No início do milénio, eu, já firmemente ateu, estudava filosofia numa universidade católica e, fosse por imperativos de formação, vocação ou devoção, recheava os meus dias a debater com colegas crentes e professores jesuítas as perplexidades e as sinuosidades da questão da existência de Deus. Munido do “Gott ist tot” de Nietzsche e do “Deus é a solidão dos homens” de Sartre, sentia-me sempre a postos para estrebuchar argumentos contra as cinco vias de Tomás de Aquino, a aposta de Pascal ou a doutrina da eleição de Karl Barth.

Qualquer mesinha de estudo na biblioteca onde reinassem silêncios e crucifixos se transformava instantaneamente numa ágora ateniense onde explodiam silogismos, alegações, recursos e objecções, até que “A Dona Conceição da Biblioteca”, nome e patronímico ternos e eternos, nos viesse pôr na ordem ou na rua. Muitas questões ficaram por responder (hábito que se demora desde, vá, Platão) mas nenhum insulto ficou por remeter. Simplesmente porque, naquele tempo, o insulto não existia. Insulto e debate eram então eventos mutuamente exclusivos. Trazer um insulto para um debate era tão sacrílego como entrar um porco no Santo dos Santos.

Algo, no entanto, mudou entretanto. O ambiente mudou. Está hoje menos, muito menos, livre para o debate de ideias. No ano 2000 podia discutir-se apaixonada e livremente a existência de Deus nos claustros de uma universidade católica sem se ser ameaçado com as labaredas e as forquilhas do inferno. Em 2019 não se pode discutir sequer a privatização do SNS sem se ser chamado de fascista ou o problema da imigração sem se ser acusado de xenofobia. Hoje o porco chafurda e ronca no Santo dos Santos como numa pocilga. Tenho-me perguntado o que aconteceu no caminho para cá. Hoje sei: aconteceu o 10 de Outubro de 1999.

Se eu tivesse que escolher a data mais negra da história da democracia portuguesa, seria 10 de Outubro de 1999. Desde esse dia, o espaço público, que já foi mais livre, mais leve, mais divertido, tem vindo a tornar-se cada vez mais intolerante, mais policiado, mais claustrofóbico. O esforço de compreensão deu lugar à ânsia de compressão. Onde antes se tolerava discutir a morte de Deus, hoje não se tolera sequer abordar os padecimentos da Segurança Social. Onde antes padres jesuítas convidavam alunos a ler e discutir Ludwig Feuerbach, hoje sacerdotes jacobinos intimam juízes a criminalizar (e directores de jornais a silenciar) Fátima Bonifácio. Ontem éramos encorajados a descobrir refutações para capítulos profundamente blasfemos, hoje somos atiçados a fantasiar punições para parágrafos vagamente controversos. O politicamente correcto é apenas o nome politicamente correcto que chamamos, desde então, a esta crescente claustrofobia antidemocrática.

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O que aconteceu à nossa democracia foi o 10 de Outubro de 1999: o dia em que o Bloco de Esquerda recolheu 132 mil votos nas eleições legislativas e Francisco Louçã e Luís Fazenda foram eleitos deputados à Assembleia da República. Pela primeira vez, a “doença infantil do comunismo” passou a ter representação parlamentar. O resto não é apenas história: é metástase. A partir desse dia começou a feroz colonização das universidades, das escolas, das redacções de imprensa, de todas as “fábricas da palavra” (porque as outras fábricas, as de braços e mãos, estão há já muito tomadas pela versão adulta da doença). A 10 de Outubro de 1999, com a eleição do Bloco, teve início em Portugal o sistemático sequestro das palavras. O que sentimos hoje, nos ecos remotos de uma esfera pública cada vez mais inflamada e menos vibrante, é o vazio crescente deixado pelas palavras já sequestradas e cujos sussurros familiares, ao longe, de vez em quando somos ainda capazes de escutar e reconhecer.

O triunfo dos porcos no Santo dos Santos é a instituição de uma novilíngua, vala comum de velhas palavras executadas. Parafraseando o outro, se querem uma visão do futuro, imaginem uma bota a pisar uma palavra — para sempre. 1984. E porque até nos processos de degradação estamos sempre crónica e pontualmente atrasados, só chegámos a 1984 em 1999. 1999 de 1984. 10 de Outubro de 1999: o anti-25 de Abril de 1974. Ainda tereis saudades, como eu, do 9 de Outubro de 1999.

Mestrando em Ciência Política, EEG/UMinho