Telmo Churro nasceu no bairro da Bica, em Lisboa, e lembra-se dos guias turísticos, livres de Tuk-Tuk mas com a lenga-lenga da “best city in the world” na ponta da língua. Trapaceiros sem maldade, artesãos da arte de bem falar, estabeleciam acordos com restaurantes e casas de fado para garantir aos turistas a “experiência” da capital. Anos idos e a tendência ganhou corpo de indústria, com a memória e a influência de uma cidade “lentamente a desaparecer para se transformar noutra coisa qualquer”. Este foi um dos pretextos para que o lisboeta, cujo nome é frequente ler-se como colaborador habitual no cinema de Miguel Gomes (como montador), se atirasse para a sua primeira longa metragem com a produtora, Som e Fúria, casa mãe de outros nomes como João Nicolau ou Manuel Mozos: “Índia” estreia-se esta quinta-feira nas salas portuguesas.
Neste filme conhecemos uma família feita de homens — pai, filho e avô, trágicos e cómicos, distantes, tão distantes da própria casa, guiados por uma espécie de figura angélica, uma turista brasileira que vem a Lisboa fazer uma visita. “Guiar” é uma das palavras chave deste Índia, porque Tiago (Pedro Inês) é também o guia escolhido por Karen (Denise Fraga) para lhe mostrar Lisboa, ao lado do pai Raul (José Manuel Mendes). Só que Tiago não quer falar de fachadas, nem de edifícios do Estado Novo ou das glórias dos Descobrimentos. Tem um guião para cumprir e, em todas as alíneas, há por lá uma figura trágica da Primeira República, que tanto tem algo de profundamente triste, como de profundamente anedótico. Essa tragédia abate-se em cada elemento dessa família, que lida com o luto à sua maneira. O da mulher, mãe e filha que os deixa; da avó, mãe e mulher que já não está; e da namorada de Manuel (João Carvalho), único filho, que foge da realidade para uma viagem erótica ao cosmos.
Telmo Churro tem aqui uma estreia auspiciosa, bem ao jeito de Miguel Gomes (Tabu, As Mil e Uma Noites, Diários de Otsoga), com acidez e provocação sobre o que é ser português, mas com trejeitos que tanto podem ser cómicos como dramáticos, dependendo do nível de luto do espectador. É notória a vontade de encontrar um estilo próprio, influenciado pelo cinema de Gomes mas, sobretudo, pelo gosto de Telmo Churro pela literatura. E, pelos vistos, pelo lado lúdico que existe em vermos os outros à procura de um sentido para fases inexplicáveis das nossas vidas. “Esta família é feita de homens. É um filme sobre luto, de como as personagens, todas elas num grau qualquer de luto, se relacionam entre si. Faltam as mulheres: tens o Tiago, deixado pela mulher, o Raul, com uma história fantasmagórica com a mãe do Tiago que morreu, o filho ainda não tem mas parece que vai ter, está numa viagem erótica ao cosmos, a desistir de tudo. A própria família já era estranha entre si e a ideia de famílias com várias gerações que ainda vivem em Lisboa começa, de facto, a desaparecer”, diz nesta conversa com o Observador. Ou seja, um trio masculino à procura de respostas dentro de uma cidade petrificada pela memória do que já foi, mas com sede de se vender à imagem de antigas glórias coletivas.
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