Não é comum que use este espaço para falar de pessoas em particular. Geralmente imponho-me a norma de comentar de forma reflexiva e analítica a política nacional, com o intuito de espevitar a opinião pública. No entanto, desta vez, vou fugir a essa regra. Porque a pessoa sobre quem escrevo não foi comum.

Morreu aos 90 anos o Professor José Mattoso, homem que nos legou, através do seu trabalho, tempo e espaço para nos conhecermos. E apesar de me dedicar preferencialmente à História Contemporânea, e não tanto à História Medieval como ele brilhantemente o fez, sou, por várias razões, seu discípulo.

Nunca privei com o Professor José Mattoso, nunca o conheci pessoalmente, mas apesar disso, sinto que sempre o conheci. Primeiro porque sei que a sua existência foi providencial para mim, e para as últimas gerações de historiadores. Em segundo porque José Mattoso, em conjunto com alguns príncipes da historiografia portuguesa, como Oliveira Marques e Joel Serrão, fundou o curso de História da Universidade Nova de Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Foi lá que me licenciei em História e foi também lá que os seus primeiros alunos, seriam os meus professores. Eu e os meus colegas bebemos assim da sabedoria do Professor Mattoso, através deles, dos meus mestres. E em terceiro, porque li boa parte dos livros que escreveu.

Tenho dito várias vezes que depois de se ler um livro, não ficamos iguais, ficamos sempre diferentes. Não só pela informação nova que assimilamos, mas porque a curiosidade primária do ser humano, permite a rápida comparação analítica entre o antes e o depois, e tal é o quanto baste para a reflexão essencial que nos deixa mais ricos intelectualmente.

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Ler um livro é, nesta contemporaneidade de consumo instantâneo, um autêntico ato de libertação pessoal.

Depois de ler “A Escrita da História” ou “A História Contemplativa” e sobretudo “A Identificação de um País”, não conseguimos mesmo ficar iguais. Eu não fiquei, porque me foi permitido, através desses livros, compreender melhor as nossas origens enquanto povo, quem fomos, como se foi construindo o conceito de Portugalidade, das relações entre aqueles portugueses. Mas também compreendi o porquê de sermos hoje como coletivamente somos.

O Professor José Mattoso dizia:

“Para mim a História não é a comemoração do passado, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido.”

Esta citação resume muito bem as motivações do homem, do investigador, do professor e sobretudo do cidadão que quis ser útil ao país da forma que melhor sabia, que era fornecer novas interpretações sobre a nossa vasta História. A sua abordagem criativa, criou uma forma nova de estudar e escrever a História. Foi sobretudo um homem do seu tempo, que buscou nas complexidades sociais, culturais, económicas, políticas e nas relações entre pessoas, a identidade do nosso povo.

É interessante olhar para o Professor José Mattoso como alguém que quase anónimo, para a grande massa dos portugueses, tanto trabalhou em prol de todos nós. Não berrou, não se exibiu, não quis ser mediático, não procurou controvérsias, nem precisou de menorizar alguém para ser dos melhores. Simplesmente trabalhou naquilo em que era bom, em total liberdade com o seu objeto de estudo.

Fica aqui o testemunho agradecido de um jovem que ele nunca conheceu e cuja existência ele não sabia que existia, mas a quem o Professor Mattoso muito tocou através do seu trabalho. Pessoalmente apenas posso agradecer por ter existido alguém neste mundo com as suas características. Mas muito mais do que eu, é mesmo um país inteiro que lhe deve muito.

Morreu o Professor José Mattoso, o historiador da nossa geração, tal como o foi Herculano na geração dele ou Fernão Lopes no século XIV.

Camões escreveu nos Lusíadas:

“E aqueles que por obras valerosas, se vão da lei da morte libertando”.

Que haja mais jovens a ler José Mattoso, que haja mais pessoas a compreender e interpretar a nossa História, não tanto para comemorar o passado, mas sobretudo para entender o presente e melhor projetar o nosso futuro.

Lendo e estudando, o Professor Mattoso não morrerá. Porque ficará sempre na História que ajudou a escrever.