao processo da JSD/Lisboa — um grupo de 23 elementos da JSD, afetos a André Neves, disse ter sido impedido de votar por um golpe de secretaria. Na votação, as moções da distrital de Aveiro são chumbadas pelo grupo de Balseiro Lopes porque têm a impressão digital de Salvador Malheiro. Ouvem-se gritos por “liberdade” e fala-se abertamente em perseguição política. Há quem jure que a equipa de Balseiro Lopes fez circular SMS entre os militantes com a orientação de voto a assumir em cada votação.

Os homens da deputada social-democrata defendem-se e garantem que estavam a usar os mesmos meios que os adversários. Até bem mais modestos, dizem. O Observador teve acesso a vários relatos, orais e escritos, de militantes que disseram ter sido condicionados por Salvador Malheiro para votarem em André Neves, sob o argumento de que assim teriam maior simpatia de Rui Rio. O caso, aliás, terá chegado aos ouvidos do presidente do partido, que terá prometido intervir.

No pavilhão, as claques estão claramente divididas. À esquerda, os apoiantes de Margarida Balseiro Lopes; à direita, os de André Neves. Às 23h19, o “menino de Rui Rio” sobe ao palco para a sua última intervenção no congresso. O modelo escolhido incentiva à troca de argumentos: os dois candidatos a líder falam primeiro, seguidos por cinco elementos de cada candidatura, estrategicamente escolhidos para fazerem a defesa da honra. André Neves demora poucos minutos a apontar o dedo a Balseiro Lopes. Fala em “medo pela democracia”, garante que há militantes a serem “ostracizados” pela direção da jotinha e jura lutar pela vitória “contra tudo e contra todos”, numa intervenção aqui e ali interrompida por pateadas e fortes aplausos.

A intervenção de André Neves, o “menino de Rui Rio”, foi aqui e ali interrompida por pateadas e fortes aplausos (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Margarida Balseiro Lopes não deixaria o adversário sem resposta. Atira-se a André Neves, que diz ter feito uma campanha de “casos” e de manobras obscuras. “Quero uma JSD onde não seja preciso conhecer o número de telefone de um determinado dirigente [para ter oportunidades]”, sugere a deputada social-democrata.

Os apoiantes de André Neves usam todas as armas à disposição. Não terá ajudado o facto de Balseiro Lopes ter escolhido Mafalda Cambeta, a mesma que impediu alguns apoiantes de André Neves de formarem uma lista de delegados ao congresso, para ser presidente da Mesa do Congresso. Criticam as “dinastias” e os “vícios” instalados na JSD, o “caciquismo puro”, as “mensagens enviadas para chumbar moções sectoriais”, as alegadas interferências de Marques Mendes, as tentativas de “varrer militantes” na secretaria e as “práticas bafientas” supostamente seguidas por Balseiro Lopes e companhia.

Os homens da candidata não ficariam atrás na quantidade e violência das críticas. Denunciam a “política de queixinhas” de André Neves, digna “das pessoas fracas”, as “ameaças de Salvador Malheiro”, os “abutres políticos” que apenas surgiram quando acreditaram que era o momento, a “falta de vergonha na cara” dos que se rebelaram contra uma direção que sempre apoiaram, os “mentirosos” e os “judas” que protagonizavam a lista adversária.

O momento da noite chegaria no meio desta troca de argumentos, quando Alexandre Poço, apoiante de Margarida Balseiro Lopes e líder da distrital da JSD/Lisboa, acusou de traição Ricardo Morgado, ex-presidente da Associação Académica de Coimbira (AAC) e apoiante de André Neves. “Sabem o que é uma quiche? Ricardo, almoçaste comigo uma quiche na casa dos pais da Margarida para a apoiar e agora vens aqui dizer que a Margarida não tem qualidade? Eu não precisei de esperar pelos resultados das diretas do partido para escolher o meu candidato”, afirmou o jotinha. Seria o soundbite da noite e do dia seguinte.

Margarida Balseiro Lopes criticou André Neves por ter feito uma campanha de “casos” e de manobras obscuras (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

“Alô? Tens de vir votar, pá”

Os trabalhos arrastar-se-iam até às 7h da manhã. De tal forma que houve militantes que aguentaram uma directa até às 8 horas, altura em que abriram as urnas, para votarem — não fosse a ida à cama fazer com que não conseguissem cumprir o dever cívico.

Às 10h da manhã, duas horas depois da abertura das urnas, apenas 200 militantes tinham votado. Era tempo de tirar o telefone do bolso. “Agora, temos de ligar à malta para virem votar. Não podem ficar a dormir”, justificou um dos militantes na corrida.

Exigia-se um último esforço. “Alô!? Tens de vir votar, pá! ‘Tá aqui pouca gente”, ouviu o Observador de um militante ao telemóvel. As chamadas eram feitas sem grande discrição, o que prova que é uma prática comum entre os jotinhas. E eles, arrancados da cama, lá iam chegando, a maioria incapaz de retirar os óculos de sol.

A votação decorreu sem incidentes. Às 12h35, já os apoiantes de Margarida Balseiro Lopes faziam a festa. A deputada social-democrata ganhou por mais de 60 votos de diferença.

No final, visivelmente emocionada, cumprimentou todos os antigos líderes da JSD que marcaram presença no congresso e restantes convidados de honra. Até Rui Rio teve direito a um abraço caloroso e prolongado. Todos, menos Salvador Malheiro — para ele, o abraço e o beijinho foram rápidos e frios.

E a quiche não era uma quiche. Afinal, era uma tarte de atum, jurava-se à saída.

Para Salvador Malheiro, o abraço e o beijinho de Margarida Balseiro Lopes foram bem rápidos (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)