Em 2015, a prestigiada revista Science fez publicar um estudo científico do conhecido professor de antropologia, Douglas P. Fry, onde este defende que sem utopias “é possível um mundo sem guerras” e dava como exemplo grupos de sociedades vizinhas de interesses opostos que convivem pacificamente. Não foi necessário esperar muito para que o dia 24 de Fevereiro de 2022 o desmentisse, com o ditador Putin a ordenar a invasão bárbara da vizinha Ucrânia. Sendo certo que não existe inevitabilidade na História e que deve sempre haver espaço para sabedoria política e gestão de bastidores, a invasão da Ucrânia pela Rússia abre um capítulo novo na Europa do pós-Guerra com um Estado soberano invadido por outro, com o poder russo a pretender aniquilar o país vizinho, capítulo este que tem como uma das principais consequências a militarização acentuada da Europa. O facto de que “as previsões feitas no passado sobre a guerra nos forneceram uma história rica de pessoas que se equivocaram não nos deve levar a presumir que guerras convencionais entre Estados já não são possíveis”, afirma Margaret MacMillan, autora da obra intitulada Guerra. Putin e a sua entourage imperialista russa fez desmoronar as ideias de uma pacificação séria do mundo e pôs a nu o erro de um desinvestimento insensato e pouco coerente em matéria de defesa e segurança na Europa onde hoje até a Suécia e a Finlândia já abandonaram a “neutralidade” em favor de uma adesão à NATO. Por muito que se defenda a paz, que se questione a Aliança, que se queira reduzir exércitos ou a indústria de defesa, neste momento, que garantias tem quem é invadido por um estado agressor cujo objetivo é aniquilá-lo? Resta, nestas circunstâncias, ao estado agredido defender-se e para isso tem, também ele, que aumentar o seu potencial militar. Putin não atacou apenas a Ucrânia, espalhou o espectro do medo da guerra pelo mundo e, em particular, pela Europa. Em simultâneo com este expansionismo russo, juntou-se o conflito sangrento da Faixa de Gaza, com o Hamas a invadir Israel num ataque hediondo, matando idosos, degolando crianças e causando incontáveis feridos. O terrorismo islâmico transnacional, que se queria acreditar estar adormecido, mas que continua a ser uma realidade que constitui, por si só, motivo de grande preocupação para a segurança de qualquer Estado. Organizações terroristas como o Hamas, que utilizam técnicas e táticas operacionais com uma intensidade e projeção radicais, que preconizam a Jihad contra o Ocidente, não deixam alternativa senão a de lhes promover um combate eficaz e implacável, capaz de lhes anular a sua capacidade militar. Israel viu-se nessa necessidade a 7 de Outubro e, no espaço de 48h, mobilizou cerca de 300 mil reservistas para, em reforço da sua Força de Defesa Israelita (IDF), pôr um fim a estas continuadas agressões por parte do Hamas, dos vizinhos do Hezbollah e outras organizações terroristas apoiados pelo Irão.

A guerra da Ucrânia apanhou a Defesa Nacional de calças na mão e mostrou que, naquele 7º piso da Avenida Ilha da Madeira, há muita gente que se governa, mas não sabe governar. As lesson learned deveriam ter servido para fazer soar campainhas e adoptar medidas em conformidade, para que as limitações e os erros então encontrados não se repitam. Se hoje, um ano depois, formos a Santa Margarida ver quantos carros de combate Leopard 2 se encontram operacionais, a surpresa será mínima e as respostas aos porquês levam-nos de volta ao mesmo 7º piso! Mais, num assumido momento de total falta de efetivos nas Forças Armadas, prova provada da incompetência do governo socialista, a juntar à falta de médicos na saúde e à falta de professores na educação, o exercício de recrutamento das IDF deveria levar toda a equipa ministerial a pensar como é possível tal, mesmo num país onde o serviço militar é obrigatório para a maioria dos cidadãos, com exceções dos grupos religiosos e algumas minorias étnicas, com uma duração de cerca de três anos para os homens e cerca de dois anos para as mulheres.

Porém, não basta convocar esse efetivo de reservistas disponíveis, é preciso enquadrar, fardar, equipar e armar esse mesmo número e isso só se faz se existirem meios adequados para o efeito. Por outras palavras, só é possível mobilizar, quando existe um universo suficientemente amplo com formação militar por forma a poder ser convocado e em pouco tempo proporcionar respostas adequadas. Contudo, as coisas não são assim tão simples. Para além do efetivo mobilizável necessário, é preciso ter devidamente mantido todo o equipamento individual e coletivo para que os militares se possam constituir em unidades capazes de combater. De uma forma mais simples, é necessário possuir adequados níveis de reserva de guerra, coisa que não existe e não é de agora!

Por cá, nada de novo, continuamos a fechar quartéis e temos a extrema-esquerda do BE e os radicais do Livre e PCP a defenderem que sejam transformados em habitação social ou residências universitárias. Espasmem-se! Claro que a tropa em caso de absoluta necessidade aceitará ficar em tendas, isto se, entretanto, não forem todas adquiridas pela emigração de portas abertas e pelos sem abrigo que o governo promove com tanto fervor.

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Esta capacidade de aumentar o potencial militar por parte de Israel é um feito notável que nem o ChatGPT consegue assumir e devolve o comentário que “as forças armadas de qualquer nação, incluindo Israel, não podem aumentar as fileiras num número tão elevado e em tão pouco tempo sem um planeamento cuidadoso, treino intensivo e recursos logísticos consideráveis. Um aumento desse porte normalmente levaria muito mais tempo e envolveria recrutamento, treino, equipamento e alocação de recursos adicionais.”

Por extraordinário que pareça, num País como o nosso é inconcebível que ao fim de 4 anos a Defesa Nacional ainda não tenha conseguido disponibilizar os recursos necessários e suficientes para fardar e uniformizar o Exército na sua totalidade após a entrada em vigor do novo Regulamento de Uniformes. Uma particularidade afirmada então pelo poder político é o facto de os novos modelos não fazerem distinção por género pelo menos naqueles homens e mulheres que tiveram a sorte de os receber, havendo ainda nesta altura muitos soldados que nem sabem de que género é o novo uniforme! Isto nem é preciso perguntar à AI a razão. É conhecida e abunda no País.

É por isso que, nesta altura tão importante para as Forças Armadas, em que se discute o Orçamento de Estado para 2024, quando se ouve falar de investimento através da Lei de Programação Militar (LPM) é difícil não sorrir para não ter de chorar.  Mais ainda, quando é comum pensar-se que, em matéria de Defesa Nacional, a existência de consenso partidário e de um pacto de regime é de todo essencial, mas o que assistimos na AR aquando da votação da LPM foi da sua aprovação em Julho deste ano apenas com os votos favoráveis do PS, a abstenção de PSD, Chega, IL e PAN e votos contra de PCP, BE e Livre. E o ridículo não se ficou por aqui, pois a própria ministra da Defesa assumiu que a LPM que foi entregue no Parlamento não é igual à que foi levada ao Conselho Superior de Defesa Nacional. A diferença está na forma como as receitas próprias das Forças Armadas estão discriminadas, fazendo com que, dos 5. 292 milhões provenientes de verbas do OE até 2034, uma média de 500 milhões ano, há um sobrante de 278 milhões de euros que terão de ter origem em receitas próprias dos Ramos para atingir o total de verbas previsto. A Ministra parece ter-se inspirado no modelo famigerado modelo soviético da “campanha das batatas” para arrecadar verbas em DCCR (Despesas com Compensação de Receita), mas esquece-se que o tempo dos Regimentos da apanha da azeitona já acabou. Hoje, ou não há azeitona ou não há Regimentos dignos desse nome. Além da pressão que coloca sobre os Ramos, estas receitas são totalmente incertas e, alheio a isto, o Comandante Supremo das Forças Armadas, no seu papel diário de comentador, acrescenta que “não é ilegal, mas até é original” e anota que o Governo “não o deve fazer, mas pode”. Enquanto isto, o Tribunal de Contas constatou uma “reduzida taxa de execução” da LPM em 2019, situação que se agravou progressivamente em 2020 e 2021, de acordo com o relatório divulgado em Março deste ano, ficando-se por valores de 79%, 75% e 54% respetivamente. De um total de 69 projetos em execução, apenas 38 estavam a ser executados como previsto, pese as assessorias internas que o MDN contrata a peso de ouro aos boys&girls do aparelho e que acabam nas páginas dos jornais e nos gabinetes do MP.

Defrontando-se as FA com uma escassez gritante de pessoal, estando o País limitado em vários domínios do exercício da soberania, a começar na dimensão do Espaço Estratégico de Interesse Nacional e sendo hoje publicamente reconhecido que o empenhamento português em missões e compromissos da NATO/ONU acarreta riscos acrescidos aos nossos militares, verifica-se que a atual LPM relega tais realidades para segundo plano ou passa mesmo olimpicamente ao lado delas. Nos programas em execução ou a serem lançados encontramos as seguintes aquisições:

No Ramo Marinha: canhões 30mm para os NPO, navio polivalente logístico, plataforma naval multifuncional, navio reabastecedor, 6 NPO (com torpedos MK32, lança minas MK55 e 2 protector RWS), navios de patrulha costeira, modernização das fragatas classe Vasco da Gama, viaturas blindadas para os fuzileiros e modernização dos submarinos.

No Ramo Exército: novas armas anticarro, 200 viaturas tácticas blindadas ligeiras, sistemas de defesa antiaérea, morteiros 120mm para as PANDUR II, viaturas blindadas ligeiro 4×4 porta morteiro, viatura blindada lança pontes, viatura blindada de recuperação, 12 sistemas de artilharia autopropulsada em camião blindado 8×8, modernização dos sistemas L119, 47 camiões blindados MAN TG 4×4, 61 camiões blindados MAN TG 6×6, 43 viaturas tácticas ultra ligeiras, veículos aéreos não tripulados, modernização dos Leopard 2 A6 e 5 helicópteros de evacuação.

No Ramo Força Aérea: 5 aviões KC390, 6 aviões P3C Cup +, aeronaves A29N super Tucano, aviões de instrução M-346, 6 helicópteros UH-60 Black Hawk, 2 helicópteros AW119 Koala, 2 aviões Canadair CL515, veículos aéreos não tripulados, conclusão da modernização dos C130, conclusão da modernização dos P3C Orion, modernização dos TB30, misseis AIM 9X Sidewinder, bombas GBU-39/B, sistemas Warning Receiver SPS 45(V5) para os F16 e conclusão da modernização dos Falcon 50.

O poder político que decide destas aquisições acredita que é possível transformar sucata com mais de 30 anos em equipamentos militares modernos, assenta a lógica de que muitos desses meios servem para desempenhar, com carácter permanente, missões de interesse público que são, verdadeiramente, de interesse nacional e grande parte dos meios e programas desta LPM tem pouco valor militar, em caso de guerra. O navio polivalente da Marinha não deve, melhor, não pode atuar num meio hostil sem proteção aérea e, sobretudo, sem a proteção contra ameaças de superfície e sub-superfície que só os submarinos com essa capacidade podem garantir com eficiência. 5 helicópteros de evacuação no Exército que durante 14 anos e com muitos milhões de euros investidos dispôs de um Grupo de Aviação Ligeira em Tancos e o encerrou em 2014 no contexto da chamada Reforma 2020 dificilmente se tornarão uma realidade. A Força Aérea vai consumir recursos no programa de modernização dos Falcon 50 e, porventura aqui, terão utilidade. Nunca se sabe quando de repente o Comandante Supremo das Forças Armadas decide à última hora ir assistir a uma final de futebol do Euro 2024.

No Exército é o próprio General CEME que assume que “os projetos financiados pela Lei de Programação Militar são apenas os indispensáveis, para evitar a obsolescência dos principais sistemas de armas, e os prioritários para garantir a continuidade dos compromissos internacionais”, ao que a ministra contrapõe afirmando que “em 2024, o orçamento da Defesa Nacional voltará a crescer, mais de 10% , num reforço de 30 milhões de euros para a operação e manutenção dos meios e equipamentos das Forças Armadas, a que se soma o valor previsto na LPM, que, até 2026, contempla investimentos superiores a 170 milhões de euros, por ano”. Ora, se num pequeno exemplo atentarmos que, para a defesa aérea, Portugal e Ilhas precisarão de 4 a 5 sistemas Patriot, a custos de mil milhões de euros cada, logo se vê para o que serve esta LPM. O OE 2024 aprovado esta semana com os votos da maioria socialista surda prevê uma despesa total consolidada de 2.850,1 milhões de euros para a Defesa Nacional, longe dos cerca de 5 mil milhões que representariam os 2% do PIB, continuando Portugal a ser o 9.º Estado-membro da organização que menos percentagem da sua riqueza dedica à Defesa, um equivalente a 1,38%.

A discussão a montante sobre o Conceito Estratégico de Defesa Nacional seria longa, mas necessária para a definição da LPM e supondo que responde à visão estratégica no médio/longo prazo que leve em consideração as ameaças emergentes, as necessidades operacionais futuras e os objetivos de segurança nacionais, concluímos, então, que esta LPM não permite a adaptação a mudanças nas ameaças e nas capacidades, de forma a manter as Forças Armadas atualizadas e prontas para responder a diferentes cenários, não aloca recursos financeiros de forma apropriada para atender a essas necessidades, não investe em capacidades essenciais, como treino, tecnologia e pessoal, não privilegia a colaboração e a integração entre os diferentes Ramos e também com outros órgãos de segurança e agências governamentais e não inclui um plano de modernização tecnológica para garantir que as Forças Armadas estejam equipadas com sistemas e equipamentos de última geração. Mais, a LPM não pode deixar de levar em consideração por força dos compromissos NATO as oportunidades de cooperação e parcerias internacionais a par da interoperabilidade dos meios que possam melhorar a capacidade das Forças Armadas de cumprir suas missões.

A finalizar, e primordial, num momento destes em que o voluntariado não cobre sequer as saídas e o nível de efetivos está em mínimos críticos, esta LPM não dá respostas a questões de recrutamento, treino e retenção de pessoal qualificado, condição sine qua non para que que as Forças Armadas tenham o pessoal necessário com as qualificações adequadas. Em resumo, esta LPM está para as Forças Armadas como a ministra da Defesa Nacional está para o País, uma perda de tempo e um desbaratar de dinheiros públicos em que os socialistas são especialistas. No final, nem dinheiro nem FA´s!

Viseu, 02Nov2023