Há quase 20 anos a esta parte, no governo do então “saudoso” José Sócrates, o ministro da Defesa Nacional, Severiano Teixeira, exarava em 2006, um despacho para constituir um grupo de trabalho com vista a analisar o problema do congestionamento das carreiras militares, as dificuldades de retenção de militares altamente qualificados, as limitações à mobilidade funcional e geográfica, bem como a inexistência de saídas laterais institucionalizadas. No seu relatório final foram identificadas várias situações e apontadas soluções para as colmatar ou minimizar, com especial incidência naquelas que correspondiam à desvalorização da Condição Militar, à perda de competitividade das carreiras militares, relativamente a outras que, durante significativo tempo, serviram de referência e estiveram equiparadas, designadamente magistrados, professores universitários e diplomatas, incluindo a evolução das respetivas grelhas salariais. Perante as soluções apresentadas no relatório, o governo tinha duas hipóteses, e perante a necessidade imperiosa de decidir, optou pela passividade e foi mais longe, a Tutela fez novo despacho de nomeação de um novo grupo de trabalho com a missão de “Aprofundar o Diagnóstico”, o qual, em finais de 2007, apresentou novo relatório, mantendo, no essencial, as mesmas recomendações. Foram, muito por força das diretivas europeias, seguidas algumas no âmbito da reforma do ensino militar, segundo os critérios do Processo de Bolonha, e a aprovação do Regulamento da Avaliação do Mérito dos Militares das Forças Armadas, como instrumento de gestão de recursos humanos aplicável aos militares dos três Ramos das Forças Armadas, mas no que concerne ao estatuto da Condição Militar (Lei n.º 11/89 de 1 de Junho) nenhuma medida significativa e compensatória foi tomada, como forma de acautelar a especificidade dessa condição, enquanto fator de coesão, de disponibilidade moral e funcional das tropas, em especial quando destacadas no exterior do Território Nacional (Forças Nacionais Destacadas), aliás, a sua expressão prática na atualidade tem-se afastado, de forma preocupante, desse referencial normativo.

Muitas e boas vontades teóricas dali saíram, porém, a prática socialista desses tempos só soube trazer a Troika e com isso obrigar a uma redução de 15% nos já curtos efetivos militares, com maior incidência no ramo Exército. O programa Defesa 2020 do então governo de direita com Paulo Portas na Defesa consagrava uma série de medidas numa altura em que as FFAA viviam contínuos e consideráveis constrangimentos orçamentais e a multiplicidade de alterações nos diplomas legais que regulam quer a sua estrutura orgânica, quer áreas tão sensíveis, como a carreira militar, o apoio social, o apoio sanitário e o regime remuneratório, foram geradoras de um maior clima de insegurança e incerteza nos militares. Daí para cá, até esta data, a descida tem sido abrupta. Os problemas dos militares agravam-se ano após ano, os meios militares são cada vez mais diminutos e ultrapassados, as infraestruturas degradam-se dia a dia e, numa Europa com a guerra nas suas fronteiras com a Rússia, resta esperar que nada mais aconteça. Os números do recrutamento desceram para valores alarmantes e os efetivos para números absolutamente dramáticos. Como se a sangria que se verifica nos soldados não fosse já de si muito preocupante e por si só comprometedora da prontidão operacional das FFAA um novo desafio abala os pilares dos níveis de comando e controlo. O filtro da seleção de oficiais alargou-se por efeito de uma menor atratividade da carreira militar e, depois de qualificados os melhores quadros tendem a sair das FFAA aliciados por atrativas condições na esfera privada. Este é a somar aos demais, um problema gravíssimo e destruidor de qualquer modelo de liderança de médio/longo prazo das FFAA.

Não se recrutam generais diretamente do mercado de trabalho e a formação dos oficiais é o corolário de um desenvolvimento gradual de carreira, onde se cruzam uma densa e multidisciplinar formação inicial, contínua, formal e não formal, em cenário operacional e em ambiente académico, com o desempenho de várias tipologias de cargos e funções de complexidade com responsabilidade crescentes, tudo isto integrado num processo progressivo de promoção, ao longo de todo o percurso profissional. A carreira militar, fruto da necessária hierarquização da instituição militar, deve por princípio, ser desenvolvida em progressão vertical, através das promoções, tendo em conta as qualificações, a antiguidade, o mérito e as necessidades estruturais das FFAA, garantindo a seleção dos mais aptos no exercício de funções inerentes ao posto imediato.

Este modelo piramidal, face à diversidade de funções, valências, competências e saberes necessários ao cumprimento da missão das FFAA, implicou a criação de um elevado número de Quadros Especiais, com incidências e consequências diferentes nos três Ramos das FFAA, de dimensão e possibilidades de progressão diferenciadas, levando por um lado a uma crescente dificuldade na sua gestão e, por outro, a distorções e sentimentos de frustração e injustiça. Esta situação, aliada às recentes alterações estatutárias, com particular relevo para a diminuição da percentagem de aumento dos tempos de serviço, condições de passagem à reserva e reforma, incremento do tempo global de serviço de 36 para 40 anos, origina um progressivo congestionamento nas carreiras, com o aumento dos tempos de permanência em determinados postos, e a situações de grande desigualdade de progressão.

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Em especial, nos casos das carreiras nas áreas da pilotagem, das engenharias, da saúde, das tecnologias e de outras áreas de matriz marcadamente técnica, o paralelo com o mercado de trabalho externo exige, por parte da Tutela e da organização militar, uma gestão ponderada de equidades e equilíbrios intra e inter-organizacionais, em prol da eficiência e da motivação e retenção dos militares nas fileiras, sob pena de assistirem, como é recorrente na Força Aérea, onde na última década, pelo menos 60 pilotos aviadores ‘voaram’ da Força Aérea, pedindo por vontade própria o abate aos quadros permanentes, na esmagadora maioria para trabalhar na aviação civil, onde em média recebem o triplo do ordenado. Nos anos da pandemia não houve pedidos de abate porque as companhias aéreas não contrataram devido à crise na aviação mundial, mas em 2023 registou-se a saída de mais 10 pilotos, não compensada sequer pela “brevetagem” de nove pilotos este mês na cerimónia realizada na Base Aérea n.º 11 de Beja com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a aconselhar estes novos pilotos-aviadores a pensarem “mil vezes” quando os tentarem atrair para fora deste ramo militar, argumentando que o País os tentará reter. O que o também Comandante Supremo das Forças Armadas não explicou é como é que a Força Aérea os irá conseguir reter. “Pensai sempre, mas sempre, uma vez, duas vezes, três vezes, mil vezes quando a tentação de vos atraírem para outros caminhos quiser dizer ‘voar’ fora da casa que vos formou”, afirmou então, Marcelo Rebelo de Sousa. O Comandante Supremo das FFAA, por certo ignora que o mundo mudou e hoje os jovens oficiais, à semelhança dos demais da sua geração, ainda olham com o coração para a Bandeira Nacional, mas o que faz sorrir os seus olhos é “money talks”. O decreto-lei 3/2017 que regula as condições e as regras de atribuição e de cálculo das pensões de reforma do regime de proteção social convergente e das pensões de invalidez e velhice do regime geral de segurança social aplicado aos militares das Forças Armadas foi a machadada que faltava para os jovens oficiais nem pensarem duas vezes quando a oferta externa é bem mais superior em valor bruto do que o auferido no serviço militar.

A condição de militar implica permanente disponibilidade para o serviço e acima de tudo o dever de servir a Pátria mesmo com o sacrifício da própria vida, facto que, por si só, a torna incomparável a qualquer outra atividade profissional. Mais do que uma ocupação, a profissão militar é um “estilo de vida”, que concretiza uma tarefa de “vida e morte” e por isso com requisitos únicos (Morris Janowitz, in Social Control of the Welfare State1976, p. 175). Se esses requisitos únicos não forem acompanhados de condições únicas de prestação do serviço militar então a comparação faz-se pelos critérios gerais e na esfera do mercado externo atualmente as que são oferecidas pelas FFAA não chegam sequer a ser concorrenciais.  O militar rege a sua vida profissional e pessoal de acordo com um código ético assente num código de honra. O código de honra consiste num conjunto de regras de comportamento, cuja inobservância pode acarretar sanções e que exige um compromisso mais exigente do que o dos restantes cidadãos, a começar pela obrigação de obediência a ordens de superiores, mesmo que estas ponham em risco a própria vida. A própria sociedade considera que este deve ser o comportamento do militar, “tanto no serviço como fora dele mesmo com risco da própria vida” e é natural que o cidadão espere uma devoção especial a esses valores profissionais já que são pagos pelo resultado dos seus impostos, e de igual modo é licito que também o militar, consciente ainda que essa devoção inibe os seus direitos reivindicativos civis e reduz as possibilidades de intervencionismo político em tempos de paz e de traições em tempos de guerra, entenda que isso deve ter uma diferenciada compensação.

Os sucessivos ministros da Defesa encontraram sempre na proibição, termo que para os militares faz parte do seu ADN de formação, a forma de reduzir a saída extemporânea dos militares do QP, fórmula cujo sucesso está longe de conseguir os resultados esperados. A formação de um cadete da AM custa ao Estado cerca de 60 mil €, sensivelmente o valor que terá de indemnizar calculado com base em todas as remunerações, abonos e subsídios percebidos pelo aluno durante a sua permanência na AM, incluindo os custos e encargos de alimentação, alojamento e fardamento, de propinas, suportadas pela AM nos estabelecimentos civis frequentados pelo aluno, de formação na AM, incluindo os materiais e meios de apoio à formação e os relativos a transporte conforme Portaria n.º 22/2014 de 31 de Janeiro, não deve andar longe daquilo que dispensaria em formação académica semelhante numa Universidade Privada, com a diferença que um pai que tenha feito uma aposta deste tipo num filho sabe, de antemão, que não vai suportar os “intangíveis” dessa maturação. Sai de casa aos 17/18 anos, muitas vezes sem saber o que são os valores da disciplina, da pontualidade, do colectivo, etc e regressa com 23/24 anos, com tudo isso mais um título académico e até a saber fazer a cama! Não é o valor da indeminização que o prende, quando muito limita-o ou leva-o a permanecer até que reúna condições para o fazer. O que falha neste caso e qual a solução? Falha que os políticos em geral e a Tutela em particular não percebem que se os militares têm de estar condicionados na sua plena cidadania, então devem estar vinculados a um conjunto de preceitos legais de natureza particular. A maiores deveres deverão ainda corresponder maiores direitos e, ou, compensações de natureza diferenciada ajustadas às obrigações profissionais. A solução passa por aqui e por as democracias ocidentais valorizarem socialmente a função e profissão militar, a disponibilidade para morrer em serviço” porque “não se morre por dinheiro ou por zelo profissional, morre-se por sentimentos, convicções ou por valores” e o maior valor tem de ser Portugal.

A erosão que aconteça a este nível sendo indesejável não é critica, mas o mesmo já não se pode afirmar do que presentemente, é sabido e comentado, pelo menos no seio militar, do desgaste que as saídas extemporâneas de Oficiais Subalternos, Capitães e mesmo Oficiais Superiores provocam no Comando e Controlo das FFAA. Em muitos casos, são as empresas privadas que os aliciam com vencimentos muito superiores e até disponíveis para suportar os custos da indeminização ao Estado, na certeza de que amortizarão o investimento feito dado que recrutam os melhores quadros, mais capacitados e promissores. Como combater isto? Se já há mais chefes que índios, em breve, nem índios nem chefes. Já se ouviu alguma palavra sobre este dramático assunto da Tutela ou de algum partido?

A situação é tão mais gravosa porquanto essa sangria já acontece noutras Armas Combatentes em número significativo e não apenas nos Pilotos com a agravante de que, ano após ano, a Tutela não permite as admissões para o Quadro Permanente, calculadas cientificamente pelos Ramos, deixando esses números sempre abaixo, o que hipoteca decisivamente o futuro, compromete a operacionalidade das FFAA e qualquer modelo de gestão de carreiras. A Tutela ainda por cima, faz uso da sua “matemática propagandística” inserindo esses militares em formação nos quadros dos efectivos autorizados e em paralelo como disponíveis nos efectivos operacionais, o que é uma verdadeira falácia, mas que dá jeito para a narrativa do “investimento socialista” nas FFAA. Igual lógica segue a opinião pública desinformada quando olha para os números dos Oficiais Generais sem diferenciar se estão na reserva e reforma para, de seguida, comentar que temos mais que o Exército dos EUA. São menos que todos os boys&girls pendurados na Defesa, mas isso que pesa bem mais no orçamento, não interessa nada!

O sentimento de insegurança, incerteza e insatisfação, prejudiciais ao bom ambiente institucional, à motivação e ao desempenho dos militares está instalado no seio das FFAA, o que leva muitos e porventura os melhores a romper o “contrato psicológico” das suas expetativas, e perante as possibilidades de progressão, a incerteza quanto ao futuro, a preocupação da Defesa e do País com o indivíduo e a diminuição das contrapartidas recebidas levam Oficiais e Sargentos a abandonarem as fileiras. A sangria acontece já, não é pública ainda e para o Governo não deve ser um problema que não se resolva na próxima segunda-feira. Até lá, haja saúde ou como se diz na tropa, se houver problema, desenmerdem-se!