Talvez disso não nos apercebamos, mas os Ocidentais têm uma forma muito própria de olhar para o tempo. O homem ocidental sempre se viu, de algum modo, como “herdeiro”, imaginando-se, portanto, responsável por manter e guardar aquilo que veio, e foi, antes de si. Aliás, neste aspecto, a História tal como a conhecemos hoje será, acima de tudo, uma descoberta, ou criação, ocidental — quer a relativa aos povos terrestres, quer a da realidade material que, graças aos avanços da física e da cosmologia, acabou por revelar uma narrativa, mais do que do planeta, já do próprio universo. Emergiu, assim, o conceito de “tempo” ocidental que, ao invés de estático como no mundo antigo — quase despercebido, sob a ilusão da permanência, cíclico, lento, movido ao ritmo dos astros celestes que traziam consigo a rotina das estações —, se revela hoje como uma “dimensão” que comanda, ou enforma, não apenas a estrutura universal mas, como Kant argumentou, a própria realidade fenomenológica da nossa consciência.

A par, seguindo Darwin, institucionalizou-se também um paradigma de constante transformação, incluindo-se aí, através da teoria da evolução, a noção de mutação permanente, já não apenas do mundo, mas também da própria natureza humana. Ou seja, para a psique ocidental contemporânea não apenas a vida é transitória como a nossa própria natureza também o é, gerando-se aqui uma certa ansiedade existencial, em particular com o tempo que nos foge permanentemente por entre os dedos rumo ao desaparecimento e à morte que, naturalmente, face à fugacidade existencial, urge transcender — primeiro, ainda espiritualmente, através da milenar promessa do paraíso Cristão, depois, materialmente, ou seja, ainda no mundo do aqui e agora, através das esperanças da revolução tecnológica tão bem plasmadas, por exemplo, no ideal trans-humanista onde a morte é finalmente fintada, seja materialmente, numa câmara criogénica, seja digitalmente, através do chip neurológico implantado que promete a vida eterna no metaverso cibernético.

Mais do que simplesmente criar a disciplina histórica, o Ocidente gerou a sua própria narrativa, ou, para utilizar o termo de MacIntyre, uma “tradição narrativa” que, configurando caso único na história da Humanidade, colocou o Homem no centro de um universo que se estende conceptualmente do Big Bang até ao infinito. Esta narrativa, um épico milenar do qual sentimos fazer parte, que parte de um passado fundador por nós deduzido, e comummente acreditado, para um futuro que podemos moldar, pelo menos em parte, à nossa vontade, oferece-nos um sentido justificativo para a existência que passa assim a transcender os limites estritos da vida material individual — a nossa identidade prolonga-se, para trás, no passado que nos fez, e onde todos, em conjunto, em comunidade, “nascemos”, tal como, também, para a frente, para um futuro desconhecido, mas que todos construímos a cada dia, ou ainda, porque essa experiência de passado e futuro é partilhada, prolonga-se também nos outros, nos vizinhos que são, tanto quanto eu, parte integrante desta nossa grande narrativa. Ou seja, primeiro, é desta concepção temporal, mesmo que de forma despercebida, que se molda o modo como cada um encara o mundo e, depois, é também desta narrativa-temporal que se funda o tronco comum da nossa comunidade.

No entanto, da narrativa histórico-científica ocidental e de um darwinismo cosmológico que veio substituir de forma mitológica a criação bíblica, acentuou-se no Ocidente uma tensão fundamental entre dois conceitos em permanente conflito: de um lado, o amor — obsessivo, compulsivo, exaustivo — ao passado, à história, ao conhecimento; do outro, a aceitação — completa, inequívoca, constante — do carácter transformativo, portanto transitório, do mundo e da própria natureza humana. Fica claro, portanto, um paradoxo central à experiência ocidental: por um lado, há um passado que nos explica, que nos fez, que urge respeitar e conhecer; mas, pelo outro, tudo nesse passado, tal como no presente e, a seu tempo, também no próprio futuro, estará, por definição, condenado a ser transformado — um eufemismo para “substituído” ou, para os mais pessimistas, “destruído” —, o que lhe retira dignidade e, mais importante, garante à partida, mesmo que inconscientemente, a inutilidade de todo e qualquer esforço na sua preservação. Ainda assim, o Ocidente, tal qual o conhecemos hoje — liberal, tolerante, próspero — fez-se precisamente de um compromisso, porventura mais periclitante e passageiro do que imaginaríamos ainda há poucos anos, entre estes dois valores: o de transformar o mundo, ou seja, o progresso, e o de manter a narrativa consubstanciada na nossa tradição.

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Aqui, diga-se, o Cristianismo desempenhou um papel importante ao incorporar, já desde há muito, um equilíbrio funcional e duradouro entre esses dois valores. Por um lado, e como Marcel Gauchet argumenta em 1985 no seu Le Désenchantement du Monde, o mundo ao qual Cristo desceu, precisamente porque foi digno de receber a encarnação de Deus, elevou-se a um estatuto, ou uma dignidade, maiores do que a visão meramente material, estéril, passageira, da qual gozava até aí, passando a merecer o labor e o esforço do Homem, seu cuidador. Assim, o mundo material, para os Cristãos, desde cedo deixou de ser algo simplesmente suportado para passar a ser algo digno de investimento, algo que merecia ser melhorado, ou seja, transformado. Do mesmo modo, também o respeito pelo passado, incluindo o não-Cristão, era importante para a Igreja, desde o conhecimento prático acumulado nas diferentes artes, até ao próprio pensamento filosófico — veja-se o cuidado com que Alberto Magno e Tomás de Aquino trataram Averroés, Avicenna e, mais fundamentalmente, Aristóteles —, tal como as próprias bibliotecas, o ensino e o conhecimento em geral foram durante séculos guardados por ordens religiosas, de onde, aliás, já desde os primórdios medievais, nasceram as universidades.

De facto, seria apenas mais tarde, com a revolução cultural e científica dos séculos XVI e XVII, que nasceria a semente do desequilíbrio entre aqueles dois valores. É ali, como se atesta bem, por exemplo, no paradigmático Novum Organum de Francis Bacon, que o passado passa a ser desvalorizado como “infantil” e a modernidade como a idade em que o Homem — tecnológico, científico, racional, moderno, novo — se liberta dos dogmas do passado e se torna finalmente “adulto”. Ora, como se atesta facilmente pelo mundo em que vivemos hoje, esta noção que impregna o sentido histórico de um carácter necessariamente positivo — do velho, portanto obsoleto, logo “mau”, para o novo, algo por definição melhor, portanto “bom” — vingou, germinando durante séculos, até, a cavalo da revolução tecnológica e cibernética, levar à quebra do compromisso fundamental entre tradição e progresso a que assistimos hoje.

De facto, primeiro a pouco e pouco, depois de forma já mais acelerada, o desequilíbrio entre tradição e progresso pende para este último — naturalmente, a expensas da primeira. Hoje em dia, em velocidade já supersónica, assim é por todo o lado: desde qualquer “tradição” — salvo o folclore próprio de civilizações mais exóticas que são, por puro paternalismo e presunção auto-congratulatória, olhadas com altiva curiosidade — ser permanentemente desqualificada pelo simples facto de ser datada; passando pelos mitos, ritos, rotinas e hábitos espirituais que fizeram parte das nossas identidades durante milénios e que são hoje crescentemente rejeitados como crendices sem qualquer valor, nem sequer histórico; ou as normas sociais, códigos, sejam eles mais ou menos formais, sobre como nos respeitarmos uns aos outros, obrigações e deveres que, durante séculos, vimos como fundamentais, senão fundacionais, da nossa sociedade e que agora são permanentemente colocadas em causa e rejeitadas como ofensivas; chegando até à própria educação dos filhos, às noções de família, de sociedade, das relações laborais, das formas de governo ou de gestão política, da própria vida, da morte, do que é crime e o que não é, ou seja, da moral; acabando, claro está, na tecnologia, com os gadgets que se devem trocar a cada ano e uma apregoada revolução na economia e na indústria do mundo inteiro que tem, dizem-nos, que ser completamente transformada, não apenas para melhorar, mas — já em pleno modo maníaco, histérico, mitómano — para salvar o planeta inteiro. Em suma, em tudo se promete inovar, melhorar, transformar, naturalmente a expensas de toda uma tradição milenar que, não apenas nos construiu como, mais importante, configura o pilar fundamental sobre o qual se erigiram as nossas identidades e concepções do tempo — e que agora se descarta.

É por essa razão que, junto com a rejeição da tradição, se esvai também o nosso passado. Hoje, reescreve-se toda a narrativa que edificou a civilização ocidental, agora transformada de berço fundador num embaraço animalesco, bruto, onde matar para comer passa por um pecado histórico, insidioso, imoral, contra o mundo. Vergonhosos também são, atente-se, todos os feitos históricos dos nossos antepassados, ora reduzidos a um emaranhado de dinastias de criminosos esclavagistas que não merecem outra coisa além do opróbrio generalizado.

No entanto, junto com o “passado”, porque a ele acoplado por definição, desaparece também o conhecimento acumulado ao longo de gerações, incluindo, paradoxalmente, o científico que permitiu sequer qualquer progresso. Senão, veja-se: nas ciências sociais, trata-se hoje em dia, acima de tudo, de ideologia progressista, estando as universidade grosso modo reduzidas a um funcionalismo acéfalo, utilitário, acrítico, incapaz de elevar os alunos àquele ponto fundamental de onde olhar o passado e o futuro; já nas ciências exactas, troca-se o respeito pelo método científico para incluir barbaridades idiotas que prometem “inclusividade” e “igualdade” científica, incluindo, imagine-se o ridículo, na matemática que alguns iluminados conseguem vislumbrar como “opressora”. Ainda assim, o expoente máximo da loucura talvez ocorra na biologia onde noções básicas como o sexo cromossomático são rejeitadas por ofenderem os frágeis sentimentos de minorias afligidas por aquilo que, até há muito pouco tempo, era visto como um raríssimo distúrbio mental, aliás, agora acarinhado, propagandeado, normalizado e, repare-se, “resolvido” por meio de intervenções cirúrgicas e hormonais brutais, de consequências macabras e trágicas, que visam “transformar” a realidade biológica dos indivíduos — uma mera ilusão, naturalmente.

Consequentemente, não é apenas a tradição e o passado que são agora transformados. É já a própria concepção temporal ocidental que desaparece, daí que o tempo, nas franjas mais revolucionárias, em particular as mais jovens, se vá progressivamente vivendo de um outro modo, mais limitado, menos consciente portanto, cada vez mais cingido ao presente: desde a necessidade de todos os problemas carecerem de solução imediata — queremos “já”, “agora” —, até à própria vivência que, porque limitada ao presente, ao imediato, se torna, por um lado, profundamente emocional, sem capacidade de contextualização, histérica quando contrariada, eufórica quando lhe é feita a vontade e, depois, pelo outro, porque o amadurecimento pressupõe uma larga concepção do tempo e do espaço, revelam-se os indivíduos crescentemente incapazes de ultrapassar a infantilidade — onde o tempo se limita ao imediato, não há amadurecimento, nem de ideias, nem dos espíritos.

O colapso do compromisso civilizacional entre progresso e tradição acentua-se hoje, infelizmente, muito para além das franjas marginais da sociedade, gerando uma agenda essencialmente progressista que, por oportunismo, granjeia apoio generalizado nos poderes que são — o político, o mediático, o económico. Inconscientemente, esta inédita voracidade auto-destruidora, suicidária, acaba colocando em causa muito mais do que se poderia sequer imaginar — desde logo a própria concepção do tempo que criou o nosso mundo liberal e próspero. É esse tempo que agora se precipita para o seu final deixando uma sociedade estilhaçada, sem identidade comum, atomizada, polarizada, uma multidão emotiva, sem passado, portanto sem futuro, sem rumo, sem destino.

Frank Zappa dizia, com razão, que sem desvio da norma não pode haver progresso; infelizmente, por estes dias, pouca gente parece compreender o outro lado da questão: que o progresso também não existe se não existir algo do qual nos possamos ir desviando. O compromisso ocidental entre progresso e tradição, fruto de séculos, permitiu-nos tirar as vantagens de ambos; a falência desse equilíbrio ameaça agora em poucos anos fazer com que fiquemos sem nenhum. Em nome do progresso, os fanáticos progressistas ameaçam inconscientemente destruir o progresso — e, de arrasto, levar o mundo que nos fez com ele.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.