Um dia uma jornalista perguntou-me – como perguntou então a outros deputados – o que era a classe média. E eu respondi: ““A classe média é definida em função do rendimento do agregado familiar. É um conceito associado a quem não vive de transferências sociais, mas essencialmente do rendimento do trabalho, e que não tem acumulação de património que lhe permita fazer desse património forma de vida”. Mais adiante disse: “É aquele que ganha 800 euros, tem despesas com habitação própria, com educação dos filhos, com transportes, recorre ao Serviço Nacional de Saúde, vive essencialmente do trabalho e dos rendimentos do trabalho”. (inObservador). Pode ser curto, não será seguramente exaustivo e não definirá um perímetro conceptual absolutamente claro, mas era, nesse momento, uma aproximação.

A vida de quem trabalha, com um salário médio (em torno dos 876 euros), quem tem poucos apoios sociais (transferências), que recorre ao transporte (próprio ou coletivo) para ir trabalhar e que tem, no serviço nacional de saúde, na escola pública e na segurança social, a rede fundamental de vida. Há quem ganhe mais e pertença à dita classe média, ainda que tenha níveis de poupança baixos e sobreviva, no essencial, do seu trabalho.

Essa massa de gente – com que muitos se identificam –é o verdadeiro barómetro da situação do país, da sua economia, do seu Estado Social, e sente, de forma dura, os momentos em que o Estado falha. Quer porque o rendimento líquido é afetado por desequilíbrios graves, com impacto doloroso no poder adquisitivo (salários e pensões), quer porque os serviços públicos se deterioram, desvalorizando a troca que fazemos entre rendimento disponível (depois de impostos) e o acesso à saúde, à educação e a outros bens públicos como justiça, segurança e de defesa.

É impossível desvincular a qualidade de vida da classe média da natureza do vínculo laboral; não será por acaso que entre socialistas e democratas se encontram as forças trabalhistas – e de defesa do mundo do trabalho. O acesso e a segurança no emprego foram sempre centrais na vida daqueles cuja satisfação das necessidades mais básicas sempre dependeu do rendimento do único meio de produção que têm disponível: o trabalho.

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As forças progressistas sempre viveram centrados na trilogia em torno da liberdade, da solidariedade e da fraternidade, onde a dimensão coletiva e individual sempre conviveram. Dela nasce uma ideia, uma terceira via, a economia social de mercado, que inscrevemos no Tratado de Lisboa, e que em grande medida partilham, como pedra angular do modelo social europeu, com os democratas cristãos. A ideia central de que a liberdade e a justiça social são condição para sociedades melhores, mais prósperas e decentes, e que todos os coletivismos forçados ou liberalismos castigadores dos mais fracos são vias de empobrecimento. A ideia de liberdade individual e de uma ética do coletivo, da comunidade, são características fundamentais da terceira via; de uma sociedade que avança em conjunto; mas, sublinhe-se, avança, rompe fronteiras, não estagna num atavismo coletivista que limita a criatividade e o empreendedorismo económico e social do indivíduo. A classe média é filha da social-democracia – e da democracia cristã. É por isso que a partir desta dialética entre o coletivo e o individual – num internacionalismo militante, em torno das grandes causas das sociedades modernas, que os partidos socialistas e sociais-democratas devem olhar para as causas comuns do desenvolvimento.

A defesa deste espaço de progressão social, de geração e distribuição de riqueza, de construção coletiva com respeito pela identidade e a diferença, obriga-nos a avançar com as forças que queiram defender radicalmente a democracia, a globalização e a integração económica, o desenvolvimento sustentável, assim como discutir os impactos da digitalização e a robotização sobre o trabalho, a demografia e a sustentabilidade do Estado Social, ou a coesão territorial como condição para a coesão social. Os nossos temas de futuro, coletivos, com impacto na proteção e construção das classes médias. As classes médias que precisam de Estado, mas que são também o ‘pulmão’ fundamental da inovação económica e social, e que precisam da liberdade de escolha para construir os seus projetos de vida (a sua ambição).

O Estado empreendedor é necessário, como bem explica a Mariana Mazzucatto, mas deve centrar-se nas atividades de rutura tecnológica, onde a incerteza (e não o risco) predomina; mas não deve cercear a capacidade inovadora do mercado, sob pena impedir que o indivíduo, também ele, assumindo risco, possa ser agente de boa alocação de recursos, e, acima de tudo, de ser ele próprio protagonista de inovação económica e social.

A liberdade é essencial à igualdade; sem mercado a liberdade fica condicionada. Sem Estado não há garante de que a liberdade de mercado promove uma sociedade livre e justa. A terceira via sempre foi isto. Não somos, nem seremos, liberais, que em torno do mercado constroem a sociedade; nem agentes de padronização estatizante que castra a capacidade de inovar e avançar que a liberdade de iniciativa proporciona.

Em grande medida é aqui que tem estado o cerne do êxito da governação do PS. Um programa político europeísta e internacionalista, de defesa do multilateralismo para a resolução das grandes questões das sociedades contemporâneas, contra o protecionismo (económico e social), que promove e não estigmatiza o investimento privado, e que reforça o Estado social (ex. nas prestações sociais, na reposição de salários e pensões, na proteção dos trabalhadores com vínculos mais precários). Um desígnio coletivo que pode ser apropriado pela classe média.

Nunca fizemos política de ‘nichos’, nem promovemos a confrontação, e as vias unilaterais e excludentes, como forma de fazer política. A classe média precisa de escolha, mas precisa também da estabilidade que só os consensos de regime tornam possível. A abertura que nenhum enquistamento à esquerda ou a à direita permite. Nós somos, sempre fomos, a terceira via: desde Soares a Costa. Da Fonte Luminosa aos acordos de governabilidade à esquerda.

Membro do Secretariado Nacional do PS