Uma família em isolamento, dia 20
Tenho à porta de casa um saco com roupa usada para levar para uma instituição onde costumo deixar também brinquedos e calçado. Lá dentro estão dois casacos de malha que eram das minhas filhas, três saias, vários collants, um blusão que deve dar para uma criança de quatro anos e um vestido que a minha mulher já não usa. Tudo em boas condições, claro – não se doa vestuário que não esteja em bom estado.
Quando fazemos limpezas e arrumações em armários, selecionamos sempre coisas que vão para filhos de amigos ou para esta associação. Nós também recebemos roupa e brinquedos que passam de filho em filho , que a miudagem cresce depressa e além de pouparmos a carteira defendemos a economia circular. Recebemos de uns, damos a outros, as crianças continuam a crescer e o mundo a rodar.
Mas agora o saco está ali à porta e os brinquedos continuam na mala do carro. O mundo continua a rodar, mas mais devagar. Está tudo à espera de melhores dias. À espera que as saídas deixem de ser precárias e apenas para a farmácia ou para o supermercado ou para o trabalho ou para passeios higiénicos com as crianças. Está tudo em stand-by. Tal como a fotografia grande que deixei para ser emoldurada e pendurada na sala, os sapatos que ficaram no sapateiro para levar meias-solas e as calças com aquela nódoa persistente que ficaram na lavandaria (sim, eu sei que esta continuou em funcionamento, mas isolamento social é isolamento social e isto não é essencial).
Mais importante é tratar dos óculos da filha mais nova. A miúda anda a queixar-se há que tempos e já temos a receita, que trouxemos da consulta dois dias antes de nos fecharmos em casa – tentámos comprar pela internet, mas óculos graduados, ainda por cima de criança, comprados à distância, é coisa para correr mal.
Mais importante é acabar de desvitalizar aquele molar do lado direito cujo tratamento ficou interrompido. Mais importante é remarcar a consulta de urologia que foi desmarcada por SMS, antes que venha nova cólica e tenha de ir outra vez parar às urgências. Mais importante é marcar novamente a consulta de otorrino das crianças. Mais importantes são as análises do meu pai e as consultas da minha mãe. A diretora-geral de saúde já o disse várias vezes: o SNS não para e o que é urgente é urgente, mas todos estes atos clínicos foram desmarcados. Interrompidos. Adiados. Transferidos para mais tarde.
E é essa a sensação geral. Ficou tudo interrompido, adiado sine die. Transferido para mais tarde. Um amigo contava-me há dias que esteve num processo de recrutamento para uma empresa durante dois meses. Ia saltando de fase em fase, transpondo etapas, superando novas provas à medida que o leque de candidatos ia diminuindo. Até que ficou só ele à espera da entrevista final – marcada para o dia em que as escolas encerraram. A entrevista foi adiada e disseram-lhe entretanto que, possivelmente, o emprego ficou sem efeito.
E as escrituras de compra de casa que estavam calendarizadas? E aquele crédito habitação que estava aprovado mas agora fica em dúvida? E as cirurgias não urgentes que estavam marcadas? E aquela data concreta, acordada entre marido e mulher, em que um deles iria sair de casa depois de terem tentado tudo? E aquele casamento em maio, convites enviados, igreja decidida, copo de água sinalizado e banda contratada? E a promoção que ficou adiada? E os engates, conquistas, encontros Tinder e romances que ficaram interrompidos? E as férias desmarcadas (sem fazermos ideia quando as poderemos marcar)?
E os negócios perdidos, as mais de trinta mil empresas em risco, os quinhentos mil trabalhadores a ganhar dois terços do que ganhavam há um mês?
Primeiro percebemos que podíamos ter a vida em perigo – a nossa e a dos que amamos ou dependem de nós. Quando é de morte que se trata, tudo passa para segundo plano. Depois vimos a vida a andar para trás. Agora percebemos que temos a vida em suspenso. O nível de risco mantém-se, não podemos baixar os braços e desatar a sair de casa, mas os dias no calendário fazem mossa. As semanas pesam. E tudo o que ficou adiado, transferido, desmarcado começa a dar-nos a impressão de estarmos meio perdidos. A meio caminho de qualquer coisa que será preciso retomar depois mas não sabemos bem quando. Ninguém ousa dizer que “este vírus chegou numa altura péssima da minha vida, não veio nada a calhar”, mas esta sensação de coisas pendentes vai-se instalando… Está-se a instalar.
Quando tudo isto passar, remarcarei as consultas de dentista e de urologista e de otorrino das miúdas. Havemos de comprar os óculos da mais nova. Irei buscar os sapatos ao sapateiro e as calças à lavandaria. E pegarei no saco de roupa que está à porta para o juntar aos brinquedos que já não entretêm as minhas filhas e irei levar tudo à Associação Humanidades, no Parque de Saúde de Lisboa, para terem uma nova vida junto de quem precisa mais. E a vida vai continuar a rolar. A custo, para muitos. Mas vai continuar a rolar. Até lá, porém, está pendente.
Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):
Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?
Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?
Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai
Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa
Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal
Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado
Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas
Dia 12. Agenda da quarentena: às nove no Instagram ou às dez no Skype?
Dia 13. Como explicar a uma criança o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?
Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?
Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”
Dia 18. Pão, muito vinho e Bruno Nogueira. O que mudou na nossa vida em três semanas
Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa