A propósito da agenda gender, muito se tem escrito sobre sexo. Mas há muita confusão. A Filosofia tem por vocação pôr as mãos na massa, aconchegar as fraturas ou, como me ensinou um mestre, fazer as distinções essenciais.

Não por acaso cursei filosofia! Tenho gosto pela discussão, pelo diálogo, pelos serões. Hoje é a homossexualidade, uma questão fracturante, que aqui me traz, obrigando-me a olhar para a minha história, a procurar razões..

Tinha 15 anos quando organizei no meu Bairro uma Pirâmide social, recolha de bens alimentares para os mais necessitados, na garagem da dona O., que então conheci porque ia lá buscar o leite fresco. Foi uma das suas filhas que passou à máquina a minha tese de Mestrado, sobre Maurice Blondel, outros tempos, outros recursos.

Já com os filhos adolescentes organizei num Museu de Lisboa tertúlias filosóficas, o Conhaque-Philo, juntando à mesma mesa, para discutir temas escaldantes, nomes sonantes da nossa Praça. José Milhazes com  José César das Neves, Eduardo Lourenco com Sofia Areal e Sarsfield Cabral, António Pinto Leite com o fundador do restaurante H3, Carlos do Carmo com Luís Osório, Jaime  Nogueira Pinto com Seixas da Costa, Henrique Monteiro e, outra vez, José Milhazes, Pedro Abrunhosa, Ruy de Carvalho e Paula Roque, Aura Miguel e Guilherme Oliveira Martins, Ângelo Correia e o cineasta Joaquim Sapinho, terminando com o treinador nacional, Fernando Santos e o então Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente.

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A Filosofia de L’ Action (1893) de Blondel desde cedo me encantou porque ele tinha como ponto de partida a procura de uma razão para as coisas que fosse para todos. Uma razão que fosse só para mim não seria razão: porque haveria de ser mais razão para mim do que para ou outros.?

Nos meus pais e avós identifico marcas que herdei. Ainda hoje sou a menina que anda descalça, sobe às árvores e aí se senta feliz a comer a fruta – a  minha mãe. Criada em quintas, que o meu avô era o caseiro. Esta minha forma de ser e de entender as coisas – “tudo é meu” – gera por vezes nos outros críticas de que não respeito fronteiras, que não tolero ideias diferentes. “Pensas que possuis a verdade!”, acusam-me.

E ainda hoje sou, paradoxalmente também, a menina muito bem penteadinha, disciplinada, arrumadinha e de fato já um pouco gasto e passado mas engomado a rigor por uma vontade férrea — o meu pai.

E foi a mãe do meu pai que me embrulhou os folguedos campestres. Era uma vontade férrea que, como eu, era regada de café e missa diária. Mas graças a Deus a minha avó materna era florista e fazia lanches deliciosos, de mesa posta com paninhos bordados, pão quente fresco, queijos saloios e pão de ló feito por ela, e que hoje me faz estimar boa mesa e beleza.

Desde pequenina me atraíram as pessoas que eram boas. E também me sentia bem quando fazia coisas boas e não quando mordi a T. , na Escola Primária, ou copiei o cavalo para a aula de desenho, mentindo dizendo que tinha sido feito por mim.

Diferentes na dualidade do masculino e do feminino, desenhado nos genes, nascemos contudo iguais em desejo. Mal saímos do ventre da mãe procuramos o aconchego dela, o que nem sempre vem a acontecer e por isso há feridas que insistem em não sarar. E assim é também no Reino Animal, ao qual pertencemos e no qual nos distinguimos por sermos racionais.

E por que carga de água o racional me haveria de afastar da ordenação natural? O gatinho pertence à gata e ao gato, crescendo nessa unidade natural. Porque será diferente no meu caso? Lembro-me do enlevo com que ouvia aos domingos de manhã, enquanto ainda mal abria os olhos, os meus pais a trocaram palavras, sons. Percebia que eram coisas muito boas e belas.

Coisas de casas pequenas, tudo se ouvia. E que sorte a minha! Em casas mais pequenas que a minha (que nem são casa), imagino o que não terão visto e sofrido outras crianças com a mesma idade que eu. E nas casas maiores, sabe Deus, que nem só de pão vive o homem! Mas a sorte não me abafou, e sou livre de dizer o que vejo, mesmo em assuntos que me excedem, e principalmente nesses. E o que haverá de mais excedente do que uma pessoa?

A homossexualidade é a atração entre pessoas do mesmo sexo. E sei que cada caso é um caso, como as pessoas heterossexuais. Tratando-se de pessoas, cada uma é uma impressão digital, um caso único e irrepetível.

Embora não se possa meter tudo no mesmo saco, podemos distinguir entre a homossexualidade feminina e a homossexualidade masculina.  Em ambos os casos o que se dá é uma relação entre mesmos. Mesmo do mesmo! Como se houvesse um medo do diferente…

Que uma mulher seja atraída por outra mulher, pode ter origem numa imagem negativa dos homens. Lembro da J., cujo tio, aos domingos, a seguir ao almoço, a sentava ao colo e a convidava a brincar com o urso que tinha entre as pernas. Ou a M. que foi criada com a mãe, mulher abandonada pelo marido e a ter que ser também pai ( o que também acontece com os pais que por vezes são obrigados a serem mães, e são-no embora com mais dificuldade do que as mulheres), sempre a denegrir o homem (“O teu pai”!) e os homens em geral.

Que um homem seja atraído por outro homem pode ser por uma falta de pai. O caso do N., com forte sensibilidade estética a quem o professor de arte, homossexual ativo, convidou para o seu apartamento, e passaram a viver juntos. Ele que crescera com a mãe, a tia e as irmãs, a quem não se abrira para esclarecer as dúvidas que lhe iam surgindo nas partes íntimas. Ai, a ausência daquele poder encostar-se na peitaça de um homem forte!

E o J., que queria saber se era homossexual e pergunta à professora de Liceu o que fazer, e ela o aconselha a ir à internet ver pornografia. Quando o que ele queria era  mesmo “conhecer”!

Quando o avô da E. me apalpou na quinta que às vezes visitávamos, eu não disse nada a ninguém. Nem fiquei com uma imagem negativa dos homens, porque tinha um lá em casa que me adorava e que a minha mãe cantava “ninguém tem um papazinho como esse meu”. O mesmo não foi possível à rapariga de que não lembro o nome (mas lembro-me perfeitamente da cara, do vestido branco e dos caracóis morenos, no corredor de uma das escolas onde ensinei, a contar a sua infeliz história ), cujo pai abusou dela em criança. Ainda hoje tem asco aos homens.

Ou a francesa que tinha sido obrigada a casar. Era professora de história e, já separada do marido, numa viagem ao Egipto, outra professora, já homossexual ativa, repara no seu sofrimento, e passam a viver juntas. E tantos, e tantos casos, de afectos a quererem afectos.

As feridas emocionais não se apagam, não se pode nelas clicar Delete! Mas as feridas emocionais podem ser postas em perspectiva, e assim não obstaculizar um Amor Maior. Um Amor que não é mais do mesmo, mas abertura ao dom que é a vida, capaz de nos realizar.

Porque haveria este Amor ser mais para mim do que para ti? Não, eu não possuo esse Amor, ele é que me possui a mim. Como canta a Amália Quando eu era pequenina, acabada de nascer, ainda mal abria os olhos, já era para Te ver.