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A Unidade Local de Saúde de Santa Maria vai instaurar processos judiciais contra utentes ou outros cidadãos que critiquem publicamente, de forma ofensiva, a instituição e os seus profissionais. Num despacho interno, a que o Observador teve acesso, o presidente do conselho de administração da ULS de Santa Maria explica que em causa estão publicações, nas redes sociais, que a ULS considere que atingem “a honorabilidade, reputação e bom nome” dos profissionais e da instituição. Nesses casos, o gabinete jurídico pode atuar, reportando as situações aos tribunais e ao Ministério Público.
“Não é de todo admissível que se coloque nas redes sociais o nome do médico, de um enfermeiro ou do serviço, com críticas que são estados de espírito, mas que acabam por denegrir a imagem dos profissionais ou da instituição. Quando se avalia a qualidade técnica, o desempenho ou o resultado de uma consulta ou de uma cirurgia em praça pública, isso não é de todo correto“, diz ao Observador o presidente do conselho de administração da ULS de Santa Maria, sublinhando que o despacho se aplica a “situações com nomes de pessoas e de serviços”.
De fora ficam, segundo Carlos Martins, por exemplo, as situações em que os cidadãos “escrevem que estão desagradados com o tempo de espera ou com o facto de o hospital não ter remarcado uma consulta”.
ULS de Santa Maria ameaça com participações aos tribunais e ao Ministério Público
Nos casos em que a ULS de Santa Maria considerar que está a ser atingido o bom nome da instituição e dos profissionais, pode ser apresentada queixa contra o utente ou cidadão (neste caso o perfil de rede social) em questão. “Podem acontecer duas coisas: um processo em tribunal recorrendo aos meios comuns ou uma participação ao Ministério Público. Neste caso, só o fazemos quando tivermos a garantia de que não houve qualquer falha dos serviços”, ressalva Carlos Martins.
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No despacho, que entrou em vigor a 19 de agosto e foi enviado aos profissionais da ULS esta terça-feira, o presidente do conselho de administração da ULS justifica a decisão com a necessidade de proteger a instituição e os profissionais. “Considerando que a instituição ou os seus profissionais devem ser defendidos pelos meios internos e externos à disposição, caso a caso, incluindo a possibilidade de recurso ao Ministério Público e aos tribunais. Determino que o Gabinete Jurídico instrua processos em conformidade, com a autonomia e competência inerente a toda e qualquer informação, exposição e reclamação”, pode ler-se no documento.
No despacho, e em declarações ao Observador, o presidente da ULS explica que o número de publicações a “denegrir” a imagem dos profissionais tem vindo a aumentar, o que tem feito com que os próprios médicos e enfermeiros questionem a ULS. “Sente-se que estas situações têm vindo a aumentar e os próprios profissionais perguntavam ao gabinete jurídico ‘o que fazemos?’. Hoje as redes sociais são uma ferramenta que as pessoas utilizam sem pensarem duas vezes e, portanto, fazemos isto para assumirmos a nossa responsabilidade de defesa do bom nome dos profissionais”, sublinha o responsável.
Presidente da ULS recusa que esteja a ser limitada a liberdade de expressão dos cidadãos
Mas poderá este mecanismo jurídico ser considerado uma limitação à liberdade de expressão dos utentes e familiares dos utentes da ULS de Santa Maria? “A liberdade de expressão termina quando se atinge a honra e a dignidade de terceiros. A liberdade de expressão não permite tudo”, defende Carlos Martins.
O ex-secretário de Estado da Saúde (no Governo de Durão Barroso), e que iniciou há poucos meses a sua segunda passagem pela presidência da ULS de Santa Maria, ressalva que ficam excluídos de eventuais processos judiciais os utentes ou cidadãos que tenham antes feito uma reclamação ou exposição por via dos canais oficiais. “Há meios próprios para isso”, diz, sublinhando os casos já analisados pelo hospital e que não foram alvo de processos.
“Tivemos sempre o cuidado de verificar se tinham feito reclamação ou exposição. Se o tivessem feito sem qualquer resposta, entende-se que as pessoas, com ansiedade, possam desabafar nas redes sociais. Aí a culpa é nossa, uma vez que não foi dada resposta”, defende Carlos Martins. No entanto, segundo o presidente da ULS, esse não é o caso uma vez que a instituição conta com “um gabinete do cidadão extremamente eficaz, que faz uma monitorização semanal das reclamações”.
Nos casos já analisados, ainda antes da entrada em vigor do despacho, “o gabinete jurídico constatou que nenhuma daquelas situações tinha sido exposta nos termos adequados”, realça Carlos Martins, tendo aquele departamento sugerido ao conselho de administração que fossem acionados os meios legais no futuro. “Fez a proposta, que eu acolhi”, admite, tendo sido depois elaborado o despacho.
Despacho já está em vigor, mas presidente da ULS espera “nunca o acionar”
“Considerando que as situações claramente ofensivas e públicas, por publicadas, devem ter uma resposta firme, proporcional aos factos e autor(es)”, vinca o despacho, o presidente da ULS de Santa Maria determina que, “mensalmente, o Gabinete Jurídico envie um relatório sucinto sobre esta responsabilidade, o qual será submetido para apreciação, e eventual decisão em sede de reunião semanal do Conselho de Administração ou extraordinária, se tal se justificar”.
Ao Observador, Carlos Martins explica que o gabinete jurídico da ULS “solicitou autonomia para analisar situações e poder preparar uma reação sempre com autorização do conselho de administração”. Ainda assim, o responsável espera que seja situações “esporádicas” e garante que espera “nunca acionar o mecanismo” judicial contra os cidadãos. “Não tenho prazer algum em levar a conselho de administração uma proposta de uma participação em tribunal ou uma denúncia ao Ministério Público contra um cidadão“, vinca.
Questionados pelo Observador sobre se concordam com o teor do despacho do presidente da ULS de Santa Maria, tanto Ministério da Saúde como a Direção-Executiva do SNS dizem não ter comentários a fazer sobre o assunto.
O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares diz desconhecer que um mecanismo semelhante ao do Santa Maria esteja em vigor noutro hospital do país e sublinha que “os utentes têm todo o direito de fazerem a avaliação do serviço que lhes foi prestado e das condições em que foi prestado, exprimindo essa avaliação”.
Gestores dizem que hospitais devem ser “compreensivos”, mas recusam difamação a profissionais
Xavier Barreto realça que “os hospitais e as pessoas que lá trabalham têm de ser compreensivos em relação a perceções eventualmente erradas que os utentes tenham”.
“A pessoa que está à nossa frente está, muitas vezes, a passar por uma situação que desconhecemos e que pode gerar uma tensão e uma alteração da perceção que pode ser grave. Perante alguém que surja perante um profissional de saúde irritado ou exaltado, temos de ter toda a tolerância e muita paciência para lidar com aquela pessoa, que muitas vezes está em grande sofrimento”, sublinha o responsável.
Ainda assim, Xavier Barreto ressalva que coisa diferente é alguém “fazer apreciações que podem entrar naquilo que a lei qualifica como difamação: fazer juízos de valor não fundamentados, atribuir intencionalidade aos atos dos profissionais, dizer que um profissional o maltratou propositadamente, por exemplo”. E defende que os profissionais de saúde não podem também sentir-se difamados e atingidos por determinadas considerações feitas pelos utentes. “Os profissionais de saúde são pessoas como as outras. Não me parece errado que um hospital apoie um profissional de saúde se este for alvo de um crime de difamação por um doente. Essas situações estão previstas na lei. Os profissionais de saúde não têm de aceitar ser difamados. Não podemos chegar a esse ponto“, defende.
“Uma tentativa de atemorização que não vai surtir grande efeito”, diz advogado Saragoça da Matta
Ao Observador, o advogado Paulo Saragoça da Matta classifica o despacho como uma “tentativa de atemorização” com resultados práticos limitados. “É uma tentativa de atemorização que penso que não vá surtir grande efeito, por duas razões. Se é dirigido aos utentes e suas famílias, que já o fazem, não me parece que deixem de o fazer por força deste despacho, principalmente se é conhecido apenas pelas pessoas do hospital. Não creio que tenha uma grande penetração na coletividade. Em segundo lugar, porque todos sabemos que as difamações e as injúrias são completamente desconsideradas pelo Ministério Público, levando a arquivamentos na grande maioria dos casos, e também pelos tribunais”, sublinha o especialista, realçando que, “quando se fala em processos junto dos tribunais, ULS refere-se a processos civis, de indemnização pela violação do direito ao bom nome. Quanto ao Ministério Público, trata-se de processos crime”.
Paulo Saragoça da Matta considera que o “objetivo [do despacho] é dar um alerta público para fora do hospital e também a alguns profissionais que lá trabalham, que também possam praticar comportamentos desta natureza”. “Admito que vise toda a gente”, realça.
Ainda assim, e apesar de considerar que a atuação da ULS de Santa Maria não terá efeitos práticos, Paulo Saragoça da Matta lembra que “quer as difamações quer as injúrias a qualquer pessoa singular ou coletiva são passíveis de responsabilidade civil e criminal” e que avaliar o desempenho de um profissional de forma não factual — ou seja, falsa — denigre a imagem da pessoa em questão e configura um crime de difamação ou injúria.