Muita tinta tem corrido sobre a relação entre José Castelo Branco e Betty Grafstein. O que muitos suspeitavam outros tantos já sabiam, mas todos se mantiveram mais ou menos em silêncio, irrompendo agora para se pronunciarem. Este parece ser o tema mais falado do momento no chamado “mundo cor de rosa”, o qual, permeado por opiniões e boatos, transformou-se num património gigante de discursos acusatórios. Porém, em termos de escrutínio científico, é muito mais do que isso: constitui um fenómeno a ser analisado em diversas dimensões, desde as questões do show off aos meandros da violência doméstica.

Comecemos pelo perfil das figuras, designadamente da masculina. José Castelo Branco sempre se mostrou como uma pessoa de comportamentos ostensivos, promovendo o exibicionismo e a opulência enquanto marcas indeléveis desta atitude perante si mesmo e os outros. As vicissitudes da vida levaram-no a conhecer Betty, mulher igualmente de gostos requintados, escolhas luxuosas e posses financeiras que possibilitam tal estilo de vida. Juntos impulsionaram-se cada vez mais e foram-se tornando produtos da fluidez da contemporaneidade, beneficiando (d)as curiosidades alheias, da atuação dos media e do próprio contexto societal, onde o capitalismo publicita a aparência e a manifestação do corpo como forma de identidade (provando que, do século XX para cá, temos assistido a décadas de “ascensão estética dos corpos”, como vários autores das ciências sociais têm vindo a afirmar). Todavia, se estas práticas são estruturantes dos selfs destes sujeitos, será que a sua efetivação acontece sempre do mesmo modo ao longo da vida? Particularmente, como dialoga a “pompa e circunstância” com a velhice?

Num período mais avançado da idade dos seres humanos, surgem novos gostos e, muitas vezes, mudanças nos antigos. Não quer dizer, até, que tais interesses tenham desaparecido, porém, que a paciência ou a energia para determinadas coisas já não são as mesmas. A velhice é conhecida como sendo um momento de resguardo, da alguma pausa e consciencialização; não tem de ser necessariamente passiva, mas amiúde é tomada como uma fase de maior descanso, provavelmente sem tanta gente à volta, mantendo apenas aqueles entes mais queridos por perto. A este nível, a vida que Castelo Branco e Betty tinham era em tudo contrária a esta maior reserva ou discrição que se evidencia frequente aos 70, 80 ou 90 anos. Destarte, emergem as perguntas: quereria Betty continuar com a sua vida aparatosa de notoriedade pública ou desejava mais recato? Servir-se-ia Castelo Branco de Betty para se promover? E de que modo, em caso afirmativo, pode esta pressão para a continuidade da fama constituir uma agressão contra Betty?

Conhecemos já bastante bem algumas características do crime de violência doméstica. Neste, ocorre, entre outras ofensas, uma hostilidade cruel sobre a vítima, que pode ter muitas configurações, mas que geralmente se traduz numa desigualdade entre esta e o agressor e mesmo, em casos mais graves, numa despersonalização da vítima. Ela torna-se uma espécie de objeto nas mãos do agressor, retraindo a sua maneira de ser para o contentar ou, pelo menos, não o enfurecer. Ora, soubemos que, supostamente, Castelo Branco terá empurrado Betty, conduzindo à sua queda e a feridas físicas. No entanto, isto é apenas uma parte da (alegada) agressão deste homem sobre esta mulher, o facto mais visível. Para lá do mesmo está toda uma dinâmica utilitária de extração de benefícios do poder social e económico da vítima. Castelo Branco aparentava tratar Betty como uma “boneca”, vestindo-a, maquilhando-a, compondo-a de acordo com as suas preferências e para demonstração ao mundo da sua beleza imposta. Uma atitude do estilo «eu sou magnífico, por isso quem está próximo de mim precisa de acompanhar esta magnificência».

Mas mesmo não sendo o argumento anterior parcial ou totalmente verdadeiro, o que nos parece relativamente óbvio é que, no mínimo, existiu negligência de Castelo Branco para com Betty. Conhecendo a diferença de idades e o estado de saúde da mesma, não pareceu ter existido uma preocupação de a salvaguardar das investidas ferozes da vida pública. Castelo Branco considera normal e até mesmo saudável levar Betty a almoços, jantares, festas e outros eventos repletos de pessoas, atividades e ruído, o que até pode ser positivo do ponto de vista do envelhecimento ativo, porém, nunca aborda o outro lado, aquele que diz respeito à vontade de Betty querer lá estar. É como se ele, por ser mais novo e se encontrar com maior pujança física, ganhasse uma procuração, um poder legitimado para decidir o que Betty deveria querer ou não fazer, querer ou não ser. E este tipo de comportamentos é uma clara agressão à vítima, podendo constituir violência doméstica, pois em plena relação conjugal exclui-a do poder da liberdade de escolha, direito essencial para a dignidade da condição humana.

É óbvio que não conhecemos a profundidade do vínculo matrimonial entre Castelo Branco e Betty para afirmar com certezas sobre o que nela se sucedia ou não. Somente abordamos, analiticamente, o que estava mais visível aos olhos de todos, visibilidade esta que, de resto, Castelo Branco sempre sugeriu adorar quando se encontrava numa época de “glória”. Agora que recaem sobre ele suspeitas de um crime, podemos questionar-nos acerca de todo o putativo tratamento deslumbrante e refletir até que ponto era mais uma manietação do que um empoderamento feminino. E também podemos, novamente, perguntar-nos porque tantos conhecidos e amigos de Betty ou do casal estavam inteirados destas coações e nunca se exprimiram ou realizaram queixa junto das entidades competentes. Mas talvez a interrogação mais importante seja a de como se transformou uma lady numa plebeia moral, pejada de joias e com tão poucas formas de autodefesa.

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