Conta-se que Frederico II, Rei da Prússia, depois de ver rejeitada uma oferta de compra de um moinho junto do seu palácio de Verão de Sanssouci, cujo barulho o incomodava, fez a seguinte ameaça: “Sabes moleiro, se eu quiser exproprio-te o moinho e nada te pagarei”. A resposta do moleiro é ainda hoje recordada nas escolas de Direito: “Vossa Majestade só teria esse poder se não existissem juízes em Berlim!” Reza a lenda que o monarca terá então deixado o pobre homem em paz.

Não sabemos se os juízes de Berlim do século XVIII impediram uma decisão arbitrária de Frederico, o Grande. Mas sabemos que em democracias modernas e maduras, como a nossa, as decisões dos tribunais são respeitadas e acatadas – mesmo quando politicamente incómodas ou inconvenientes, como o foram as decisões do Tribunal Constitucional português que chumbaram medidas de austeridade durante o período do resgate financeiro a que o país esteve sujeito entre 2011 e 2014. Contra pressões externas fortíssimas, um Tribunal Constitucional, de um pequeno país periférico e resgatado, não se deixou intimidar pelo peso da retórica de um pretenso “estado de necessidade” que tudo legitimaria em nome de um princípio maior de salvação nacional. Ainda há juízes no Palácio Ratton. Mas também há juízes na cidade do Luxemburgo; que o diga o governo polaco, que recebeu o recado, em forma de decisão do Tribunal de Justiça, de que não são admissíveis medidas que possam colocar em causa a independência judicial, como bem explicou Patrícia Fragoso Martins.

Tudo isto vem a propósito do artigo em que aludimos a um erro que sobressai no primeiro dos acórdãos do Tribunal Constitucional que se debruçou sobre medidas de austeridade adotadas durante o resgate financeiro. Esse texto suscitou reações e vale a pena discutir o seu mérito.

João Pedro Simões Dias discorda que o memorando possa ser qualificado como direito europeu. Hoje não parecem restar dúvidas sobre a natureza de ato atípico de direito da União do memorando. O Tribunal Constitucional chegou a esta conclusão no seu acórdão sobre o Orçamento do Estado (OE) para 2012, dizendo que o memorando se fundava numa disposição dos Tratados que permite à União Europeia socorrer financeiramente um Estado-membro da zona Euro. O Tribunal de Justiça confirmou este entendimento, declarando no acórdão Florescu que um memorando assinado pela Roménia com a Comissão tinha como base jurídica a disposição dos Tratados que permite à União resgatar Estados-membros que não pertencem à zona Euro, pelo que não podia deixar de ser considerado um ato adotado por uma instituição da União na aceção do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

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Ravi Afonso Pereira apresenta crítica que resulta de leitura apressada do que escrevemos. Refere não ser “factualmente correto que a medida acolhida na LOE 2012 estivesse predeterminada pelo memorando de entendimento”, uma vez que a proposta de lei foi votada em 30 de novembro de 2011 e o memorando que inclui a medida foi assinado dez dias depois. Mas não foi isso que dissemos: “a genealogia destas medidas de austeridade aponta para um esquema complexo, em que as mesmas são inicialmente propostas pelo Governo e, posteriormente, absorvidas formalmente no programa de resgate por via da sua inclusão no memorando que é assinado com a Comissão Europeia”. É irrelevante a predeterminação da medida e a sua paternidade (embora saibamos que a suspensão dos subsídios esteve na mira da troika desde o minuto zero). Uma vez que é direito da União, o memorando tem primazia normativa sobre a lei nacional que o executa.

Os cortes de subsídios, ao contrário do que refere o Tribunal Constitucional no acórdão de 5 de julho de 2012, estavam expressamente previstos no memorando de dezembro de 2011, que vigorava no momento da entrada em vigor da LOE 2012. Mais, tinham como propósito reduzir o peso das despesas com pessoal em 2012, objetivo reforçado na versão do memorando de 1 setembro de 2011, aplicável à data da entrega da proposta de lei do Orçamento do Estado.

Da leitura do memorando assinado a 9 de dezembro de 2011 resulta clara a reduzidíssima margem de conformação normativa do Estado português durante o período de ajustamento: só foi possível ao parlamento reduzir os cortes inicialmente previstos pelo Governo na proposta de lei porque a Comissão Europeia autorizou essa redução, impondo o seu financiamento através de outras medidas de austeridade (notas 5 e 6 do memorando).

Esta discussão demonstra que uma parte relevante da análise sobre o que se passou em Portugal durante o período do ajustamento está ainda por fazer. O debate válido sobre esse período não está esgotado nem se encontra limitado a quaisquer linhas vermelhas que alguns tentam traçar. Lançámos uma leitura possível e alternativa, a partir de uma constatação factual que não foi afastada. E, por essa via, tentámos contrariar o processo de nacionalização da austeridade que foi evidente, principalmente nos anos de 2012 e 2013. Um processo que contribuiu para que questões de relevância eminentemente europeia fossem objeto de discussão quase exclusivamente interna, permitindo que tanto o Eurogrupo, como o Banco Central Europeu e, sobretudo, a Comissão Europeia, pudessem manter uma posição de espetadores privilegiados numa peça em que, afinal, lhes cabia um papel principal. Tudo se passou como se não houvesse juízes no Luxemburgo…

Nota final: o erro factual que assinalámos não é descoberta recente. Foi identificado pelo menos em novembro de 2015 e posteriormente tratado em escritos e colóquios científicos, o mais recente em março de 2018, sem reação significativa até agora.

Francisco Pereira Coutinho é professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Teresa Violante é constitucionalista e investigadora da Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt.