1 O Abade Emmanuel Sieyès e a “ accountability “ da Administração Pública

O abade E. Sieyès foi, por certo, uma das personalidades mais surpreendentes da Revolução Francesa, pois começando por ser um padre desconhecido dos arredores de Paris desempenha papel crucial nos Estados Gerais e na Assembleia Nacional de 1789, atribuindo-se lhe a Teoria  do Terceiro Estado, fundamento do atual Direito Constitucional, e principal autor da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. onde incluiu o importante Artigo 15º — “A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração” –, instituindo assim o que hoje designamos pelo princípio da accountability da administração pública .

Ora, como ainda hoje se confirma, este princípio incomoda gravemente os poderes estabelecidos, mas a boa notícia é que este abade conseguiu sobreviver às sucessivas ondas de violência e morreu de velhice com 88 anos de idade.

2 A “ accountability “ e o Estado em Portugal

Portugal tem sido sempre, quer antes, quer depois do 25 de Abril, uma sociedade fortemente dependente do Estado, seja para evitar perseguições políticas, seja para garantir regimes especiais, subsídios, licenciamentos ou outros favores, o que sempre acarreta uma cultura de dependência de cada cidadão ou cada empresa em relação ao próprio Estado, pelo que pedir-lhe contas não está nas nossas tradições.

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Todavia os ventos de modernidade têm vindo a alterar a situação e assim começámos a saber quais as praias mais saudáveis através das bandeiras azuis, a conhecer os desempenhos dos hospitais do SNS, em gestão pública ou em PPP, e, nas últimas duas décadas, os rankings das escolas.

Contudo tais avanços foram sempre alvo de muitas críticas, considerando aqueles que se sentiam responsáveis por avaliações desfavoráveis alvo da mais vil injustiça pois o seu caso era diferente ou as comparações de fundamento duvidoso. Basta recordar os lamentos dos autarcas menos “azuis”, que clamavam que assim se arruinaria o seu município, ou a mais recente intervenção da ministra da Saúde sobre os resultados comparativos da gestão dos Hospitais PPP.

3 A avaliação dos desempenhos escolares

Vivi este desafio na primeira pessoa quando fui Diretor Geral do Planeamento Educativo em 1992 e contribuí para que Portugal passasse a participar no projeto internacional PISA da OCDE, o qual permite comparar os desempenhos escolares entre os diversos países, pois a oposição da nossa classe política foi muito radical usando dois argumentos contraditórios: ou não se justificava pois o nosso ensino era ótimo, ou talvez ficássemos mal colocados e tal afetaria gravemente a auto-estima dos professores, o que seria muito injusto. A boa notícia é que Portugal passou a integrar este importante projeto e mesmo os responsáveis da Educação mais avessos à “accountability” não conseguiram retirar Portugal do PISA.

A batalha da divulgação dos rankings surge mais tarde e também contribuí para que os pais portugueses passassem a conhecer os desempenhos educativos das escolas frequentadas pelos seus filhos e pagas pelos seus impostos, mas esta batalha contou com outros militantes bem mais importantes, como o atual publisher deste jornal. A resistência a esta divulgação chegou a incluir uma carta manuscrita do então ministro da Educação dirigida ao Conselho Nacional de Educação explicando os argumentos contra tal divulgação. Contudo, e mais uma vez, o princípio defendido pelo Abade Sieyès triunfou e durante as últimas duas décadas os seus opositores, tais como os atuais dirigentes, não conseguiram proibi-las.

4 O que dizem os Rankings?

Para além do imenso volume de dados que disponibilizam, os rankings este ano publicados evidenciam que :

  1. ACESSO: as condições sociais, culturais e económicas dos alunos são fator importante, pelo que as políticas de coesão devem dar prioridade a corrigir tais assimetrias, designadamente no que respeita ao acesso.
  2. ASSIMETRIA CRESCENTE DE RESULTADOS: para além dos condicionamentos referidos, a variância dos resultados está a aumentar quer entre privados e públicos, quer dentro da população das escolas públicas.
  3. RECUPERAÇÃO: sempre surgem escolas públicas que vencem  as dificuldades e ultrapassam o que se espera delas graças ao entusiasmo e à dedicação de toda a sua comunidade escolar, de que é agora exemplo a escola Machado de Matos em Felgueiras.

Como é evidente, os graves atrasos na disseminação dos meios necessários aos alunos para ter ensino a distância devido a COVID 19 em 2020 agravaram seriamente as assimetrias, mas talvez o exemplo mais extraordinário tenha sido o de não tornar gratuita, ou quase, a internet aos alunos desde Março de 2020, pois dela necessitavam para participar na aulas já que, ao que parece, tal será debatido no verão de 2021, segundo foi divulgado com entusiasmo pelo titular da Transição Digital!

Por último, gostaria de recordar estudo que realizei com a SEDES sobre os concelhos com pior desempenho e em que era sempre possível identificar escolas que sobressaíam pelos seus bons desempenhos graças ao seu inconformismo, entusiasmo, ensino adicional e competência dos seus professores, o que confirma que, querendo, podemos corrigir as condicionantes.

Perante estes resultados, a resposta oficial foi a de que os “rankings” são uma injustiça mas, na verdade, equivocaram-se pois o que são injustas são as políticas responsáveis pela situação atual, as quais ainda não aceitam o Artigo 15º da Declaração citada do século XVIII e que assim não contribuem para aplicar o nosso princípio constitucional da equidade.