Portugal atravessa uma crise habitacional sem precedente. A inflação, motivada pela invasão russa da Ucrânia, o aumento das taxas de juro, a pressão urbanística dos grandes centros, a proliferação descontrolada do alojamento local nas cidades, os vistos Gold que, durante anos a fio, serviram para a construção de imóveis de luxo, inutilizáveis para arrendamento e invendáveis, a falta de espaço para construção nos Planos Diretor Municipais, os mais de 700.000 imóveis vazios, entre mais algumas razões, provocaram um brutal aumento das rendas e do preço das habitações em Portugal, exigindo-se entradas para acesso ao crédito à habitação cada vez maiores e taxas de esforço incomportáveis.

O problema da habitação não é insolúvel. Aliás, a solução é simples e direta, mas de complexa e morosa concretização: habitação pública. O alargamento do parque público habitacional lançará um forte aviso ao subvertido mercado imobiliário, injetando na rede um conjunto de fogos a preços abaixo do valor de mercado ou em regime de arrendamento acessível. Mas, como disse o primeiro-ministro António Costa na entrevista dada no passado dia 17 de fevereiro, a construção demora o seu tempo, não é instantânea. Por essa razão, é necessário pensar em medidas transitórias, que mitiguem os efeitos da crise e apoiem as pessoas e, em particular, os jovens e as famílias, sejam de classe média, ou mais carenciadas.

Da reunião de Conselho de Ministros de quinta-feira saiu um interessante pacote de medidas substantivas e inovadoras. Do licenciamento mais expedito e simplificado, ao programa de subarrendamento pelo Estado, sem esquecer o fim dos vistos gold, a concessão de benefícios fiscais na venda de imóveis ao Estado e nos rendimentos provenientes de rendas, e a proteção reforçada no acesso ao crédito à habitação, estas propostas são um importante virar de página no que às políticas de habitação nacionais concerne.

No entanto, houve uma medida em particular que captou os holofotes mediáticos e a atenção da opinião pública, o arrendamento coercivo/ compulsivo/ forçado ou, mais corretamente, a posse administrativa de habitações devolutas para subarrendamento por entidades públicas. Como é habitual no país, não tardaram as habituais simplificações argumentativas, que transformam um cinzento e complexo debate jurídico, num redutor debate a preto e branco. Os abolicionistas da propriedade privada atestam que não se foi longe o suficiente no ataque aos proprietários. Já os adoradores da divina propriedade, não perderam tempo em invocar a Constituição e fazer um ridículo paralelismo com os tempos do PREC. As reações acumulam-se e os especialistas em direito constitucional começam a brotar.

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Afinal, em que consiste este arrendamento compulsivo anunciado? O arrendamento obrigatório de casas devolutas consiste na mobilização pelo Estado de património devoluto através do arrendamento obrigatório por entidades publicas, com o respetivo pagamento de rendas a preço de mercado ao proprietário, para posterior subarrendamento a preços acessíveis e limitados. Pretende-se, desta forma, colocar no mercado milhares de casas vazias que nem aproveitam aos proprietários (que não obtêm rendimentos destas), nem vão de encontro às necessidades da população portuguesa e à função social da propriedade que o texto constitucional e a própria Carta Encíclica Fratelli Tutti advogam.

O debate sobre a (in)constitucionalidade é interessante e precipita um conjunto de reflexões jurídico-constitucionais sobre o tema.

Em primeiro lugar, importa referir que não existem direitos absolutos. Tanto o direito à habitação, como o direito à propriedade privada encontram previsão na Lei Fundamental, no capítulo dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Todos os direitos exigem, por parte do legislador e aplicador das normas, uma ponderação e um confronto crítico entre axiomas. Diariamente, direitos fundamentais são limitados, nomeadamente, a propriedade privada. Caso contrário, se a propriedade privada fosse absoluta, não haveria qualquer limitação na venda e porte de armas ou até de estupefacientes, por exemplo. A vida em comunidade exige compromissos balizados e cedências proporcionais do património liberal da individualidade, que as sociedades ocidentais hodiernas consagram.

Depois, há que compreender que este tipo de compressão ao direito de propriedade privada não é inaudito, há precedentes. Desde logo, em 2009, o Tribunal Constitucional pronunciou-se unanimemente pela constitucionalidade de a Administração impor a venda forçada de imóveis não reabilitados nem conservados pelos seus proprietários. Há, a propósito, dois diplomas que limitam em boa medida este direito: o Decreto-Lei n.º 52/2021, de 15 de junho, que estabelece o regime jurídico do arrendamento forçado de prédios rústicos e o Decreto-Lei n.º 66/2019, de 21 de maio, que dispõe regras aplicáveis à intimação e execução coerciva de obras de manutenção, reabilitação ou demolição de prédios em mau estado de conservação. Ademais, existe uma figura que, quando aplicada, consubstancia uma autêntica bomba neste direito real. Trata-se da expropriação, figura utilizada pelo Estado para se apropriar de propriedade privada para fins de interesse público. Na realidade, todos estes institutos jurídicos visam fins específicos, fins esses que justificam esta coerção de um princípio basilar.

Ora, de volta à proposta, apesar das preocupações legítimas levantadas, é prematuro e, julga-se, incorreto uma pronúncia liminar pela inconstitucionalidade da medida. Veja-se. Comparativamente às figuras a que se aludiu, esta é uma proposta que 1) não ataca o núcleo essencial do direito de propriedade privada, uma vez que não está em causa a extinção da propriedade, somente a posse administrativa do fogo para um fim social relevante e 2) protege uma das manifestações do direito de propriedade, a rentabilidade, garantindo ao proprietário o pagamento de uma renda justa, a preço de mercado. Mais, a finalidade desta posse administrativa é, diga-se, igual ou superiormente valorada face a outras situações em que, no passado, se comprimiu este direito. Está em causa um direito tão básico quanto fundamental como o acesso a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

Está é, pois, uma medida justa e proporcional (necessária, adequada e proporcional em sentido estrito), cabendo ao legislador uma redação cuidada que limite na medida do mínimo possível a propriedade. No final do dia, entre o direito a uma família ter acesso à habitação digna e o direito a um proprietário manter uma casa vazia fechada, sem dela retirar qualquer proveito pessoal ou económico, a escolha, para um/a humanista, é óbvia. Ah, e, como um dos mais brilhantes professores com que se teve oportunidade de tanto aprender afirmou, “se custa assim tanto ser proprietário, não sejam ou, alternativamente, partilhem essa dor com todos.”