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Uma Little Simz transcendente num Paredes de Coura à chuva

Ao terceiro dia, a chuva foi impiedosa com o festival, bem como Little Simz, que deu um concerto que será lembrado nos próximos trinta anos. O Vodafone Paredes de Coura encerra hoje com Lorde e Wilco.

Qualquer ser humano sabe quando está na presença de uma força que o transcende. De tão avassaladora é essa presença, que é praticamente impossível explicá-la. É por isso que recorremos aos poemas e às canções para falar da morte e da ressurreição, conceitos que extravasam a doutrina cristã e são, na sua forma mais depurada e complexa, as pulsões que renovam os ciclos da vida.

Little Simz é essa força de destruição e de renovação e, como tudo o que altera as correntes dos rios e dos mares, altera, obrigatoriamente, o curso da humanidade, mesmo que essa mudança permaneça obstinadamente invisível para alguns. Como entender, por exemplo, que um meio especializado como a Billboard não considere Simz numa lista dos “50 melhores rappers da história”? Como é possível continuarmos a olhar para os mesmos nomes, maioritariamente norte-americanos, maioritariamente homens, e ignorar descaradamente uma das mais geniais, consistentes e inovadoras artistas da atualidade dentro do género?

É até injurioso reduzir “Simbi” ao rap, a um único estilo, dado o vocabulário que esta londrina, vencedora do Mercury Prize em 2022 pelo álbum Sometimes I Mighy Be Introvert, domina. No seu slang e prosa contemporâneas, ela consegiu criar um novo alfabeto, como o alfabeto de símbolos que José de Guimarães inventou para propor uma nova leitura do mundo. No seu traço, Little Simz atravessa o afrobeat de uma “Point and Kill” e “Fear No Man”, a disco de uma “Selfish”, o gospel de “Sihouette” ou o grime desse estrondoso hino feminista que é “Venom” e que vai direto ao busílis da questão, ao lembrar que uma pussy in power ainda aterroriza muita gente.

Jamais, depois do concerto que deu na terceira noite do Vodafone Paredes de Coura, poderemos ignorar a força desta rapper para quem só apeteceria cantar os versos de Moondog, Do your thing!, se ela própria já não os cantasse para si, do seu jeito inimitável: I’ma speak my truth till the end (“X”).

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Nesta sua segunda passagem por Portugal, Simz foi ainda mais estrondosa do que tinha sido em 2022, no Primavera Sound, mesmo que tenha passado grande parte do concerto de Paredes de Coura sozinha em palco (os dois músicos que a acompanharam nos últimos seis temas só entraram em “Introvert”), ao contrário do que aconteceu no Porto, onde se fez acompanhar por uma banda completa e a transbordar de talento, como ela.

Little Simz foi a grande cabeça de cartaz do terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura

Hugo Lima | www.hugolima.com

Talvez tenha sido essa solidão que fez desta atuação, a última da digressão, uma cerimónia quase sagrada: entregue a si própria, Simz predispôs-se a estar totalmente exposta e, nessa debilidade, fez-se poderosa como uma deusa. Para se aceder a esta condição é preciso um grande exercício de humildade e isso só demonstra, uma vez mais, como Simz consegue ser sublime ao cumprir-se em todo o seu poder e vulnerabilidade.

Ela tanto transborda confiança em linhas como as de “Two Worlds Apart” e em momentos em que permanece simplesmente quieta para que a admiremos; como desce à terra, atirando os óculos e o casacão preto para o lado e, olhando-nos nos olhos, se tolhe numa vergonha quase naïve perante a chuva de palmas e de gritos que chegam da plateia. Pelo meio, em “Heart on Fire”, aproximou-se das grades para dar um autógrafo a uma rapariga, que segurava um papel e uma caneta na mão, e para receber uma rosa de um fã. Tudo feito com naturalidade, sem demasiados passos ensaiados nem show off gratuito.

O concerto, que durou mais de uma hora debaixo de uma chuva copiosa – e ainda assim, se durasse a noite toda, suspeitamos que quase toda a gente continuaria a deixar-se encharcar de bom grado – terminou com “Woman” e a homenagem a todas as mulheres que inspiram Little Simz. Ao fazê-lo, ela já está a inspirar tantas outras que lhe sucederão.

Beijinhos, abraços e 900 cervejas para a Velha Guarda

O mundo precisa de mais vozes como as de Simbi e de mais garotas a liderar a mudança, para nos enlevar das injustiças ou simplesmente para nos lembrar que nos devemos mimar uns aos outros, coisa que vamos esquecendo à medida que nos tornámos adultos sisudos. Matilde, envolvendo-nos meigamente com os seus pequenos braços, mostrou-nos como isso se faz, concretizando o que A Garota Não tinha verbalizado poucos minutos antes: “Eles dão beijinhos e abraços”, sem pedir licença. Nós, os grandes, não.

Matilde, de oito anos, foi uma das muitas crianças que cruzaram as pernas atentas para assistirem ao concerto intimista que A Garota Não deu no terceiro dia do festival. Era a última Vodafone Music Session desta edição, ação que, cumprida uma década, se reatualizou no festival. Este ano houve Samuel Úria na Casa Grande de Romarigães, lugar afetivo da literatura de Aquilino Ribeiro, CAIO na Igreja de Rubiães e A Garota Não no Quartel das Artes, poiso das Comédias do Minho, o projeto cultural que une cinco municípios do Alto Minho (Paredes de Coura, Monção, Melgaço, Valença e Vila Nova de Cerveira).

Os trinta minutos deste concerto privado, que deixou muita gente à porta de uma sala cheia, deram para cinco singelas canções, com Sérgio Mendes a acompanhar Cátia Oliveira na guitarra. A que Matilde mais gostou foi da terceira, ou seja, da “Tantos Desencontros”, aquela que acaba com um poema de Francisca Camelo, o tal que diz que saber cair é uma ciência. Já João, companheiro de brincadeiras de Matilde no ATL de verão, elegeu a segunda, portanto, “A Canção”.

A Garota Não foi a protagonista da última Vodafone Music Session

Foram quatro canções de amor e uma de intervenção que A Garota Não tocou naquela tarde, lê-se em comunicado, e assim escrito até parece que estamos perante uma versão de livro de bolso das 18 Canções de Amor e Mais Uma de Ressentido Protesto (2007), de Fausto Bordalo Dias. Talvez Cátia tivesse ouvido muitas dessas canções na infância, numa altura em que distribuía abraços e beijinhos aos gomos, inventando países desconhecidos na sua imaginação, como Matilde. “O meu país é grande, cabe toda a gente”. Fica ao critério do leitor atribuir a citação à garota que mais lhe aprouver – em ambos os casos, ela é factual.

Tão grande como a imaginação é o campismo do “Couraíso”, outro país inventado e habitado por seres que nele estabelecem laços muito próprios, jamais vistos em outras paragens. Olhe-se para o caso da Velha Guarda, grupo de amigos de Braga que desde 1998 monta tenda nas margens do rio Coura para conviver e fazer as tainadas mais arrojadas que se podem preparar com um camping gás. “Este ano já tivemos polvo e coelho à caçador”, diz Augusto Vieira, de 59 anos, enquanto mexe uma senhora panela de massa à lavrador. No ano passado o menu incluiu leitão e feijoada de javali. “Já é uma tradição” e, como mandam as boas tradições, há que mantê-las vivas por muitos anos.

Para esta edição, o núcleo de sete amigos da Velha Guarda trouxe presunto, três litros de whisky e 900 cervejas. Haja fartura para manter o bandulho sempre cheio. A música, no meio deste fartote gastronómico, passa quase para segundo plano. “Não conhecemos nada destas bandas inglesas”, diz desta feita Fernando Barbosa, de 60 anos que, ainda assim, vai espreitando o que se passa em palco, para saciar a curiosidade. “Ontem vi uma moça que tocava violino e que foi 5 estrelas”, diz, referindo-se a Sudan Archives. Não podíamos estar mais de acordo com a crítica musical.

O afrobeat dos Kokoroko e o noise rock dos Black Midi

Despedimo-nos da Velha Guarda com pena de não nos sentarmos à mesa, posta com amizade e malga de vinho verde tinto sob uma toalha vermelha. Porém, no recinto havia outro banquete a provar, inspirado na cozinha mais refinada de Fela Kuti e Pat Thomas e interpretada pelos Kokoroko. “É a nossa segunda vez em Portugal, mas parece a primeira”, disse Sheila Maurice-Grey, mais conhecida como Ms Maurice, trompetista e líder desta superbanda que junta alguns dos músicos mais extraordinários da cena jazz londrina.

Os Kokoroko saíram ovacionados do Vodafone Paredes de Coura

A música dos Kokoroko é tão ampla quanto um tacho de almoço de domingo. Nela cabem desde o groove dos seventies ao pop dos anos 90, do afrofunk de Tony Allen ao ethio-jazz de Mulatu Astatke, da guitarra de Ebo Taylor ao soul de Marvin Gaye, este último homenageado com o tema “Something’s Going On”, em reverência ao mítico What’s Going On (1971).

Tão solar e enérgico é este coletivo de oito elementos que ninguém na plateia se pareceu importar com a chegada dos primeiros pingos de chuva (por esta altura, estávamos longe de imaginar o banho que iriamos levar mais logo). “Vamos todos dançar”, incentivou Ms Maurice, já depois do público ter trocado carícias e olhares íntimos ao som de “Abusey Junction”. Os muitos corpos que ainda permaneciam preguiçosos na relva levantaram-se num ápice, sacudindo-se para saudar os Kokoroko, e eles, sorridentes e agradecidos, lá se foram embora para outras paragens.

Black Midi e Domi & JD Beck

Deste dia, que foi indiscutivelmente de Little Simz, há ainda a reter a estreia em Portugal dos Domi & JD Beck, duo que chamou a atenção de Thundercat, Anderson .Paak, Herbie Hancock, Earl Sweatshirt, Bruno Mars, entre tantos outros e tantos os que ainda vão salivar por parcerias com estes virtuosos miúdos da música de improvisação. Os Black Midi deram um concerto alucinante que, na hipotética ausência de Simz, seria candidato a concerto do dia, e os portugueses Máquina, que substituíram à última da hora as The Last Dinner Party, causaram uma avalanche de crowdsurfing no palco secundário com o seu rock psicadélico.

Para o último dia, o Vodafone Paredes de Coura preparou um menu com Lee Fields, Sleaford Mods, Explosion in the Sky, Wilco e Lorde. Já os Velha Guarda servirão provavelmente um verdadeiro pica no chão com um bom galo caseiro. Iremos provar de tudo, se a chuva tiver piedade de nós.

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