Imagine-se um imenso batalhão de crianças, adolescentes, jovens e menos jovens, que, desde tenra idade, aprendem que a destruição do ambiente está iminente a menos que…
Este “a menos que” é estranho, porque para além de reciclagem e separação de resíduos, tudo o resto é muito difuso. Nos protagonistas, nas estratégias e na capacidade de perceber a interdependência e a complexidade da nossa vivência em sociedade.

Nos nossos mais tenros idos da adolescência, quando começámos a ser confrontados com o espectro das alterações climáticas, esse futuro apocalíptico estava distante e, acima de tudo, poderia ser evitado com as estratégias correctas.

O tempo foi passando e hoje vemos o Secretário-Geral das Nações Unidas e, mais inacreditavelmente ainda, presidentes e primeiros ministros dos países que supostamente causam o problema, a anunciar que o dito futuro começou ou vai ter início na próxima madrugada.

O futuro chegou e é apocalíptico. Como lidar com ele? Reconheço o inevitável? Passo a lidar com o “pós-apocalíptico”?

Este é o dilema com que todos nós, individualmente ou como um todo, temos que lidar.  Mas é ainda mais agudo para os movimentos ambientalistas que têm que recusar, combinar ou ultrapassar as tensões entre a cada vez mais impossível mitigação e a cada vez mais imperiosa adaptação. Estudos interessantes têm sido realizados sobre essa tensão e os movimentos, muitas vezes inorgânicos, que têm surgido ultimamente. As conclusões apontam para o facto de que esses movimentos são fundamentalmente liderados por aqueles que recusam a adaptação, que defendem a mitigação de forma radical, porque o futuro já começou.

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Ora, a legião dos “ambientalmente sensíveis” e das crianças que começam a ser confrontadas com o Apocalipse, tem de começar a lidar com o Inferno.

Não esquecer que um principio fundamental da adaptação humana é o controle. E, mais importante ainda, a percepção de controle. No contexto daquilo que prevemos que se avizinha, o controle, ou mesmo uma ténue perceção de controle, não está acessível. E quase tudo o que se deseja fazer começa muitas vezes a ser percebido, não só como impossível mas, acima de tudo, irrelevante e desnecessário.

A consciência aguda das alterações climáticas, da poluição etc, pode aumentar a ansiedade. Mas o que difere a ansiedade normal, por exemplo advinda da inevitável falta de agua no Alentejo e Algarve, da ansiedade perturbadora e incapacitante? Esta última é um estado de humor associado à sensação de que os acontecimentos estão e vão-se desenrolando de maneira imprevisível e incontrolável. Ela é acompanhada tanto por excitação fisiológica quanto por uma série de respostas cognitivas, incluindo hipervigilância para ameaças e perigos e, em níveis intensos, medo e pânico. Se a preocupação é fundamental para lidar como o futuro, logo fazendo parte de um processo normal e adaptativo, ela pode ser impulsionada pela ansiedade tornando-se intensa, crónica e maladaptativa.

Assim, a eco-ansiedade pode ter múltiplos impactes a nível da depressão, irratibilidade, fraqueza e insónia, levando a uma série de perturbações funcionais como a perda de apetite, de capacidade de trabalho e mesmo de apreciar a diversão. Podem aparecer, devido a esta preocupação intensa, comportamentos obsessivo-compulsivos como, imagine-se, apanhar todo o lixo a caminho de casa, ou ficar preso em processos intermináveis de cenários hipotéticos (i.e. “se isto  acontecer, então aquilo”). Por outro lado se a poluição for a preocupação podem aparecerer mecanismos de pseudo-controle que são acompanhados de horários precisos e comportamentos “saudáveis”, seguidos até ao ínfimo pormenor, de um roteiro imaginário para uma salvação mirífica.

E poderíamos ser levados a crer que os jovens mais preocupados seriam aqueles que se empenhariam mais na proteção do ambiente. Mas isso não acontece necessariamente, e por razões psicológicas. Por um lado, porque o extremo medo pode levar a fenómenos de negação; por outro, e de modo mais interessante, a correlação entre a preocupação ambiental e o comportamento é alta no início mas vai baixar drasticamente quando o medo do futuro é substancial (num U invertido). Este padrão é conhecido e acontece sempre que o medo de uma ameaça aumenta de forma clara.

Por todo o mundo — e não falamos de fenómenos climáticos extremos onde os efeitos sobre as crianças e jovens são ainda mais traumáticos — a eco-ansiedade configura um quadro cada vez mais bem definido e mais presente, a que todos temos que estar atentos e dar resposta, tanto a nível pessoal como comunitário, envolvendo os jovens localmente em projectos de mudança e de adaptação.

Com o Apocalipse que se aproxima, vamso todos começar a sentir aquilo que eles sentem, i.e., “solastagia”, ou a angustia e a saudade de perder aquilo que temos hoje e provavelmente não teremos amanhã.

Bem-vindos ao Inferno.

José  Manuel da Palma-Oliveira é professor de Psicologia do Ambiente e Perceção de Risco da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Partner da Factor Social, Consultadoria em Psicologia e Ambiente, foi presidente da Quercus e é Sócio-fundador da Associação Zero.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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