Sempre que uma empresa vai à falência, não há princípio de confiança que proteja os seus credores, ou, pelo menos, parte deles. Grosso modo, hierarquizam-se os credores e usam-se os activos que sobram da empresa para lhes pagar, na medida do possível, seguindo a hierarquia definida.

Os portugueses têm tido aulas intensivas sobre este processo com os vários bancos e empresas que foram à falência nos últimos anos. No caso de um banco que entra em insolvência, no topo da hierarquia estão os depósitos bancários de baixo valor, depois depósitos bancários de elevado valor, depois detentores de dívida sénior e por aí fora. E, claro, muita gente fica com os seus investimentos a arder, especialmente os que estão na base na pirâmide hierárquica. Por muito doloroso que seja, a verdade é que não há alternativa. Não havendo dinheiro, não há. Não é possível inventá-lo.

O que escrevi acima está previsto para empresas e, com contornos diferentes, para particulares. Mas não está previsto para o Estado. Pelo contrário, a lei presume que o Estado é sempre um bom pagador. Por exemplo, dívidas do Estado não podem fiscalmente ser incluídas nas rubricas de cobrança duvidosa. Ou seja, para efeitos fiscais as empresas são proibidas de constituir provisões (as famosas imparidades) para a possibilidade de o Estado não lhes pagar. Infelizmente, como sabemos agora, a realidade é ilegal e até inconstitucional.

Pensei nisto por causa de dois assuntos que vieram à baila nas últimas semanas. Um deles foi a redução para 35 horas do horário de trabalho dos funcionários públicos. O outro foi a declaração de inconstitucionalidade que se refere às subvenções vitalícias a que algumas centenas de políticos tinham direito, deixaram (parcial ou totalmente) de ter e voltaram a ter.

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Bem sei que, do ponto de vista jurídico, os problemas são diferentes, até porque o aumento do horário de trabalho foi declarado conforme à Constituição, mas a verdade é que o argumento político é muito semelhante em ambos os casos: havia um contrato, que definia um conjunto de obrigações do Estado, e não é razoável o Estado alterá-lo unilateralmente. Evidentemente que o argumento faz sentido e evidentemente que não se devem rasgar contratos passados. Mas…

O Estado português foi à falência em 2011. Negar isto é negar a realidade. Pensar, argumentar e decidir sem ter isto em conta é como pensar, argumentar e decidir num mundo de fantasia. Esta falência não foi oficializada porque, legalmente, isso não existe. Muito provavelmente há algum princípio constitucional — talvez um princípio da continuidade do Estado no tempo — que o impede. Mas, deixando o mundo da fantasia constitucional de lado, é fácil perceber o que isto implica.

Se o Estado português foi à falência então era impossível cumprir todos os seus compromissos. Como perguntou Vítor Gaspar: não há dinheiro; qual destas três palavras não entendeu? Claro que não houve dinheiro para tudo, mas houve dinheiro para algumas coisas. Ou seja, houve uma escolha política. E essa escolha deveria corresponder a uma hierarquia bem definida, tal como se faz com os credores das empresas que vão à falência.

Numa hierarquia de prioridades, é muito pouco razoável garantir rendimentos que são, na verdade, privilégios (quase) injustificáveis. Claramente, algumas das rendas das PPP caem nesta categoria e muito mais devia ter sido feito nesta frente. Há outros exemplos, como o subsistema de saúde dos funcionários públicos, que era difícil de justificar. Fez todo o sentido aumentar os descontos para a ADSE (bem como acabar com alguns outros subsistemas) de forma a tornar todo o subsistema lucrativo, o que, na prática, se traduziu numa redução dos salários.

Aqui chegados, eu diria que o regime das 35 horas semanais entra nesta última categoria. Não há justificação plausível para que a norma seja de 35 horas semanais no sector público e de 40 horas no privado. De todos os cortes e ajustamentos que foram necessários fazer — que, por exemplo, incluíram uma redução muito substancial dos apoios dados a famílias no desemprego e/ou na pobreza —, este não é particularmente gravoso. Bem pelo contrário, foi a correcção de uma desigualdade injusta. Repô-la é iníquo.

Com a reposição das subvenções vitalícias, com retroactivos, deixamos o reino da fantasia para entrar no reino do absurdo. Falamos de direitos que foram adquiridos até 2009, ou seja, até dois anos antes de ser declarada falência do Estado. Falamos de direitos criados pelos seus directos beneficiários, os deputados. É um caso típico de captura do interesse público por parte de interesses privados. O facto de esses interesses serem de nossos representantes num órgão de soberania, a Assembleia da República, apenas torna tudo mais aviltante. Que 30 deputados tenham feito ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva da lei que determinou o fim desse privilégio é ainda imoral porque muitos deles fizeram o pedido em proveito próprio, fazendo uso de uma prerrogativa que está vedada ao cidadão comum. Como me dizia um amigo, no mínimo, deviam aprovar uma lei que desse aos cidadãos o mesmo privilégio. Por exemplo, desde que se reunisse 5000 assinaturas, os cidadãos poderiam fazer um pedido de fiscalização sucessiva directamente ao Tribunal Constitucional, que teria de se pronunciar sobre a matéria em causa.

Com a humilhação que sofreu no Domingo passado, é impossível não ter alguma pena de Maria de Belém. Mas espero que a nossa classe política tenha percebido que o país está farto de privilégios indevidos. Já que têm dificuldades éticas, digamos assim, em acabar com eles, ao menos que o façam por mesquinhos motivos eleitorais.