Decorria o ano de 2019, a pandemia da covid-19 não fazia parte do imaginário coletivo e caminhávamos rapidamente para as eleições legislativas de outubro, quando um personagem oriundo do PPD-PSD e do comentário rasca futebolístico, depois de uma campanha autárquica falhada em Loures e percebendo a dificuldade que teria em escalar o aparelho partidário laranja, decide criar um partido. Com um nome pateta, constituído por duas interjeições destrutivas, e programa que envergonharia qualquer taberneiro, iniciou uma demanda contra o sistema (democrático?) e contra a Constituição da República Portuguesa, radicado num qualquer fetiche por rasgar documentos, logo fundamentais.

De há uns séculos a esta parte, nada é novo, nada é original neste retângulo à beira-mar plantado. À semelhança de qualquer boa trend, importada, também esta levou alguns anos a chegar a Portugal. Não era, por isso, nova, constava dos velhos manuais do século XX, cujo pó havia vindo a ser sacudido pelas mãos de Trump, Bolsonaro, Salvini, Abascal, Orban e tantos outros. Adotaram os mesmos princípios, o populismo, o ódio, os ideais de extrema-direita, o racismo, a xenofobia, a homofobia e a misoginia. Também o modus operandi foi replicado, a mentira e a violência tornaram-se os veículos do ódio e até discursos foram integralmente copiados.

Esta agremiação desengonçada de renegados dos partidos tradicionais e militantes da extrema-direita, sem-abrigo, que saltavam de projeto político em projeto político, historicamente condenados e falhados, não foi, como seria de esperar, levada a sério. Parecia tudo demasiado mau para ser verdade: dos protagonistas e mensagem, aos grafismos e modos, parecia uma piada de mau gosto, uma imitação barata do que há anos se vinha a fazer no estrangeiro. Até o Tribunal Constitucional, fazendo vista grossa de muitas das mensagens, desconsiderando a intencionalidade, ignorou o racismo e xenofobia impregnada nos discursos e legalizou a constituição do partido.

As forças políticas reagiram ao fenómeno de forma díspar. Umas ignoraram, porque não tinha votos suficientes, como se o nível de censura a um projeto político antidemocrático devesse depender do peso eleitoral do mesmo; outras fizeram do combate ao fenómeno a sua maior bandeira e houve, ainda, aquelas que negociaram e celebraram acordos com este, como se de mais um partido se tratasse.

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Na comunicação social, agências, em crise, rapidamente perceberam que encontravam neste partido um seguro de vida. Estabeleceram uma espiral recessiva, perniciosa e viciosa. A chalupice e o insulto escandalizavam, que, por sua vez, vendia. As vendas disparavam e incentivavam a parvoíce e registos cada vez mais imundos. A dramatização, da qual os Da Weasel nos falavam, era a única forma dos media tradicionais competirem com o acesso à informação descentralizada que as redes sociais encerravam. A aposta feita pelo partido nas redes há muito era evidente e começava a colher frutos. As grandes fábricas de notícias falsas, alimentadas por centenas de perfis falsos, enchiam publicações de comentários, reações e insultos, alcançando públicos crescentemente diversificados e massificados.

No entanto, é importante lembrar que a máxima C.R.E.A.M. (cash rules everything around me/ o dinheiro controla tudo à minha volta), eternizada em 1993 pelos Wu-Tang Clan, no mítico disco “36 Chambers”, também se aplica ao crescimento da extrema-direita em Portugal e na Europa. Não se obtém espaço e tempo de antena na comunicação social, compram-se gostos e seguidores nas redes sociais e erguem-se sedes, cartazes e outdoors gigantescos em diferentes pontos do país sem financiamento e esse tem de vir de algum lado.  Há investigação jornalística estabilizada sobre o tema. Sabe-se, hoje, que redes internacionais de extrema-direita, igrejas evangélicas e grandes grupos económicos são os mecenas, os grandes responsáveis por detrás da astronómica tesouraria de que o partido dispõe.

Enfim, vimos o monstro nascer e, apoiado nas suas frágeis pernas, levantar-se. Nada fizemos. À medida que foi crescendo e ganhando forma, enquanto uns procuravam combatê-lo, outros rasgavam as vestes para o defenderem. No final era só mais um monstro, igual a todos os outros, com direitos e deveres, um cidadão, diziam. Guardámos a esperança de que o momento magnânimo da democracia, as eleições, lhe fossem prejudiciais e agarrámo-nos à previsível insignificância eleitoral, o último reduto, um quasi templo sagrado, que nos assegurava uma condigna comemoração dos 50 anos do 25 de Abril.

A previsão falhou. Falhámos. Eis a batalha perdida: 48 deputados, mais de 1 milhão de votos, um partido anticonstitucional normalizado no parlamento e comunicação social, com perspetivas subsistentes de crescimento, que, apesar de possuir menos de 20% dos votos, exige governar e faz recair em si a solução para a estabilidade governativa no país. Tudo isto na celebração do meio século da Revolução de Abril. Uau.

Nem tudo está perdido, contudo. Uma campanha é composta por várias batalhas, que podem definir a guerra, é verdade, e não podemos perder mais nenhuma.

Como condição primacial, ao contrário de Miyamoto Musashi, não nos podemos dar ao luxo de chegar atrasados ao campo democrático da batalha de ideias. Democracia, Liberdade, Igualdade, Solidariedade e Fraternidade têm de ser as nossas armas empunhadas.

Depois, é fundamental empreender em inteligência, na aceção de atividade. Cabe-nos reconhecer o perfil do votante e, também, do integrante deste fenómeno. Nem todos são fascistas, racistas ou xenófobos, mas também os há. Nem todos são votos de protesto antissistema, mas também os há. Nem todos vivem mal ou sofrem de problemas nos salários, na habitação, na saúde ou na justiça, mas também os há. Convém distingui-los, abraçar uns e enfrentar outros.

Em terceiro lugar, há que renovar hostes nos partidos tradicionais, trabalhar a comunicação política e digital e abrir à sociedade civil, associações, fundações e think-tanks os diretórios político-partidários. Há uma geração que tem de ser cativada e fidelizada.

Por fim, se durante tantos anos, como António Costa sublinhou, foi dado ao partido em causa e ao seu líder uma atenção desproporcionalmente elevada nos media, comparada com o que representam na nossa vida coletiva, talvez seja uma solução justa ou, pelo menos, cármica, atribuir-lhe de ora em diante uma atenção desproporcionalmente inferior ao pouco que ainda representa.

Não viemos de tão longe, só para chegar aqui. Conquistámos tanto e construímos ainda mais desde 1974. É tempo de arregaçar as mangas e lutar. Traz outro amigo, também, pelo 25 de Abril, pelo Estado de Direito Democrático, por Portugal.