Circula nas redes sociais uma publicação que defende que não existe “qualquer interação” entre o aquecimento global do planeta e a atmosfera terrestre, já que “a sensação de ‘aquecimento’ é só à superfície terrestre”. Na publicação, que tem ganhado tração em alguns perfis de Facebook em Portugal, lê-se: “A sensação de ‘aquecimento’ é só à superfície terrestre… não há qualquer interação com a atmosfera terrestre! Qual a parte que ainda não perceberam?!”

Apesar de escrita num português particularmente confuso, a publicação reproduz um argumento que tem sido usado por quem nega o impacto da atividade humana nas alterações climáticas e a gravidade do aquecimento global: o de que este aquecimento se regista apenas à superfície do planeta Terra, pelo que não existe qualquer impacto estrutural da atividade humana na atmosfera terrestre.

A publicação mistura deliberadamente vários conceitos e ideias para criar confusão e fazer passar como verdade científica o oposto daquilo que é, atualmente, o consenso científico em torno das alterações climáticas.

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Vamos por partes.

Em primeiro lugar, a expressão “a sensação de ‘aquecimento’ é só à superfície terrestre” procura desvalorizar os dados científicos e mais do que validados que mostram como o planeta tem vindo a aquecer sistematicamente desde o final do século XIX e, de modo mais pronunciado, desde a década de 1950.

Mas o que significa isto? Ou, por outras palavras, como se mede a temperatura do planeta?

Com efeito, o indicador mais frequentemente usado para aferir a evolução da temperatura do planeta é a temperatura média do ar à superfície da terra e do mar. Por várias razões. Por um lado, é a temperatura que é mais fácil de medir no maior número de pontos diferentes do planeta, já que é medida em milhares de estações meteorológicas, navios e boias por todo o globo terrestre. Por outro lado, é também o indicador relativamente ao qual há registos mais antigos: existem registos da temperatura da superfície da terra desde pelo menos meados do século XIX, o que permite analisar a evolução deste indicador ao longo de quase dois séculos.

Finalmente, trata-se do indicador mais útil para compreender, efetivamente, o objeto em estudo: o aquecimento do planeta Terra. A atmosfera da Terra é composta por várias camadas: a troposfera (os primeiros 12 quilómetros), a estratosfera (12 a 50 quilómetros), a mesosfera (50 a 80 quilómetros), a termosfera (80 a 700 quilómetros) e a exosfera (700 a 10 mil quilómetros). As medições da temperatura à superfície da terra dão-nos informação sobre o que se passa na troposfera — que é a camada da atmosfera em que vivemos e, também, aquela em que acontecem praticamente todos os fenómenos meteorológicos do planeta, que podem ser agravados com o aquecimento da troposfera. Ou seja: quando queremos compreender o impacto da atividade humana no comportamento do clima, o aquecimento da troposfera é um dos indicadores centrais.

A publicação acrescenta ainda que “não há qualquer interação com a atmosfera terrestre” — uma sugestão de que a atividade humana que está a provocar o aquecimento da camada mais baixa da atmosfera terrestre não tem qualquer impacto no resto da atmosfera. Ora, isto também não é verdade.

Na verdade, a comunidade científica já concluiu também que, da mesma forma que a atividade humana tem dado um contributo significativo para o aquecimento da troposfera, também tem contribuído consideravelmente para o arrefecimento da estratosfera — um impacto igualmente perigoso para o planeta e para os seres humanos. Um estudo recente concluiu mesmo que a atividade humana causou um arrefecimento da estratosfera 12 a 15 vezes maior do que aconteceria apenas com causas naturais.

A atividade humana fez descer a temperatura da estratosfera de duas formas diferentes: em primeiro lugar, a destruição da camada de ozono devido à proliferação dos clorofluorcarbonetos fez com que aquela camada retivesse menos radiação ultravioleta oriunda do Sol, aquecendo menos; em segundo lugar, o aumento do dióxido de carbono na troposfera, da mesma forma que faz aumentar a temperatura dessa camada atmosférica, impede o calor de chegar à camada seguinte. Neste caso, o impacto humano traduz-se numa redução de temperatura daquela camada da atmosfera — igualmente problemática para o planeta.

Ao mesmo tempo, um outro estudo recente deu conta de como o aumento da temperatura do planeta Terra está a fazer expandir a troposfera, o que tem empurrado a estratosfera para altitudes superiores.

Por outro lado, também não é verdade que a temperatura do ar à superfície seja o único indicador usado para avaliar o impacto humano no planeta. Neste artigo do Carbon Brief, pode ler pormenorizadamente sobre o modo com os cientistas medem a temperatura global, recorrendo a uma complexa rede de estações meteorológicas, navios e boias, mas também à análise de múltiplas bases de dados e de informações recolhidas por satélites.

Conclusão

A publicação procura desacreditar o impacto humano no planeta através do argumento de que o aquecimento global se regista apenas à superfície da Terra, não interferindo com as restantes camadas da atmosfera terrestre. Como vimos, trata-se de uma mensagem deliberadamente confusa que não corresponde à verdade: o aquecimento do planeta é obviamente aferido através da medição da temperatura na troposfera, que é aquela onde ocorrem os fenómenos meteorológicos e onde vivem os seres humanos. É ao aumento dessa temperatura que chamamos aquecimento do planeta. Paralelamente, a atividade humana afeta outras camadas da atmosfera: por exemplo, a estratosfera, cujo arrefecimento (também problemático) se deve em grande parte ao impacto humano. Além de tudo isto, a publicação usa também a expressão “sensação de ‘aquecimento'”, referindo-se como mera “sensação” a um facto mais que comprovado.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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