Uma publicação tornou-se viral no Facebook por afirmar que Bill Gates, um dos fundadores da Microsoft, defende a utilização das vacinas como forma de reduzir a população mundial. A teoria baseia-se numa palestra que o empresário fez num encontro TED em 2010. No entanto, essa é uma interpretação errada das palavras de Bill Gates, que, na verdade, argumenta que as famílias têm tendência a crescer menos se viveram numa sociedade com boas condições de saúde — o que envolve o acesso facilitado a vacinação.

Na palestra “Innovating To Zero”, Bill Gates apresentou uma fórmula que permite calcular as emissões de dióxido de carbono no planeta e que passa por ter em conta quatro fatores: a população mundial, a média de serviços que cada pessoa utiliza, a média de energia que cada serviço consome e a emissão de dióxido de carbono que cada unidade de energia produz. O que Bill Gates concluiu é que, para que essa emissão de dióxido de carbono se aproxime de zero, então uma dessas parcelas também teria de se aproximar de zero. 

Esse cálculo foi corretamente explicada no texto da página “Boca Nervosa”, que diz: “Em uma apresentação da conferência TED, o bilionário da Microsoft Bill Gates, que doou centenas de milhões de dólares para novos esforços de vacinação, fala sobre a questão das emissões de CO2 e seus efeitos nas mudanças climáticas. Ele apresenta uma fórmula para rastrear emissões de CO2 da seguinte forma: CO2 = P x S x E x C”, em que “P” é o número de pessoas, “S” são os serviços, “E” é a energia consumida pelos serviços e “C” é a quantidade de dióxido de carbono que essa energia cria.

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Ora, depois de expor esta fórmula, Bill Gates começou a explicar cada uma das parcelas que a compõe. E disse:

“Em primeiro lugar, temos a população. Hoje em dia o mundo tem 6,8 mil milhões de pessoas. Isto está a encaminhar-se para cerca de nove mil milhões. Agora, se fizermos um trabalho mesmo bom em novas vacinas, cuidados de saúde, serviços de saúde reprodutiva, podemos diminuir isso em, talvez, 10% a 15%”.

É aqui que começam os problemas. A página “Boca Nervosa” defendeu que, com aquelas palavras, Bill Gates tinha confirmado que a vacinação contribui para diminuir a população mundial. Mais: que o fundador Microsoft tinha investido milhões de dólares em programas de vacinação para reduzir a população humana e, com isso, diminuir as emissões de dióxido de carbono em prol do ambiente.

“Claramente, esta afirmação implica que as vacinas são um método de redução populacional”, diz a publicação. E acrescenta: “Bill Gates parece estar dizendo que um dos principais objetivos é reduzir a população global como um mecanismo pelo qual podemos reduzir as emissões de CO2”.

Mas esta interpretação é errada. Para compreender o que Bill Gates queria realmente dizer com esta afirmação, é necessário compreender o trabalho filantrópico do fundador da Microsoft e que a Forbes explicou em 2011 num artigo intitulado: “Com as Vacinas, Bill Gates Muda o Mundo Outra vez”. “O plano de Bill Gates para erradicar doenças vem de um conceito arrojado — as teorias demográficas de Thomas Malthus, aceite de forma geral nos últimos dois séculos, que estão errados. Especificamente, que a subsistência eventualmente se traduz em crescimento populacional; e que o crescimento populacional eventualmente se traduz em miséria”, lê-se no artigo.

Quando Bill Gates e a mulher, Melinda Gates, quiseram investir num projeto filantrópico relacionado com saúde, começaram por focar-se na distribuição de métodos contraceptivos em países do terceiro mundo em que as mulheres tendiam a ter muitos filhos. Mais tarde, o empresário percebeu que, historicamente, quando as taxas de mortalidade diminuíam abaixo de 10 mortes por cada mil pessoas, as taxas de natalidade também diminuíam. Ou seja, quando a qualidade de vida aumentava, o número de pessoas que nascia diminuía. 

Porquê? Segundo a Forbes, o casal concluiu que isso acontecia porque as famílias tinham mais filhos por estarem cientes que alguns deles morreriam antes de chegarem a adultos.

Se uma mãe e um pai souberem que o filho deles vai viver até à vida adulta, começam naturalmente a reduzir o tamanho da sua população”, concretizou Melinda Gates.

Foi por causa disso, concluiu Bill Gates em entrevista à Forbes, que o casal decidiu investir em planos de vacinação. A ideia nunca foi utilizar a vacinação para reduzir a população que vive atualmente no planeta, mas para melhorar a qualidade de vida dos países com populações pobres, onde a taxa de natalidade tende a ser maior. Na visão do casal Gates, se essa qualidade de vida aumentar, a taxa de natalidade tende a atenuar e o crescimento populacional estabiliza. 

Isso mesmo está claramente explicado numa carta assinada pelos Gates em 2009:

“Um facto surpreendente mas importante que descobrimos foi que a redução do número de mortes também reduz o crescimento populacional. Ao contrário da visão de Malthus, segundo o qual a população vai crescer tanto quanto for possível alimentar as crianças, na verdade os pais escolhem ter filhos suficientes que lhes deem a possibilidade de muitos deles sobreviverem. À medida que o número de crianças que sobrevivem até à idade adulta aumenta, os pais conseguem alcançar isso sem terem tantos filhos”.

Ou seja, quando Bill Gates afirmou na conferência TED que, “se fizermos um trabalho mesmo bom em novas vacinas, cuidados de saúde, serviços de saúde reprodutiva, podemos diminuir isso em, talvez, 10% a 15%”, o fundador da Microsoft referia-se a diminuir a taxa de crescimento populacional, não a população mundial em si utilizando as vacinas para matar pessoas.

Mas o texto viral da “Boca Nervosa” tem mais problemas. Por exemplo, a publicação afirma também que as vacinas são feitas à base de um “vírus mortal” que está a ser injetado em humanos para controlar a população mundial; e que a investigadora que terá descoberto esse suposto esquema foi presa. Isso serve para pôr em marcha três planos, sugere a publicação: “Matar as pessoas lentamente de uma forma imperceptível, com efeito de 10 a 30 anos acelerando doenças degenerativas”, “reduzir a fertilidade” e “aumentar a taxa de mortalidade de uma futura pandemia”.

Nada disso é verdade. A Organização Mundial da Saúde esclarece que “a vacinação é segura e os efeitos secundários normalmente são irrelevantes e temporários”: “Qualquer vacina autorização é testada rigorosamente em várias fases de ensaios antes de ser aprovado para utilização; e reavaliada regularmente depois de introduzida. Os cientistas monitorizam constantemente a informação de fontes diferentes em busca de quaisquer sinais de que uma vacina pode causar riscos para a saúde”, descreve.

De qualquer modo, os estudos científicos comprovam que as vacinas não aceleram as doenças neurodegenerativas — pelo contrário, em alguns casos, até parecem retardar a evolução delas. Por exemplo, a Unidade de Investigação Geriátrica da Universidade de Laval, no Canadá, estudou cerca de 4 mil pessoas com 65 anos ou mais e descobriu que, após terem sido vacinadas contra certas doenças, só 183 desenvolveram Alzheimer. “A exposição anterior a vacinas contra difteria ou tétano, poliomielite e gripe pode proteger contra o desenvolvimento subsequente da doença de Alzheimer”, concluiu a investigação.

Também não é verdade que as vacinas tornem os pacientes inférteis. Essa questão surgiu quando a vacina contra o papilomavirus humano (HPV), que pode criar infeções nos órgãos genitais ou evoluir para um cancro no colo do útero, começou a ser distribuída às jovens mulheres através de planos de vacinação. O boato de que essa vacina podia ter implicações na fertilidade das raparigas chegou tão longe que a Organização Mundial da Saúde chegou a admitir que se tornou uma das maiores barreiras quando os médicos a quiseram implantar nos países em desenvolvimento.

Mas não há qualquer relação entre essa vacina e a infertilidade. O Centro de Controlo de Doenças emitiu um comunicado que diz claramente que “não há qualquer evidência científica de que as vacinas contra o HPV provoquem problemas de fertilidade em mulheres”. Na verdade, em última instância, a vacina pode mesmo ajudar a manter a fertilidade das raparigas: “O tratamento para o cancro no cérvix — remover o cérvix e o útero, quimioterapia ou radiação — pode fazer com que a mulher não consiga engravidar. Prevenir o cancro no cérvix através da vacinação contra o HPV reduz o risco”.

Por último, é falso que as vacinas aumentem a taxa de mortalidade caso surja uma pandemia. Em setembro, por ocasião dos 40 anos do Sistema Nacional de Saúde, descobriu-se que a esperança média de vida aumentou 10 anos, em parte graças à criação do Plano Nacional de Vacinação.

Estes argumentos são uma falácia comum entre os movimentos anti-vacinação. Algumas vacinas são produzidas com base nos vírus ou bactérias que provocam determinadas doenças. No entanto, esses agentes estão mortos ou foram modificados para serem inofensivos para a saúde. Quando essa vacina é injetada no humano, os glóbulos brancos — as células responsáveis por defender o organismos de ‘visitantes’ estranhos que possam ser uma ameaça para a saúde — atacam o vírus ou bactéria através de anticorpos específicos para esse agente. Caso o organismo volte a ser invadido por ele, o corpo já sabe que anticorpos recrutar para o atacar e o sistema imunitário combate-o mais facilmente.

O texto chega mesmo a afirmar que o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), o órgão norte-americano semelhante à Direção-Geral de Saúde em Portugal, tinha admitido que 98 milhões de pessoas tinham recebido o “vírus do cancro através da vacina da poliomielite”. Mas não foi bem assim.

É verdade que, “de 1955 a 1963, estima-se que 10% a 30% das vacinas de poliomielite administradas nos Estados Unidos estavam contaminadas com o vírus vacuolante símio 40 (SV40)”: “A maior parte da contaminação ocorreu na vacina inativada contra a poliomielite (IPV), mas também foi encontrada na vacina oral contra a poliomielite (OPV). Depois de a contaminação ter sido descoberta, o governo dos Estados Unidos estabeleceu requisitos de teste para verificar se todos os novos lotes de vacinas contra a poliomielite estavam livres de SV40”, acrescentou o CDC.

Depois de descoberto este problema, e após algumas investigações feitas com SV40 em animais, “houve algumas preocupações de que o vírus pudesse causar cancro em humanos”, confirmou o centro norte-americano. “No entanto”, prosseguiu, “a maior parte dos estudos que olharam para a relação entre SV40 e os cancros são tranquilizadores e não encontraram qualquer associação causal entre receber a vacina contra a poliomielite contaminada com SV40 e o desenvolvimento de cancros”.

Os 98 milhões de pessoas referidos pelo texto falso não correspondem ao número de pessoas que levaram a vacina contaminada, mas sim ao número total de cidadãos norte-americanos que levaram a vacina contra a poliomielite naquele período de tempo — mesmo as vacinas que não continham o vírus SV40.

Conclusão

É absolutamente falso que as vacinas estejam a ser utilizadas para reduzir a população mundial. Também não é verdade que Bill Gates tenha admitido esse plano, mas as palavras que proferiu na conferência TED foram mal interpretadas e aproveitadas por várias páginas dos movimentos anti-vacinação.

De acordo com o sistema de classificação do Observador este conteúdo é:

Errado

De acordo com o sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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