Muito se fala da democracia, como se esta fosse um produto final, acabado e plenamente adquirido pelas sociedades, principalmente as ocidentais que se orgulham dos seus sistemas democráticos representativos. Portugal é, neste ponto, um caso ainda mais singular uma vez que a geração que assistiu à queda de uma ditadura e ao impedimento do nascimento de outra ainda está politicamente activa e influente.

Contudo, esta percepção da democracia como um produto final adquirido tem-se revelado, em si mesma, uma ameaça para o fortalecimento da própria democracia, na medida em que pouco – ou nada – o sistema político português tem feito para melhorar e actualizar o sistema democrático.

Sem entrar no campo da teoria política ou nas análises complexas da representatividade democrática dos sistema políticos, importa talvez relembrar Hanna Pitkin que, no seu extenso trabalho académico sobre o conceito da representatividade, seguindo a tradição explicativa da filosofia analítica identifica os variados sentidos de representação na teoria política (representação como forma, descrição, símbolo e acção; representação como correspondência com o todo e representação como ação em nome de outrem). Mais tarde (1989/2006), alargando a problemática, trouxe à luz o paradoxo da representação, a saber, a impossibilidade lógica de que, na esfera do poder, haja identidade de vontade entre representante e representado.

Esta dissonância entre os representantes e os representados consubstancia-se na forma como a população portuguesa encara o voto, enquanto acto representativo e enquanto acto de validação de uma opção por um projecto político de gestão.

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Ao fim de, quase, 50 anos de democracia, chegámos a um ponto em que a esmagadora maioria dos eleitores nunca leu um Programa Eleitoral de um partido, não tem conhecimentos mínimos sobre o funcionamento da economia e/ou da sociedade que permitam um debate ou uma mera reflexão sobre os grandes temas nacionais e encaramos com, preocupante, naturalidade a consideração de que um acto eleitoral com 50% de abstenção é aceitável.

Não só nada disto é aceitável, como é – reconhecidamente – um problema que urge resolver sob pena de, em pouco tempo, estarmos a questionar a legitimidade democrática de governos “democraticamente” eleitos.

Embora fosse palco para outras discussões, não irei tão longe como John Stuart Mill (filósofo político do século XIX) que na sua obra clássica, a respeito da representação, sustenta a variante da democracia preocupada com a qualificação dos cidadãos para o fim de lhes assegurar imersão na esfera pública – por isto apelidada desenvolvimentista na classificação de McPherson e, também por isso, bastante aproximada das correntes participacionistas que percebem e valorizam a democracia como processo educativo. Embora passível de debate, acredito que todos os cidadãos deverão ter a possibilidade de votar e deverão fazê-lo em consciência e cientes da sua contribuição para definição do futuro do seu país. Surge então a questão, porque não o fazem?

Por um lado temos um gravíssimo problema de educação, um sistema escolar e educativo que não promove o conhecimento, que desvaloriza a literacia e a ciência e que está mais preocupado com os números mínimos para o registo estatístico do que com a preparação dos cidadãos. É o sistema educativo que se preocupa mais em dar “novas oportunidades” e em parecer inclusivo do que em efectivamente garantir o acesso dos alunos às escolas de forma verdadeiramente inclusiva, sem preconceitos de público ou privado, sem preciosismos de áreas de residência e sem o enfado burocrático de um sistema de colocação de professores que maltrata quem lecciona, afastando do ensino aqueles que deveria acarinhar. Um sistema que deveria incentivar bons profissionais a transmitir conhecimento efectivo aos alunos. Profissionais que, motivados, seriam os criadores de seres pensantes com capacidade crítica que, inevitavelmente, teriam um grau de exigência superior relativamente aos sistemas políticos e aos políticos que os representam.

Um sistema de educação deverá servir para isso mesmo, para educar, para dar conhecimento e, acima de tudo, esse sistema deveria dar aos alunos instrumentos que lhes permita pensar livremente sobre os assuntos. Como cidadãos temos a obrigação de exigir isto a quem nos governa, pois a educação é a raiz de todas a sociedades.

Se o problema da educação é o problema basilar, há que reconhecer que é o que demorará mais tempo a resolver, dada a sua complexidade e necessidade de tempo para que eventuais alterações comecem a produzir efeito.

A segunda parte do problema reside no seio do próprio sistema político e no gradual afastamento entre os governantes e os governados que, a cada legislatura parece querer confirmar as teorias de Hanna Pitkin. No entanto, cabe ao tecido social, através da sociedade civil e dos seus representantes eleitos, trabalhar no sentido de melhorar o sistema democrático, nomeadamente através de uma revisão profunda e urgente do sistema eleitoral.

É fundamental, para a saúde democrática, que os cidadãos se revejam nos seus políticos, é importante que o eleitor tenha a percepção clara de que a responsabilidade governativa pode (e deve) ser imputada directamente a quem é eleito. Ora o actual sistema, que, embora nos esqueçamos amiúde, elege partidos políticos e não políticos (pessoas concretas), é um borrão indefinido ao nível da percepção do eleitor comum. Elege-se um partido que formará um governo que ainda ninguém sabe qual vai ser e uma assembleia com 230 deputados, na sua maioria completos desconhecidos dos seus eleitores. Muito se fala dos Círculos Uninominais e Plurinominais, em Círculo de Compensação, etc… corrijo, muito se falou sobre o assunto no rescaldo breve das eleições.

O voto não pode continuar a ser uma manifestação de adepto no partido A, B ou C. Os eleitores têm a obrigação de se informar sobre os projectos de cada partido e votar em consciência naquele com que se identificam. A iliteracia política, financeira e económico-social só beneficia os partidos enraizados que dependem do voto de militância, muitas vezes inconsciente e serão esses os beneficiados de um sistema de educação coxo e frágil a muitos níveis.

Importa que o cidadão comum comece a ter a percepção de que o xadrez político se joga a vários níveis, como tal importa que o eleitor exija do sistema político a urgência de uma revisão profunda do sistema eleitoral, importa que os cidadãos comecem a reconhecer nos seus eleitos a responsabilidade da governação. É bom que os cidadãos comecem a fortalecer partidos emergentes com discursos evoluídos e refrescantes que valorizam o desenvolvimento do cidadão e que após as eleições continuam preocupados com os grandes problemas e a tentar resolvê-los. Valorizemos esse discurso reformista em detrimento da manutenção do status quo, pois o futuro reside na mudança e não na permanência.