Portugal confinou (novamente) a 15 de Janeiro de 2021. Já antes estavam em curso algumas medidas parciais, mas foi a 15 de Janeiro que se encerrou tudo e confinámos de uma forma mais severa. Para além disso, o último dia de aulas presenciais foi a 22 de Janeiro e as escolas encerraram a partir dessa data. E agora, os números da pandemia parecem estar a querer descer.

Post hoc ergo propter hoc”, ou seja, após o facto, logo causado pelo facto. Nós somos programados para interpretar as coisas assim: se fazemos algo e a seguir acontece alguma coisa, a nossa tendência é interpretar que aquilo que aconteceu depois foi causado pelo que fizemos antes. Se confinámos e, em seguida, os números desceram, então o confinamento foi o responsável por essa descida. Certo?

Aliás, foi aquilo que aconteceu por toda a Europa, não foi? Os números sobem e sobem e sobem, os países confinam e, após alguns dias ou semanas, os números começam a descer. É óbvio que o confinamento faz baixar os números, seria parvoíce dizer que não. Após o facto, logo causado pelo facto.

Mas não é assim que descobrimos a verdade das coisas.

Se não houvesse confinamento, os números não subiriam eternamente. Mesmo sem confinamento, haveria uma subida dos novos casos, depois um planalto ou pico, e depois uma descida. É o que sucede em todos os surtos de doenças infecciosas respiratórias. Como na gripe, todos os anos. Os casos sobem e sobem, atingem um pico ou planalto (geralmente pelo fim de Janeiro ou início de Fevereiro) e depois descem. Mesmo sem qualquer confinamento. Como podemos saber se, no caso da Covid-19, não seria também essa a evolução expectável sem confinamento? Será que o confinamento nada fez e os números desceram porque o iriam fazer de qualquer forma? Como podemos saber?

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Num mundo ideal, era fácil: havia dois Portugais idênticos, num deles aplicávamos o confinamento e no outro não, e víamos a diferença. Só que neste nosso mundo real não há dois Portugais, só há um, que confinou. Não há nenhum outro, sem confinamento, para comparação. Então como poderemos saber?

Bem, podemos sempre comparar os diferentes países entre si, vendo a maior ou menor severidade das medidas de confinamento que aplicaram, verificando a maior ou menor precocidade com que o fizeram e depois avaliar o que aconteceu aos números em cada país, que pico atingiram e quando é que começaram a descer.

Se o confinamento realmente for responsável pela descida dos números, que ocorreu após a sua implementação, deveriam acontecer três coisas:

  1. Depois do início do confinamento, o número diário de novos casos deveria atingir um pico e então começar a descer, isto após um intervalo de tempo que deveria ser semelhante de país para país. Tendo em conta o tempo médio de incubação do SARS-CoV-2, este intervalo seria cerca de cinco dias. E o número de novos internamentos começaria a descer cerca de 10 dias após o confinamento. Mas seja qual for o intervalo de tempo, este deveria ser semelhante nos vários países que aplicam confinamento.
  2. Os países que implementassem medidas de confinamento mais cedo e/ou mais severas, deveriam ter um pico de casos menor do que aqueles que o fizessem mais tarde e/ou com medidas menos restritivas. É este argumento, aliás, o utilizado por quem defende confinamentos mais agressivos e precoces.
  3. Quando terminasse o confinamento e a população voltasse a sair de casa e a ter maior contacto entre si, o número de novos casos deveria voltar a subir após um intervalo de tempo também semelhante de país para país e relacionado com o tempo de incubação do vírus. Ou seja, cerca de cinco dias após o fim do confinamento já se deveria observar algum aumento do número de novos casos.

Claro que estas três coisas só irão acontecer se o confinamento for o responsável pela descida dos números. Se, pelo contrário, os números subirem e depois descerem independentemente do confinamento, sendo este apenas um acontecimento concomitante que não os influencia, estes três pressupostos não se verificarão.

Muito bem. E então, o que nos mostra o mundo real?

Existem alguns trabalhos científicos, já publicados, que analisaram a evolução dos números após os primeiros confinamentos de Março/Abril de 2020.

  1. Não houve um intervalo de tempo entre o confinamento e a descida dos novos casos que fosse semelhante nos diferentes países, sendo que, na Europa e em média, esta redução só ocorreu 17 dias após o início do confinamento, com o número de novos casos a aumentar sempre até essa altura. Houve países em que os novos casos começaram a diminuir imediatamente após o confinamento e outros em que isso só aconteceu 21 dias mais tarde. Aliás, a desaceleração do crescimento do número de novos casos (avaliada pelo Rt) aconteceu, em Itália, antes do confinamento. Também em Portugal, e de acordo com o Instituto Ricardo Jorge, o Rt começou a descer a 1 de Janeiro de 2021, ou seja, duas semanas antes do actual confinamento. Este facto é evidência que a descida do número de novos casos que agora ocorre, apesar de acontecer a seguir ao confinamento, é consequência de um processo iniciado previamente, e não foi causada pelo confinamento em si.
  2. Um trabalho, onde foram analisados 149 países, não encontrou qualquer relação entre a precocidade do confinamento e a incidência de novos casos. Pelo contrário, outro estudo analisou os 50 países com maior número de casos de Covid-19 e verificou que aqueles que implementaram o confinamento mais cedo tiveram mais casos de Covid-19. Neste último trabalho, a aplicação de um confinamento mais agressivo (full lockdown) não se associou a uma redução significativa no número de casos em UCI ou na mortalidade global.
  3. Em relação à evolução dos casos após o fim do confinamento, não encontro estudos que tenham analisado este tema. No entanto, a observação da evolução ocorrida em vários países europeus permite verificar que, após terem desconfinado em Abril/Maio, a subida no número de novos casos aconteceu em Setembro/Outubro, cerca de 4-5 meses mais tarde, tendo existido apenas números residuais de novas infecções durante todo o Verão.

Em resumo, não se comprovam nenhum dos três pressupostos atrás enunciados. Ou seja, apesar da redução do número de novos casos ocorrer após o início do confinamento, ela poderá não ser causada por este. Quando dois acontecimentos ocorrem um após o outro, tal não significa que o primeiro seja a causa do segundo. Os galos cantam sempre antes do nascer do Sol. E o Sol nasce sempre depois de os galos cantarem. Mas não é por eles cantarem que o Sol nasce. Não é verdade que “post hoc ergo propter hoc”.

Veio o confinamento e os números desceram. Isso não significa que o confinamento seja a causa da descida dos números. Eles iriam seguramente descer de qualquer forma.