Os órgãos de soberania pretendem desvalorizar o grave conflito institucional provocado pela polémica alteração da chefia da Armada, cujas notícias foram fundamentadas em fontes da defesa. A série de acontecimentos perniciosos são inaceitáveis e fragilizam não só o Estado mas também a instituição militar, afectando o seu prestígio. E também a reputação dos oficiais generais envolvidos.

Pelos vistos a reunião do Ministério da Defesa Nacional (MDN) com o almirante Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) para o informar da proposta de exoneração foi inoportuna e com motivações ainda não esclarecidas. E sem ter sido devidamente articulada com o Presidente da República, que é também o Comandante Supremo das Forças Armadas (FA) e tem, de facto, o poder de decisão.

Aquilo que devia ser o processo normal de substituição de um chefe militar transformou-se num monumental imbróglio por motivos políticos e por razões mesquinhas estranhas ao regular funcionamento das FA. O Governo precisava de uma manobra de diversão dos graves problemas que o país enfrenta e da disputa pelo poder dentro do partido.

Só assim se justifica que o ministro da Defesa Nacional tenha precipitado a decisão de propor a exoneração do CEMA, que tinha sido reconduzido recentemente, violando o acordo estabelecido com o Presidente da República relativamente ao momento em que deveria ocorrer. A este processo não será alheio o Chefe do Estado-Maior da General das Forças Armadas (CEMGFA).

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O CEMA terá assumido que deixaria o cargo para permitir a sua sucessão antes de outros três oficiais generais – com antiguidade e mérito – passarem à reserva. Dois deles são o vice-almirante CEMA e o chefe da casa militar do o Presidente da República.

No entanto, a indigitação do vice-almirante Gouveia e Melo, cujas capacidades são inquestionáveis, não devia ter sido anunciada no dia em que terminava a sua missão na task-force da vacinação. Esta coincidência pode gerar a falsa percepção de oportunismo. O envolvimento do seu nome nesta trapalhada é inquietante e inadmissível face ao prestígio adquirido perante a admiração dos portugueses. Está perante um dilema.

Foi neste contexto que o o Presidente da República se viu obrigado a desautorizar publicamente o ministro da Defesa, congelando a decisão por haver uma “sucessão de equívocos”. O primeiro-ministro pretendia capitalizar politicamente a popularidade do vice-almirante Gouveia e Melo. O Infeliz e ardiloso incidente, provocado por inequívoca insensatez, é mais um facto que contribui para a instabilidade nas FA.

A reunião de emergência com o o Presidente da República, pedida pelo primeiro-ministro, evidencia inequivocamente a gravidade da situação. O ministro da Defesa Nacional também esteve presente, para esclarecer a embrulhada dos tais equívocos, que a inabilidade política não consegue justificar. Inquietante caos interpretativo!

No que respeita à fundamentação para a exoneração do CEMA, a perda de confiança não pode ter justificação pela discordância, em sede própria, das alterações na estrutura superior das FA, como foi referido pelo PR.

Mas não deixa de ser uma perplexidade constatar que o almirante CEMA vai continuar no cargo sem ter a confiança política do ministro e este, ao ter sido desautorizado pelo Presidente da República, fica fragilizado na sua autoridade perante as chefias militares! Ora estando fragilizado é mais um governante remodelável.

Por outro lado, a alteração da legislação da estrutura superior das FA foi precipitada e não devidamente sustentada, conforme alertado por ex-chefes militares dos três Ramos, incluindo o ex-Presidente da República general Ramalho Eanes. A concentração no CEMGFA de um conjunto tão alargado de poderes serve para criar atritos e satisfazer os egos de quem nos desgoverna com arrogância e autoritarismo.

A polémica legislação que o ministro da Defesa Nacional com sofisma considera reforma serviu apenas para desviar a atenção da necessidade de concretizar a inadiável reforma de fundo da Defesa Nacional, permitindo fazer face aos graves problemas que afectam as FA, como tem sido amplamente divulgado. Mas isso só será alcançado com uma Politica de Defesa coerente, que é inexistente porque o ministro não passa de uma ficção.

Os esclarecimentos do Presidente da República serviram apenas para limitar os danos. Porém, não evitaram que o prestígio das instituições e a reputação dos envolvidos fossem afectados, pelo que a excepcional gravidade deste caso não deve ser desvalorizada com comunicados lacónicos nem declarações abstratas para tentar confinar a crise, o que acaba por gerar especulações. A desinformação mata a democracia.

O conflito institucional que se instalou está para durar. Os equívocos desta grave crise não resultam apenas de “erro de comunicação ou de percepção”, como refere o PR. Mas da governamentalização das FA, que contribui para a sua menorização e que a nova legislação permite. Estamos perante um misto de arrogância, de incompetência e de inabilidade política.

Importa sublinhar que o ministro da Defesa Nacional faz parte da elite política com pensamento enviesado sobre o que deve ser uma saudável relação entre civis e militares, desprezando os princípios, valores e cultura que fundam a identidade da instituição militar.

A subordinação ao poder político é indiscutível, mas não pode ser confundida com subjugação ou subserviência, algo muito apreciado por algum tipo de liderança político-militar que não prestigia as instituições democráticas.

Com efeito, ainda nem tudo foi dito. O ministro da Defesa Nacional que vai ser chamado ao Parlamento terá de saber explicar os equívocos de forma séria e sem um discurso falacioso com jogo de palavras. Se não o fizer ficará sempre a percepção de que houve ardil. E mais será revelado.

Todavia, o Governo tem como padrão o mimetismo, quando se trata de assumir responsabilidades, num inesgotável arsenal de tergiversação. O poder subiu doentiamente à cabeça de alguns governantes que parecem ter interiorizado uma ideia de impunidade.

Além disso, o Presidente da República e o Governo deviam estar inquietados com a profunda divisão entre as FA e a tutela, que é potenciada pela sobrançaria, falta de capacidade de comunicação, de discernimento e de liderança do ministro da Defesa Nacional. Para decidir é necessário conhecer ou saber ouvir quem conhece e sabe.

As instituições não podem estar sujeitas à prepotência de decisões arbitrárias, que provocam danos reputacionais e afectam o seu prestígio. Nem todos os fins justificam os meios.

As FA têm contribuído, de forma indelével, para o prestígio de Portugal e para a afirmação e credibilidade do Estado. Mas esperam-se tempos muito difíceis para o futuro da instituição militar.

Importa sublinhar que é responsabilidade política conferir estabilidade e dignidade às FA, que não foi tido em conta pelos diversos intervenientes. Por isso, terão de ser ponderados os reflexos de determinadas decisões ou a ausência delas sobre a coesão e a motivação dos militares.

Resta ainda referir que o Governo – sem rumo – tem aversão ao diálogo e ao escrutínio. Mas a sua inépcia e soberba na forma como enfrenta os graves problemas que afectam o país acabaram por ser penalizadas. Assiste-se com estupefação ao exercício político degradado com base no improviso, onde existe promiscuidade entre o Estado e o partido que suporta o executivo.

Temos um país à deriva, que se afunda porque deixou de ter a bóia da task-force da vacinação. O impacto da pandemia tem dissimulado a imprudência, incompetência e impunidade política de um Governo desgastado e desgovernado.

As explicações sem transparência, falta de coerência e com hipocrisia servem para tentar confundir os cidadãos (que não são néscios), o que enfraquece a democracia. Continuamos no imbróglio dos equívocos não esclarecidos.