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Jean-Louis Fernandez

Jean-Louis Fernandez

“Saigão”: o Vietname e as feridas do colonialismo entram num restaurante e sentam-se à mesa em Lisboa

Apaixonada por um teatro que tenta levar para o palco "o barulho do mundo", Caroline Nguyen (encenadora-sensação na Europa) apresenta "Saigão" no D. Maria II. Dias depois, tem outra peça no S. Luiz.

Quem se sentar na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, esta sexta-feira e sábado (às 19h) ou domingo (às 16h) vai deparar-se com um cenário minucioso no palco. À esquerda, uma cozinha, ao centro algumas mesas — maioritariamente de dois e quatro lugares, embora exista uma longa e corrida —, à direita um teclado, uma sala de karaoke e iluminação colorida. Os néons, as flores, os movimentos coreografados das personagens (a limparem as mesas, a arrumarem panos de cozinha) e os detalhes ricos e imagéticos do cenário quase transformam o palco num grande ecrã e o teatro em cinema, mas é falso alarme.

É aconselhado sentar-se confortavelmente, despir o casaco e preparar-se para uma maratona emotiva: “Saigão”, peça-sensação do teatro europeu que tem vindo a receber elogios por todo o Velho Continente desde que se estreou em 2017 no prestigiado Festival d’Avignon, tem três horas e meia de duração (tem intervalo) e é agora apresentada pela primeira vez em Portugal.

Se a reação do público for semelhante à que se registou noutros países e cidades (relatada pelos meios de comunicação que acompanharam as apresentações da peça), a comoção será a nota dominante. Durante três horas e meia, atores profissionais e não profissionais, vietnamitas e franceses, vão escarafunchar à mesa de dois restaurantes (um na antiga Saigão, no Vietname, em 1956 e outro em Paris, 40 anos depois, em 1996) as feridas ainda abertas da Indochina, do colonialismo francês e de uma certa consciência dupla que advém de se viver durante décadas dividido entre dois países e duas identidades.

Dois restaurantes (Saigão 1956, Paris 1996) ou apenas um?

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Um dos detalhes curiosos da peça é que os dois restaurantes são afinal um só. Entre o de 1956 na antiga Saigão e o de 1996 em Paris nada muda, nem sequer a dona (uma vietnamita, curiosamente chamada Marie-Antoinette tal como a rainha francesa). Porventura, uma forma de incrustar ainda mais no espectador a ideia de que a vida de quem em 1996 pondera se regressa ou não ao Vietname 40 anos depois nunca avançou totalmente, que nunca foi cortado o cordão umbilical com aquele momento definidor em que alguém se exila de um país

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Apropriando-se da velha máxima de que todos os grandes dramas históricos são conjuntos de muitos dramas individuais — a mesma, ainda que aqui com contornos mais trágicos e brutais, que levava a Molly Bloom do Ulysses de James Joyce a queixar-se que a guerra estava a matar “todos os rapazes bonitos”, qual dique que travava o curso de vidas duradouras e futuros amores —, a peça reflete sobre a saída do Vietname de todos os “viet kieu”, saídos do país em 1956 e que só puderam regressar em 1996, um ano depois da retomada das relações diplomáticas com os EUA.

A expressão “viet kieu” significa algo como “vietnamitas estrangeiros”: gente que, por deter a nacionalidade francófona, teve de abandonar o país dois anos depois da Batalha de Dien Bien Phu (que derrotou os colonialistas franceses) e que deixou para trás um país, entes queridos, família, de algum modo toda uma “biografia” pessoal. À mesa, contam-se dramas pessoais e reflete-se sobre a identidade destes exilados impedidos de pôr um pé naquele país durante 40 anos: o que deixaram para trás (e quem deixaram para trás) e que relação construíram com as suas origens, o seu passado, as suas “separações”?

“Saigão”, que em 2018 apareceu na lista anual de “melhores espectáculos de teatro da Europa” do The New York Times, não é uma peça autobiográfica — a sua autora e encenadora tem feito questão de o afiançar —, mas tem uma relação óbvia com o percurso e a história familiar de Caroline Guiela Nguyen.

“Saigão” não é uma peça sobre o passado ou sobre velhas “origens”, como aliás a encenadora e autora da peça, Caroline Guiela Nguyen, tem feito questão de vincar em muitas entrevistas dadas nos últimos anos — ao jornal francês Liberation, só a título de exemplo, explicou em tempos que o seu trabalho não é ancorado “na história” mas “no presente, nas memórias”.

Quando se estreou em 2017 em Avignon, a descrição oficial apontava para uma peça de personagens que “partilham territórios, rostos, canções e uma linguagem que para alguns existe apenas nas suas memórias”, para “uma história polifónica” que “inventa as vozes de homens e mulheres marcados pela história e pela geografia”, gente que “transporta consigo as marcas deixadas pelas mudanças no nosso mundo”. “Saigão”, escrevia-se então, é “uma terra ferida” porque na peça “há sempre alguém que falta, alguém por quem se faz um luto”. E entre momentos de humor, encontro e harmonia, multiplicam-se as histórias dilacerantes.

A peça "Saigão" é apresentada esta sexta-feira, sábado e domingo no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa

Jean-Louis Fernandez

Um teatro que quer captar “o barulho do mundo”

“Saigão”, que em 2018 apareceu na lista anual de “melhores espectáculos de teatro da Europa” do The New York Times, também não é uma peça autobiográfica — a sua autora e encenadora tem feito questão de o afiançar —, mas tem uma relação óbvia com o percurso e a história familiar de Caroline Guiela Nguyen.

A autora e encenadora da peça nasceu em Nice em 1981 e cresceu na região francesa da Provença, no sudeste de França, mas a sua mãe, que trabalhou como vendedora porta a porta, é vietnamita e foi um desses “vietnamitas estrangeiros” que abandonou o país em 1956.

Em entrevista ao Le Monde, Caroline explicou que a sua mãe era tratada em França como “a chinesa” e que em 1996, quando tinha entre 15 e 16 anos, discutia-se na sua família se faria sentido visitar o Vietname, agora que era finalmente possível regressar 40 anos depois do exílio da progenitora. “Tenho tios e tias que nunca lá quiseram ir. Alguns dizem que querem acabar lá a vida, outros veem o Vietname apenas como uma terra para viajar”, explicou, citada pela publicação francesa La Croix.

A viagem acabou por acontecer, a ligação de Caroline Guiela Nguyen ao Vietname foi-se estreitando nos anos posteriores e resultou entretanto em “Saigão”, embora a autora faça questão de vincar sempre que a sua família foi somente “um exemplo entre muitos”, uma “porta de entrada” para pensar sobre o exílio forçado dos “vietnamitas estrangeiros” durante quatro décadas e verter depois essas reflexões para uma peça de teatro.

Relatou experiências tidas na Cidade de Ho Chi Minh que a marcaram, desde um condutor de táxi que se comoveu a ouvir uma canção de desamor enquanto a transportava até “bares de karaoke onde as pessoas cantam calmamente, marejadas em lágrimas”.

Para fazer “Saigão”, a autora e encenadora que o jornal britânico The Guardian destacou em 2018 na sua lista de “os mais entusiasmantes encenadores da Europa do momento” também passou dois anos a fazer viagens regulares ao Vietname, para pesquisa. Além de entrevistar “vietnamitas estrangeiros”, os exilados de 1956, tentou captar a atmosfera da antiga Saigão — hoje Cidade de Ho Chi Minh, a maior do país.

Ao jornal digital vietnamita VnExpress, a encenadora explicou que visava a imersão na cultura vietnamita quando o fez. Fê-lo, especificamente, “ouvindo música, conhecendo pessoas, comendo comida vietnamita naquele clima quente e húmido”, tendo usado essas experiências para tomar decisões sobre a música que se ouve no espectáculo, a iluminação do palco e o cenário e guarda-roupa. Tudo como resultado de uma observação que foi feita não com “um olhar normal”, mas com uma “visão artística” e que se deixou contaminar pela imaginação.

Ao mesmo meio, relatou experiências tidas na Cidade de Ho Chi Minh que a marcaram, desde um condutor de táxi que se comoveu a ouvir uma canção de desamor enquanto a transportava até “bares de karaoke onde as pessoas cantam calmamente, marejadas em lágrimas”. “Contagiada por essas emoções”, Caroline e a sua equipa de trabalho avançaram para uma peça onde a dada altura uma personagem chora e diz: “É assim que se conta a história do Vietname: com muitas lágrimas”.

Esta peça, que projetou Caroline Guiela Nguyen como uma das encenadoras de referência na Europa, é já a oitava desta antiga estudante de sociologia e de artes do espectáculo (universidade de Nice), que hoje é artista associada do Teatro Nacional de Odéon (teatro público parisiense), do berlinense Schaubühne e do Teatro Piccolo de Milão, entre outros.

Com um primeiro espectáculo apresentado há já década e meia, em 2007, a encenadora e autora tem vindo a trabalhar um repertório maioritariamente original (ao invés de se dedicar sobretudo à adaptação de clássicos). Um ano depois do primeiro espectáculo, criou logo a sua própria companhia de teatro, Les Hommes Approximatifs, e numa entrevista explicou porquê: “Estava zangada com a falta de representação em palco de todo um segmento da população. Nunca ouves árabe ou francês com sotaque em palco. Queria captar essa parte do mundo, enriquecer o meu teatro e representar pessoas que não vemos”.

Na peça "Fraternité, Conte Fantastique – Mais um Dia" relata-se assim “um mundo que está a recuperar de uma catástrofe”, um “eclipse que apagou metade da humanidade” e onde a metade da população que resistiu — “Os Restantes” — procura consolo comum.

Em 2020, em declarações à revista francesa Télérama, Caroline Guiela Nguyen explicava melhor parte do que tem vindo a nortear o seu trabalho nos últimos anos, referindo-se especificamente ao que a fez criar uma companhia de teatro em 2008: “Desde o início que senti que precisava de ver em palco a diversidade do mundo ouvida através de mim”. E à La Croix acrescentou que cada vez mais se foi interessando por trabalhar “corpos e histórias” habitualmente “ausentes dos teatros”.

Foi ainda mais clara e poética em declarações ao jornal belga L’Echo, numa conversa publicada há menos de meio ano: o teatro que via antes deixava-a “triste”, explicava, porque “não conseguia ouvir nele o barulho do mundo”.

No São Luiz, outra peça de Caroline (comparada a “The Leftovers”)

Depois de encenar “Saigão”, peça que vai ainda apresentando por todo o mundo, a autora e encenadora criou mais recentemente “FRATERNITÉ, Conte fantastique” — um espectáculo que estreou no último verão na mais recente edição do Festival d’Avignon, a mesma em que o português Tiago Rodrigues (antigo diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II) apresentou a sua versão de “O Cerejal” com Isabelle Huppert e aquela em foi anunciado como próximo diretor, tornando-se o primeiro estrangeiro a sê-lo na longa história do festival teatral francês.

A nova peça também será apresentada em Portugal já na próxima semana. Aproveitando a vinda de Caroline Guiela Nguyen a Lisboa e ao Teatro Nacional D. Maria II para apresentar “Saigão”, “Fraternité, Conte Fantastique – Mais um Dia” poderá ser vista nas próximas terça-feira e quarta-feira, 26 e 27 de abril, no Teatro São Luiz, em Lisboa.

A nova peça é descrita pelo teatro lisboeta como mais “um espectáculo que espelha o trabalho” desenvolvido por Nguyen e a sua companhia, “juntando ficção e realidade e acreditando sempre que o imaginário do ser humano é a sua grande arma”. No palco ver-se-á “um lugar imaginado, uma espécie de tribunal de memórias e de lágrimas, um centro de cuidados e de consolação” onde já só existem pessoas à procura de consolo e cura para o seu sofrimento.

Na peça relata-se assim “um mundo que está a recuperar de uma catástrofe”, um “eclipse que apagou metade da humanidade” e onde a metade da população que resistiu — “Os Restantes” — procura consolo comum, de acordo com o jornal belga L’Echo. Já a prestigiada revista francesa Les Inrockuptibles e o jornal norte-americano The New York Times estão alinhados: escreveram que a “ficção” de “Fraternité, Conte Fantastique – Mais um Dia” lembra de algum modo a série da HBO “The Leftovers”, dado que também nesta peça parte da humanidade desapareceu deixando os seus entes queridos em sofrimento.

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