Tinha de acontecer, aconteceu: a censura regressou a Portugal sob a forma hipócrita de “recomendação”. Livros vão desaparecer das livrarias porque alguém entendeu que acentuavam “estereótipos de género” – e meter-se com a “igualdade de género” é um dos crimes maiores da actualidade. Pior: esses livros vão ser retirados “voluntariamente” pela editora, que talvez por ser a maior do país e a que mais negócio faz com livros escolares a última coisa que deseja é uma polémica com os nossos novos talibãs do politicamente correcto.
Este país não cessa pois de me envergonhar.
Envergonha pela audácia dos censores, que chegaram agora ao ponto de recomendar que livros fossem retirados das livrarias — sim: retirados das livrarias e enviados para o lixo. Podiam fazer como é normal em qualquer sociedade democrática: criticar os livros, abrir porventura um debate sobre se é possível haver actividades diferentes para meninas e rapazes, mas isso cobri-los-ia de ridículo (basta de resto olhar para os desenhos que alegadamente teriam estereótipos de sexo para soltar uma valente gargalhada com a parvoíce destes inquisidores). Mas em vez da discussão preferiram a intimidação abusando do seu poder administrativo.
E envergonha pelo servilismo do editor, porventura racional do ponto de vista do seu negócio num país onde o Estado e os governos mandam em tudo, mas uma lástima se pensarmos no que é a missão de quem imagina e produz livros.
Mas não me surpreende que assim seja, pois estamos submetidos às estritas regras e códigos de conduta da chamada “ideologia do género”, uma nova ortodoxia contra a qual poucos levantam a voz. Mas que não pode passar sem que a contestemos.
Até porque a fúria destes indignados toca a todos – e tanto que toca que agora até agarrou nas suas teias um ícone da esquerda planetária, o cantor Chico Buarque, de repente acusado de machismo por causa da letra de uma canção.
Os versos de Chico, perdoem-me a frontalidade, são tão inocentes como verdadeiros. Dizem eles: “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Apenas isto, mas o suficiente para se levantar o coro das almas ofendidas: essa relação homem-mulher “está ultrapassada”, gritaram. E vozes femininas até acrescentaram que “essa mulher que ele evoca, não sou, não é”, em textos onde se “desamigavam” do seu “muso”. Ora eu pergunto, sem rodeios: já não há homens que abandonam mulheres e filhos? Não é porventura isso mais frequente hoje do que nos arqueológicos anos 70 a que querem amarrar Chico Buarque? E é ou não verdade, como mostram muitos estudos e até reconhecem feministas históricas, que a “igualdade sexual” mais depressa resultou em homens a trocarem as suas mulheres por outras mais novas do que em verdadeira igualdade?
Não comecem já a indignar-se, porque não estou a tirar nenhuma conclusão – estou a abrir uma discussão. Não sobre se Chico ainda é “romântico”, mas sobre um tema tabu que não se quer encarar: o de que nem tudo é igual na igualdade sexual. Aos que duvidam recomendo a leitura de Why Is Sex Fun? The Evolution of Human Sexuality, de Jared Diamond (o autor de obras tão conhecidas como Guns, Germs and Steel ou Collapse), mas hoje não é o dia para esse debate – é apenas o dia para dizer que ele existe ao contrário do que pretendem os polícias do pensamento.
E quando digo polícias do pensamento não escolho estas palavras por acaso: ao estabelecer limites ao que se pode dizer e ao que não pode ser debatido, ao controlar a linguagem o que se pretende é tão simplesmente formatar o espaço público em função de determinadas agendas políticas e de pouco inocentes messianismos. Não há nenhuma originalidade nesta afirmação, apenas a recordação de que esse é o mesmo caminho seguido pelos regimes totalitários genialmente retratados na distopia de George Orwell 1984. O escritor, que conheceu bem de perto os pesadelos dos fascismos europeus e do comunismo universal, inventou mesmo uma palavra – newspeak – para retratar esse esforço de dominar as mentes através do controle da linguagem. O politicamente correcto de hoje é, com frequência, apenas a versão contemporânea do doublethink orwelliano.
A duplicidade de critérios e o esforço para formatar o pensamento em função do que se considera tolerável e do que se classifica como tabu andam de facto a par. E vivem bem nas águas turvas em que nos movemos, medram ainda melhor nas mentes pouco esclarecidas dos que saltitam de indignação em indignação sem grande espaço para pensarem ou reflectirem.
Tomemos o caso de uma controvérsia recente, daquelas que mal saiu das redes sociais: a graçola obscena de um conhecido humorista em que se explorava a grave doença da mulher de Pedro Passos Coelho. O nível de javardice da piada era tal que não devia ter servido para mais nada senão para desqualificar o seu autor, de resto reincidente no seu ofensivo mau gosto, mas mesmo assim houve quem se apresentasse quase como vítima.
Não vale a pena perder tempo a comentar este caso, ainda menos a dar-lhe mais publicidade – mas já vale a pena notar que muitas vezes este tipo de “humor” é apresentado como sendo apenas “politicamente incorrecto”. Grave engano. Não há ali nada de politicamente incorrecto (apesar de haver muito de politicamente motivado e obsessivo), há apenas falta de humanidade e, lamento repeti-lo, aquilo a que popularmente se chama javardice. Confundir as duas coisas é como confundir a Estrada da Beira com a beira da estrada.
Eu sei que o humor pode ser grotesco e nunca me passaria pela cabeça recomendar que fosse retirado do ar (ou de uma livraria, se aí chegasse), tal como sei que o humor pode ser ofensivo. O facto de o tolerar não me retira o direito de o criticar, se necessário com toda a violência verbal da minha imaginação. Mas uma coisa é brincar com coisas sérias, outra é pretender que isso viola das convenções dos novos polícias do pensamento. Uma coisa é ser grotesco, outra é não desistir de contestar ideias que se têm por incontestáveis. Por regra é até esse grotesco que faz coro com o politicamente correcto.
Tomemos um outro exemplo recente, o das declarações de André Ventura sobre ciganos. Uma coisa é condenar o registo xenófobo em que estas foram feitas e questionar a continuação do apoio do PSD a esse candidato, algo que já defendi preto no branco. Outra coisa bem diferente é fazer de conta que não existe um problema com as comunidades ciganas. Ora quando a ortodoxia pretende calar a existência de realidades difíceis de abordar em nome da “não discriminação”, o que está a fazer é a tentar tapar o sol com uma peneira e, pior do que isso, a contribuir para que aqueles que convivem diariamente com esses problemas se radicalizem em torno de estereótipos racistas. É um tiro que sai pela culatra.
O meu colega aqui das colunas de opinião do Observador Luís Aguiar-Conraria defende que, ao criticarmos o discurso politicamente correcto, trazemos inevitavelmente agarrado o racismo e a xenofobia. Permito-me discordar. Primeiro, por uma questão de princípio: se defendo que todos os temas estão abertos à discussão não posso criar zonas interditas e demarcar áreas tabu. Depois, e sobretudo, porque julgo que inverte a ordem dos factores: o terreno onde facilmente medraram as sementes do populismo (e não obrigatoriamente do racismo e da xenofobia) foi o terreno adubado por um discurso dominante que tratava como párias todos os que não seguissem a mais estrita ortodoxia da “filosofia de género” ou do multiculturalismo, para só citar duas áreas especialmente sensíveis.
De resto este radicalismo não desapareceu. Ainda agora a prestigiosa Universidade de Yale mandou mutilar uma escultura no seu mais emblemático edifício porque esta podia eventualmente ofender os nativos americanos, apesar de muitos considerarem que o efeito foi precisamente o contrário. Isto quase ao mesmo tempo que um programador da Google era despedido por se atrever a divulgar um memorando onde discutia a hipótese de as aptidões das mulheres serem diferentes das dos homens, um debate que nenhum neuropsicólogo consideraria abusivo.
São apenas dois de muitos excessos que resultam de um ambiente minado pela obsessão do politicamente correcto e que criam, no mínimo, uma perplexidade favorável à exploração populista. Da mesma forma que gritar “racismo” só porque se quer discutir problemas relacionados com as comunidades ciganas pode cair muito bem entre os que não conhecem essa conflitualidade, mas caem muito mal entre os que vivem na sua vizinhança – que até são por regra, sem surpresa, mais pobres e menos instruídos.
Num primeiro momento excessos como o dos livros para meninas e rapazes ou polémicas como a de Chico Buarque levar-nos-iam apenas ao desabafo de “estão todos doidos”. Mas quando se passa daí a um acto objectivo de censura, passamos a ter de estar alerta em nome da liberdade de expressão. Por fim, quando este ambiente se torna opressivo, quando resulta de uma nova forma de fanatismo, só podemos contrariá-lo sem complexos ou receios, pois é também ele que ajuda a cavar as divisões e as incompreensões que abrem caminho ao populismo. E isso pode ser tão verdade para o “rust belt” americano como para os subúrbios de Lisboa ou Porto.
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