Eu estava muito sossegado, a ver um programa na televisão, quando o telefone tocou. Era a minha mãe. Suspirei. Vocês sabem quando estão no sofá, com uma manta, num final de tarde chuvoso e frio, a ver algo interessante na televisão? É daquelas alturas em que não queremos ser interrompidos.

Mas a minha mãe telefonou. O programa era sobre povos primitivos que acreditavam poder influenciar o tempo, as colheitas e a caça através de sacrifícios aos deuses e outras patetices parecidas.

Quando a nossa mãe telefona, podemos pensar em não atender, porque quase sempre não é nada nem importante nem urgente. Mas fica sempre aquele medo: “e se, desta vez, logo desta vez, for algo de importante e urgente?”. E então atendemos.

Eu atendi.

– Morreu o senhor juiz, do 3º frente.

Logo assim, sem dar tempo de respirar.

– Estou tão nervosa, ele morreu com Covid, sabes? Que medo!

Na televisão, o programa continuava, a mostrar os povos que, após sacrifícios animais variados que não funcionavam nem terminavam com a seca, concluíam que a razão era a falta de fé de alguns dos membros da tribo, e que o melhor seria um sacrifício humano.

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– Olha que a Luísa Natália, sabes, a do 2º frente, que ficava debaixo do senhor juiz, lembras-te?

(sim, eu lembro, a esposa do Coronel Barbosa, a mãe do Paulo das motas)

– A Luísa Natália diz que ele era do mais cuidadoso que há, que cumpria todas a 5 recomendações, os 5 dedos da mão que o Primeiro Ministro recomendou, viste o discurso dele? eu gostei muito, viste? o senhor juiz cumpria tudo, a etiqueta respiratória, o uso de máscara, acho que até dormia com ela, o desinfectar das mãos, que até já tinha fungos debaixo das unhas e uma espécie de alergia, o distanciamento social, que não via os filhos desde Março e não saía de casa desde Junho. Não sei se tinha aquela coisa do telefone, que eles mandam pôr, isso não sei, mas se calhar até tinha. Não sei como terá apanhado a Covid, coitadinho!

No programa, a tribo escolhia aqueles que pensava terem desagradado aos deuses e preparava-se para os degolar, oferecendo o seu sangue em troca da vinda da chuva.

– A mãe do Rodrigo, do 3º esquerdo, e a dona Nazaré, do rés-do-chão, iam lá levar-lhe as compras, e ele estava sempre de máscara, sempre! e elas também, e viam que ele desinfectava tudo com cuidado. Como é que achas que ele terá apanhado aquilo?

Fui apanhado de surpresa pela pergunta, que não esperava, entretido a rir-me por dentro daqueles primitivos que perante a evidente ineficácia dos sacrifícios animais e humanos, em vez de perceberem que não era possível mudarem o tempo ou influenciarem as colheitas, insistiam que o que se passava era que os sacrifícios, ou seja as medidas que tomavam, é que não estavam a ser feitos da forma correcta.

Mas, antes de eu responder, já a minha mãe continuava.

– A dona Maria Helena, sabes? a mãe do Miguel Simões, do 1º direito aqui do lado? ela acha que foi um filho que o veio ver, às escondidas e sem os irmãos saberem. Diz que ouviu barulho à noite e foi espreitar pelo óculo da porta, para verificar se quem subia as escadas o fazia com a máscara e sem tocar nos corrimões, e viu subir alguém lá para cima que não se percebia bem quem era porque não acendeu a luz das escadas (e ainda bem, para não tocar nos interruptores) mas ela tem quase a certeza que era o Toninho, o filho mais novo do senhor juiz, sabes, aquele que agora se divorciou e deixou a mulher e os dois filhos pequenos para ficar com a secretária, que é vinte anos mais nova, que horror!

Histórias tristes das vidas das pessoas de todos os dias, desde sempre. No ecrã, apresentavam agora, do outro lado do globo, outro povo, à beira de um vulcão, para dentro do qual se preparavam para deitar virgens, que se sabia ser a única forma de evitar erupções (coitadas das virgens, sempre as sacrificadas, mais valia perderem logo a virgindade cedo, que se safavam mais facilmente destas coisas de serem lançadas a um vulcão). Desta vez eram três virgens, porque anteriormente tinha sido só uma e não tinha funcionado. O raciocínio era o mesmo: se não funciona, é porque não foi suficiente ou foi mal feito. Que estúpidos, estes povos primitivos!

– Sabes que estamos todos muito preocupados, aqui no prédio. Se todos cumprirmos as cinco medidas, eles dizem que tudo vai correr bem, que está nas nossas mãos, nas mãos de todos, mas há para aí muito irresponsável, que não usa a máscara ou a usa mal, que não cumpre o distanciamento, e os jovens, meu Deus! que andam para aí em festas e encontros e sei lá que mais, sem distância, sem protecção, sem nada! Depois admiram-se! Ainda dizem que as medidas não funcionam, porque os novos casos em Espanha sobem sempre, mesmo com as máscaras obrigatórias e as coisas fechadas e tudo o mais, mas não é verdade que as medidas não funcionam, elas funcionam, as pessoas é que não as cumprem como deve ser! Isto precisava era de uma mão mais firme, é o que é, se o teu pai cá estivesse (que Deus o guarde em descanso) era logo o que diria: mão firme. Isto é uma rebaldaria, eu cá faço tudo certo, mas por exemplo a dona Conceição, do rés-do-chão frente, tu sabes que ela cozinha para fora, e há sempre gente a entrar para ir buscar as coisas a casa dela. E eu acho que é ela a culpada do senhor juiz ter apanhado a Covid. Ou ela ou o Toninho, se sempre for verdade que o veio visitar. Mas alguém há-de ter sido, alguém que não cumpriu as cinco regras, que se todos as cumpríssemos, ninguém se infectava, é que dizem na televisão, a senhora da DGS e o Primeiro Ministro.

E lá iam as virgens levadas pela encosta do vulcão fumarento acima. Como era possível as pessoas acreditarem numa coisa daquelas? O locutor explicava que era o medo, o medo que impedia os humanos de usarem a razão. E o medo não os deixava conseguirem aceitar que não eram capazes de controlar um acontecimento mau, que os podia prejudicar tanto, tanto! que eram impotentes perante o vulcão. Era isso que explicava a necessidade de religião e deuses e orações e sacrifícios, tão generalizada entre todas as culturas humanas: a nossa necessidade de sentir que não somos impotentes perante certos acontecimentos da natureza, que podemos fazer algo para influenciar aquilo que nos acontece.

Ainda bem que hoje já não somos assim, e perante um acontecimento que nos ameaça e mete medo, somos capazes de usar a razão e não aplicar medidas sacrificiais sem comprovação de serem eficazes, só porque não conseguimos aceitar a nossa impotência perante certas adversidades. Ainda bem que hoje não andamos a culpabilizar inocentes por acontecimentos que realmente não dependem de nós, a degolar pobres coitados e a lançar virgens aos vulcões.

Lá morreu o senhor juiz, do terceiro frente, do prédio dos meus pais, que tinha 97 anos e que, nos últimos meses de vida, não saiu de casa, não viu família nem ninguém, e viveu fechado e cheio de medo.

Quem o terá infectado? Que lancem o culpado ao vulcão!