As ordens profissionais, embora sejam associações públicas de direito privado, uma vez que se encontram incumbidas pelo Estado de prosseguirem funções e tarefas de interesse público, não podem ser encaradas no modo como se organizam, como funcionam e como se estruturam, como se de associações privadas se tratassem.

Não podemos perder de vista a circunstância de a inscrição nas respetivas ordens ser condição fundamental para milhares de profissionais desenvolverem a sua atividade.

O acesso e o exercício da profissão dependem da inscrição nas respetivas ordens, do pagamento das quotas obrigatórias, bem como da sujeição às regras deontológicas administradas pelas ordens profissionais.

Neste sentido, o princípio da auto-administração das profissões através das ordens profissionais, não pode fazer esquecer a necessária intervenção dos poderes públicos na definição e regulação de regras fundamentais a que as ordens profissionais devem encontrar-se sujeitas, dado que aquelas, em nome do Estado, desenvolvem funções de natureza pública.

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O regime quadro das ordens profissionais, aprovado pela lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, tem suscitado recentemente querelas públicas que conduziram à declarada intenção por parte do Governo de proceder à sua revisão.

Não nego a necessidade de se proceder à revisão do referido regime quadro das ordens profissionais. Na verdade, entendo que existem sérios motivos que devem conduzir à sua urgente revisão, no sentido de se introduzir um maior rigor e transparência no universo das ordens profissionais.

O Governo tem reagido negativamente a tomadas de posição, nomeadamente da Ordem dos Médicos, que se enquadram no domínio das atribuições das ordens profissionais, (defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços), mas que têm sido interpretadas pelo Governo como um ataque à capacidade de gestão dos serviços de saúde na resposta à Covid-19.

A animosidade referida motivou a reação no sentido de se proceder à alteração do regime que regula as ordens profissionais.

Ora, não creio que seja este o motivo determinante, nem o ambiente em que a lei quadro das ordens profissionais deve ser objeto de revisão.

Passados praticamente oito anos sobre a sua aprovação, a experiência demonstra que se exigem alterações fundamentais no modo como as ordens se organizam, que podem ser profundamente prejudicadas pelo ambiente que motiva a sua alteração.

As alterações que se exigem ao regime que regula as ordens profissionais devem caminhar no sentido de reforçar a defesa dos interesses dos profissionais e não, propriamente, na relação das ordens com as entidades públicas. De resto, no domínio da defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços, as ordens profissionais têm assumido uma função singular e que não pode ser de modo algum desvalorizada.

O que, do meu ponto de vista, deveria motivar uma reação do Governo no âmbito da forma como as ordens profissionais enquadram a sua relação com os profissionais cuja atividade regulam, é, por exemplo, a circunstância de os profissionais que se encontram em layoff continuarem a manter a obrigação de pagar as suas quotas obrigatórias.

Não seria mais sensato que o Governo, em vez de se sentir incomodado com a defesa dos cidadãos que algumas ordens profissionais têm desenvolvido, estabelecesse no diploma que instituiu o regime do layoff, que os profissionais nessas condições se encontrassem isentos do pagamento das quotas necessárias não só para o exercício da atividade profissional, mas também para a procura de nova atividade profissional?

O que não pode também ser ignorado numa futura alteração ao regime quadro das ordens profissionais é a circunstância, de a transferência de poderes públicos para as ordens profissionais, associada ao princípio da quotização obrigatória, implica que estas se encontrem encarregues da gestão de dinheiros públicos, que não pode deixar de ser minuciosamente regulado, ao contrário do que resulta do atual regime.

Senão vejamos:

  1. Não define a “lei das ordens profissionais” o quadro remuneratório dos seus dirigentes, não estabelecendo quaisquer limites, nem desenvolvendo um regime de incompatibilidades no exercício de funções, podendo ocorrer situações em que os seus dirigentes usufruam de uma remuneração superior aos titulares de órgãos de soberania, ou desempenhem essas funções em condições que suscitem manifestas incompatibilidades.
  2. Não define a lei limites máximos nem mínimos para os valores das quotas, atribuindo a lei essa competência aos órgãos das ordens profissionais, podendo alcançar-se situações de manifesta desproporcionalidade entre os rendimentos dos profissionais e o valor das quotizações obrigatórias.
  3. As regras de endividamento das ordens profissionais não estão estabelecidas, não se impondo desse modo quaisquer limites ou regras a que uma gestão transparente deve obedecer. Na verdade, e apesar de a Lei n. º2/2013, de 10 de Janeiro, fazer referência a uma limitação do endividamento das ordens estabelecido em diploma próprio, esse diploma nunca foi aprovado.

Parece-nos que a autonomia de gestão financeira de dinheiro público, sem regras transparentes que a disciplinem, de que as ordens profissionais beneficiam, não pode deixar de ser urgentemente repensada e enquadrada, de acordo com o que é estabelecido para os institutos públicos.

Pelo exposto, não tenho qualquer dúvida que o regime quadro das ordens profissionais deve ser profundamente repensado. Mas não creio que essa redefinição deva ser desenvolvida à custa da função fundamental que as ordens devem assumir na defesa dos direitos dos cidadãos no acesso a serviços públicos, mas sim na introdução de regras de gestão transparentes e na defesa dos interesses dos profissionais.