O António também sabe que a melhor forma de gerarmos dúvidas sobre factos é deixarmos no ar declarações que, subtilmente, criem confusão sobre a veracidade desses factos. Quando a crise está instalada o storytelling é uma das formas mais favoráveis de mudarmos o foco e desviarmos atenções.

A estratégia comunicacional é boa. Aplaudo e respeito o António neste aspeto. Mas, deixando de lado a minha profissão, e lendo os factos enquanto contribuinte, então já não consigo admirar o primeiro-ministro, António Costa.

Porque, como contribuinte, os factos são incontestáveis.

1 O António até pode ter falhas de memória, mas eu não tenho e, por esta razão, quero lembrar-lhe múltiplos casos de nomeações diretas de camaradas e até de familiares para cargos no governo. Tal prática, habitual nos regimes opressores, não se coaduna em nada com um regime democrático e realmente transparente. Para os mais incautos, é importante recordar que as relações familiares no Governo de António Costa chegaram a envolver mais de 50 pessoas e de 20 famílias.

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2 Quando António Costa era presidente da Câmara de Lisboa, o jornalista José António Cerejo, do Público, teve de esperar três anos (entre 2011 e 2014) para poder consultar o relatório sobre a contratação de obras públicas do município. O jornal viu-se obrigado a ir a tribunal para conseguir acesso a um documento que confirmou que a contratação de obras “se fazia em águas turvas”. O que fez o António? Com a transparência que o caracteriza, argumentou que a “revelação do relatório punha em causa a autonomia do poder político”.

3 Um chefe do Governo que afirma que “um ministro não pode esquecer que o é, até à mesa do café” não deve despir-se do seu estatuto de primeiro-ministro para ser o simples sócio António que apoia um candidato à liderança de um clube de futebol integrando a sua comissão de honra. Sabendo, ainda por cima, que àquela data (as revelações, posteriormente conhecidas, confirmaram as suspeitas) essa candidatura se inseria numa tentativa de branqueamento da imagem pública do candidato Luís Filipe Vieira para influenciar a opinião pública sobre essa investigação.

4 A “transparência não foi satisfatória”. Assim concluiu a auditoria do Tribunal de Contas ao fundo criado pelo Governo para gerir os donativos destinados a apoiar as populações atingidas pelos incêndios de 2017, acusando a gestão do Fundo Revita de falta de transparência e de coordenação.

5 Há cerca de dois meses fomos confrontados com o facto dos serviços de informações do Estado se terem dirigido, de madrugada, a casa de um cidadão português para lhe apreenderem um computador. Sobre este caso, António Costa afirmou: “Não houve qualquer ilegalidade na intervenção do SIS, no caso da recuperação do computador do ex-adjunto do ministro das Infraestruturas.” Na minha qualidade de simples contribuinte, consigo pensar em vários motivos para suspeitar que este comportamento, por parte dos serviços de informações, pagos pelo Estado com os meus impostos, só revela procedimentos pouco claros. Sabemos que estes serviços reportam diretamente ao primeiro-ministro, mas não para estarem ao serviço dele, nem de qualquer ministro, e muito menos do PS.

6 O Governo, que se afirma tão transparente, tem atrasado o mais possível a entrada em funcionamento da Entidade para a Transparência, criada no papel em 2019. Durante anos, não disponibilizou sequer um espaço físico onde este organismo pudesse exerce a importante missão que lhe cabe: fiscalizar as declarações únicas de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Enfim, com imenso atraso, lá se conseguiu uma sede. Mas esta entidade ainda aguarda que o Governo se digne desbloquear a instalação de água e luz para que possa enfim. Quatro anos depois.

E para que quem me lê não se exaspere, lembro apenas mais um caso. Este particularmente grave e denunciado pelo Luís Osório num brilhante artigo de jornalismo de investigação sobre o “acordo secreto” com o Ricardo Araújo Pereira  (ou talvez não, mas para quem não teve oportunidade de o ler, sinto que vale a pena ser partilhado e apreciado).

“António Costa é um bom executante da política à portuguesa e um erro de ‘casting’ como estadista e primeiro-ministro”, escrevia de forma muito transparente, Henrique Neto em 2016. Com toda a transparência, eu subscrevo, em 2023.