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Mais de duas semanas após as notícias sobre a possibilidade de abandonar Wall Street, a Farfetch mantém o silêncio. O mercado nada sabe e a empresa já vale menos de 300 milhões de dólares em bolsa. Se para fora nada sai, no interior da Farfetch também há queixas de falta de informação quanto ao futuro.
Mas Pedro Sá, sócio e coordenador de corporate da PRA — Raposo, Sá Miranda & Associados, em declarações ao Observador, considera que a estratégia de silêncio adotada pela plataforma de moda de luxo pode ser encarada como autoproteção. “Quando uma empresa não fala é porque não tem nada para dizer”, afirma, acreditando que uma empresa cotada em bolsa não pode “dizer coisas para o ar”.
Nesse sentido, defende que a companhia liderada por José Neves só quebrará o silêncio quando tiver medidas concretas para anunciar, embora a imprensa especializada avance que está em contacto com investidores e a equacionar vendas de áreas de negócio para aumentar a liquidez. Não pode “dar conferências de imprensa tipo jogador de futebol a mandar palpites”, exemplifica. Se ainda não se comprometeu com determinadas medidas é porque “não as terá ainda”, supõe Pedro Sá, indo ao encontro da teoria dos meios de comunicação internacionais, que asseguram que as conversações estarão longe de terminadas.
“Podem estar neste momento a tentar obter financiadores ou investidores para a empresa, e poderão querer apresentar isso publicamente e ao regulador como uma forma de catapultar o valor das ações. Mas, se calhar, ainda não conseguiram e, portanto, estarão a cortar custos, estarão a despedir pessoas para tentar melhorar a performance financeira.”
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Enquanto empresa cotada “tudo o que comunicar tem a obrigação de dizer em termos transparentes e em termos sindicáveis pelo regulador, não pode induzir o mercado em erro”, defende o advogado. Neste exemplo, recorda que a companhia já enfrenta uma ação coletiva nos EUA, onde é acusada pelos investidores de não ser totalmente transparente em questões como a parceria europeia com a Reebok ou o abrandamento do mercado dos EUA e da China.
Saída pode ser acelerada se ações continuarem abaixo de um dólar
Há três dias consecutivos que as ações da Farfetch estão abaixo de um dólar. Na terça-feira chegaram a tocar um mínimo histórico de 0,53 dólares, montante que contrasta com os 20 dólares a que eram vendidas na estreia na bolsa de Nova Iorque, em 2018. Na sessão desta quinta-feira, a tendência mantém-se. Se as ações permanecerem abaixo de um dólar durante 30 dias de negociação consecutivos, uma saída de bolsa pode ser acelerada, explica ao Observador o advogado.
Quando esse cenário se impõe, detalha, a bolsa de Nova Iorque notifica a empresa e questiona-a acerca da sua “intenção” para reverter essa realidade. A firma terá de “responder, obrigatoriamente, no prazo de 10 dias”, uma resposta que “é divulgada publicamente”.
Se optar por apresentar um plano à SEC, regulador do mercado norte-americano, para que as ações subam de valor — através, por exemplo, de novos investidores, despedimentos, encerramento de algum negócio, aumento de capital, exemplifica o advogado –, a empresa tem seis meses — denominados de “período de cura” — para “resolver a situação”. Nesse meio ano, indica Pedro Sá, a companhia “vai estar sob observação” e, para não “sofrer medidas compulsivas”, tem de conseguir durante “um mês completo de calendário” que as ações sejam negociadas “a um valor médio superior a um dólar”. Ou seja, pode ter dias abaixo ou acima desse montante, mas a média deve ser superior.
Se conseguir cumprir os requisitos, “considera-se que a situação foi curada e pode continuar a negociar normalmente, sem obrigações adicionais”. Caso contrário, ou até mesmo se inicialmente optar por não apresentar qualquer plano de medidas, pode ter uma de duas consequências:
- Um reverse stock split, uma fusão das ações. Ou seja, alguém com cinco ações de um dólar passa a ter somente uma ação, a valer cinco dólares. O advogado da PRA explica que o regulador norte-americano pode “obrigar os emitentes” a adotar esta medida “para concentrar o valor das ações, para tentar que aumentem de valor”.
- Sair de bolsa, passando a estar num mercado de balcão como “todas as empresas não cotadas”, onde é possível comprar e vender ações sem “obrigações de reporte público” e diretamente entre as partes (com intermediários), fora de bolsa.
O sócio da PRA admite ao Observador que as consequência de uma saída de bolsa para esse tipo de mercado são “terríveis porque os danos reputacionais são imensos” e a tendência é que o valor das ações que seja encontrado entre as partes caia em “espiral”. Além disso, “uma sociedade que sai de bolsa nessas condições perde investidores imediatamente”. “Há imensos investidores institucionais que, nas suas próprias regras de governance, estão impedidos de investir em empresas não cotadas” e “o facto de serem obrigados a vender cria pressão vendedora”, fazendo o valor baixar.
É a lei da oferta e da procura. Aumenta a pressão na venda, o valor cai”, acrescenta, notando que a empresa também “desvaloriza imenso”, o que faz com que uma venda seja “muito pior”. Por exemplo, no caso da Farfetch, se fosse vendida agora valia 297 milhões de dólares (a capitalização bolsista no fecho desta quarta-feira) “se for compulsivamente delisted [retirada do mercado], esse valor vai ser esmagado e vai valer menos de metade, seguramente”.
Questionado pelo Observador sobre se o silêncio da Farfetch pode ser estratégico para acelerar uma saída de bolsa, que o Telegraph noticiou que estava a ser estudada, Pedro Sá considera que “isso não faz sentido” e que a plataforma deve estar concentrada em “melhorar a performance financeira, demonstrar aos investidores que é atrativa, que tem futuro”.
A opinião é seguida por Luca Solca, analista da Bernstein, que considera que a falta de esclarecimentos por parte da Farfetch não faz parte de um plano, mas que garante que “quanto mais tempo sem notícias, mais provável é” que as ações continuem a desvalorizar. Em declarações ao Observador afirma que “a falta de atualizações [por parte da Farfetch] não é apenas um problema para o mercado de ações, é também um problema para a empresa”.
A SEC, regulador norte-americano e polícia da bolsa dos EUA, não se tem pronunciado sobre as notícias que envolvem a Farfetch. Ao Observador, numa resposta enviada por email após várias insistências, opta por “não comentar a existência ou não de uma possível investigação”.
O advogado Pedro Sá não dá certezas quanto à existência dessa investigação, mas acredita que a Farfetch pode estar “sujeita a penalidades [como coimas] por parte da SEC” por não ter apresentado os resultados financeiros do terceiro trimestre do ano, ao contrário do que tem feito desde que é cotada. Porém, no site da SEC, na área de regras para emitentes estrangeiros privados (foreign private issuers), categoria onde se encaixa a Farfetch, é dito que “os resultados trimestrais não são obrigatórios”. Ainda assim, estas empresas têm de comunicar ao regulador informação relevante, como mudanças no negócio, aquisições ou falência e a condição financeira e resultados das operações. E quando anunciou o adiamento dos resultados, a Farfetch indicou, também, que as projeções anteriormente feitas, ao nível financeiro, deveriam deixar de ser consideradas.
Farfetch continuará à procura de um “cavaleiro branco”
A empresa pode estar fechada em copas, mas as notícias que tentam antecipar o que se passa no interior da empresa de José Neves não param. Dos dois lados do Atlântico há quem tente perceber que caminhos pode a Farfetch seguir para tentar ultrapassar a frágil situação financeira.
Na semana passada, o Business of Fashion avançou que a empresa estava à procura de um “cavaleiro branco” para evitar o colapso financeiro. Esta semana, a Sky News revela que a retalhista estará em conversações com o Apollo Global Management. A estação televisiva britânica cita fontes não identificadas da City que indicam que o fundo de investimento é uma de várias entidades em conversações com a Farfetch. No entanto, alertaram que um acordo estaria longe de ser alcançado. Além disso, o valor que é preciso angariar não terá ficado claro.
O Apollo Global Management, fundo americano, pode não ser um nome desconhecido para os portugueses, uma vez que mostrou interesse em comprar o Novo Banco. Comprou seguradoras como a Tranquilidade (que agora é detida pelo grupo Generali), tentou a Fidelidade, mas não conseguiu. No ano passado, também foi uma das entidades mencionada nas conversações para ajudar Elon Musk a financiar a compra do então Twitter.
O analista Luca Solca, que acompanha o mercado de luxo para a casa de investimento Bernstein, considera que a empresa luso-britânica “está a tentar encontrar uma solução para se manter ativa e evitar uma falência”. Nesse sentido, acredita que “o financiamento vindo do Apollo, avançado pela imprensa, parece ser o último recurso”.
Já o site especializado WWD avança outros nomes. Este meio de informação fala em “pelo menos dois investidores” que poderão entrar em ação para resgatar a Farfetch, mencionando uma empresa interessada, que não é identificada, e a investidora Carmen Busquets.
A venezuelana é considerada uma empreendedora e investidora estratégica, com uma carreira de mais de três décadas na indústria da moda de luxo. Um dos investimentos mais conhecidos de Busquets é o portal de comércio de luxo Net-a-Porter, que está agora nas mãos da suíça Richemont – com quem a Farfetch tem um negócio pendente para adquirir uma participação de 47,5% no capital da YNAP (entidade que surgiu com a fusão entre a Yoox e a Net-a-Porter).
A empreendedora venezuelana teve durante anos a participação maioritária no capital da Net-a-Porter, partilhando o papel de acionista com o grupo suíço de luxo Richemont. A “fada madrinha” do comércio online de moda, como lhe chamou o New York Times, foi investidora na Farfetch entre 2015 e 2018, de acordo com a informação disponível no seu site.
Agora, contou ao WWD que acredita na missão da Farfetch e que pretende angariar entre 500 e 1.000 milhões de dólares para “resgatar a empresa”. “A indústria é cíclica e a Farfetch está a navegar um ambiente complexo, que se tornou mais difícil com as complexidades de gerir várias transações corporativas”, explicou. Aos olhos desta investidora, apesar da situação atual, “a Farfetch continua a ser um ativo estratégico”.
No meio de toda a incerteza, há pelo menos uma entidade que se quis distanciar da possibilidade de auxílio à Farfetch. No dia a seguir à empresa anunciar que não ia apresentar resultados, a Richemont emitiu um comunicado no qual “lembrou aos seus acionistas que não tem obrigações para com a Farfetch”, explicando que “não tem em vista empréstimos ou investimentos” na companhia de José Neves.
Na mesma semana, a 30 de novembro, J. Michael Evans, presidente da Alibaba, apresentou a demissão do cargo no conselho de administração da Farfetch. A informação foi revelada pela Farfetch num comunicado ao regulador da bolsa de Nova Iorque, sem explicações para os motivos da saída. Só foi dito que a demissão “não foi resultado de qualquer desacordo com a companhia ou com as suas operações, políticas ou práticas”.
Presidente da Alibaba sai do conselho de administração da Farfetch sem dar explicações
Os rumores de vendas para se manter à tona, da Browns à NGG
O principal negócio da Farfetch é a sua plataforma de vendas. Segundo números revelados pela empresa, é possível encontrar no seu marketplace mais de 1.400 marcas de luxo, da Dolce & Gabbana à Prada. “Não vão encontrar uma página de ‘quero ser vendedor’”, contou José Neves numa entrevista à Bloomberg este ano — para se vender no mercado virtual é preciso haver um convite da própria Farfetch.
O segundo pilar de negócio é a disponibilização das soluções tecnológicas desenvolvidas pela própria empresa, nomeadamente em Portugal, para outras marcas. O negócio Farfetch Platform Solutions (FPS) foi lançado em 2015 e tem como parceiras marcas como a Balenciaga, Roberto Cavalli e Marc Jacobs.
Porém, com o passar dos anos, a vontade de expansão de José Neves também o levou a fazer aquisições – a Farfetch deixou de vender só artigos de outras casas e passou a controlar as suas próprias marcas de luxo.
A primeira aquisição de relevo foi a boutique britânica Browns, em maio de 2015, por um montante que não foi revelado. Se até então a Farfetch estava apenas no mundo online, a aquisição marcou uma aproximação ao mundo físico. “A moda não é descarregável. A experiência física vai ser importante e é a chave para o futuro da moda”, disse José Neves ao Business of Fashion, na altura da aquisição. Nos últimos anos, tem sido na icónica boutique que a Farfetch tem testado as suas soluções tecnológicas para retalho, num projeto que ganhou o nome “Loja do Futuro”.
Oito anos depois da compra, a imprensa especializada cita fontes que não descartam a hipótese da venda da Browns para garantir alguma liquidez à Farfetch. Desde que teve início a tempestade, a Standard & Poor’s baixou o rating da dívida da companhia de B-menos para CCC+; a Moody’s também baixou o nível, classificando agora a dívida da Farfetch como Caa2, já no território de ‘lixo’, justificando a decisão com as preocupações à volta da situação financeira da companhia.
Se a WWD mencionou a possibilidade da venda da Browns, o Business of Fashion aponta para outro alvo, a New Guards Group (NGG), que José Neves comprou em 2019 por 675 milhões de dólares. A empresa de Milão é a responsável por marcas internacionais como a Off-White, criada por Virgil Abloh, a Palm Angels e a There Was One.
As fontes ouvidas pelo site notam que, embora a NGG tenha sido em tempos uma unidade de negócio rentável, a exposição que tem aos consumidores norte-americanos, que sentem os efeitos da subida da inflação e estão mais controlados com gastos, está atualmente a penalizar o negócio. As vendas recuaram 40% no segundo trimestre. “Tudo isto faz a NGG um ativo menos atrativo”, rematou o site especializado.
Despedimentos e um projeto em Matosinhos potencialmente em risco
Há mais de duas semanas que os trabalhadores da Farfetch estão às escuras quanto ao seu futuro e ao da empresa, afirmando que sabem “mais pelas notícias” do que pela administração. Um silêncio que descrevem como “quase total” desde que a apresentação de resultados financeiros do terceiro trimestre do ano foi cancelada.
Em declarações ao Público, um atual funcionário, que permaneceu no anonimato, caracteriza a primeira empresa com ADN português a alcançar o estatuto de unicórnio (por ter uma avaliação superior a mil milhões de dólares) como “uma casa a arder”. “Ninguém diz nada. Pedem-nos que continuemos a trabalhar normalmente. Mas como é que é possível quando ninguém sabe se amanhã tem emprego?”, acrescenta.
As dúvidas deste e outros trabalhadores quanto à existência dos seus empregos relacionam-se com o facto de, segundo o mesmo jornal, temerem que os 800 postos de trabalho que a plataforma de moda de luxo tencionava cortar este ano sejam afinal muitos mais. Diferentes funcionários apontaram para entre 1.700 e 2.000 cortes, um número parecido àquele que um antigo trabalhador indicou ao Observador. As contratações que estavam previstas e a decorrer terão sido congeladas.
Os números disponíveis no relatório e contas referente ao ano passado indicavam que a Farfetch tinha 6.728 trabalhadores, sem contar com serviços de consultoria externa e funcionários em regime freelancer. Portugal é o país com mais trabalhadores (3.342), seguido de Reino Unido (1.179), Itália (642) e Estados Unidos (540). Considerando o total, os cortes que têm sido apontados poderão afetar cerca de 25% da força laboral da Farfetch.
Além dos despedimentos, o jornal Público revelou que alguns trabalhadores da tecnológica em Portugal afirmam ter recebido o salário deste mês antecipadamente, ainda que sem horas extraordinárias, quando só o esperavam perto do Natal. Ter-lhes-á sido enviado um email dos recursos humanos a adiantar que os salários seriam pagos a 13 de dezembro, “mais cedo do que o habitual” e “antes da semana do Natal”. O Observador não conseguiu obter essa mensagem, que poderá, alegadamente, não ter chegado a todos os funcionários.
Apesar de o futuro da empresa estar envolto em incerteza, a continuidade do projeto do centro tecnológico Fuse Valley, em Matosinhos, “não estará em risco”. Foi, pelo menos, esta a informação transmitida, segundo o ministro da Economia, António Costa Silva, pela presidente da câmara local, Luísa Salgueiro. O governante, citado pelo jornal Eco, garantiu estar a “acompanhar com atenção o que se está a passar” na empresa, que era “um dos nossos grandes unicórnios”, desejando que “esta situação possa estar estabilizada e a Farfetch possa regressar àquilo que foi antes”.
Por sua vez, Luísa Salgueiro afirmou, à margem de uma apresentação da Agenda para a Competitividade do Comércio e Serviços 2030, que espera que “haja condições para continuar” e garantiu que o município continua “empenhado e focado em permitir que a construção aconteça, desejavelmente com a Farfetch”. “Caso não possa ser a Farfetch, vamos ter outro parceiro que o possa promover.”
As declarações surgiram após o Jornal de Notícias ter avançado a possibilidade de, devido à instabilidade que se faz sentir na tecnológica, o investimento de 200 milhões de euros, partilhado com a construtora Castro Group, estar em risco. Além disso, indicou que a primeira fase da obra poderá não estar concluída na data prevista, em 2027, porque ainda não arrancou (estava previsto que começasse este ano). As duas fases seguintes deveriam estar concluídas até 2030.
O Fuse Valley, em Matosinhos, terá, de acordo com os detalhes apresentados em 2021, mais de 140 mil metros quadrados, 60 mil ocupados pela Farfetch, que contarão com edifícios de escritórios, serviços que ficarão a cargo da Castro Group, um hotel com mais de 60 quartos e dois apartamentos.
Farfetch apresenta “vale tecnológico” que vai abrir em Matosinhos