Com muito pesar de todos os cientistas, ao longo dos últimos anos tem-se tornado cada vez mais evidente que as carreiras científicas em Portugal precisam de uma declarada revisão, reforma, restruturação, reviravolta e revolução (escolha uma ou todas as anteriores). Continuamos ansiosamente à sua espera. Enquanto isso, vamos celebrando as pequenas grandes vitórias que muitos meritórios cientistas têm alcançado com a afiliação portuguesa pelo mundo fora. Disto, felizmente, temos muitos exemplos. A verdade é que este sucesso depende mais do esforço dos trabalhadores do que das suas condições. Se fosse ao contrário os exemplos certamente seriam menos…

Falemos agora de impacto. Erroneamente talvez, muitos pensarão que os grandes cientistas saltam de prémio em prémio, vivendo de reconhecimento e honorários como quem respira oxigénio. Pensarão que a meta de qualquer físico seja o prémio Nobel, como se a de qualquer matemático fosse uma medalha de Fields. Tais pensamentos negligenciam um facto escondido: a ciência faz-se por gosto. E por gosto procura-se o impacto. Não falo de um impacto centrado na fama e recompensa, mas sim de um impacto centrado na mudança e no progresso, na melhoria da qualidade de vida, das infraestruturas, da tecnologia e das próprias pessoas. Talvez o maior desejo de um cientista seja este – contribuir e avançar num tema particular, ao ponto de influenciar ou provocar uma mudança direta na sociedade, traduzindo-se numa melhoria considerável de algo. A fama é colateral.

Arrisco-me a dizer que ciência de impacto é o maior desafio na carreira de um cientista. É lógico que não teremos todos o fortúnio de descobrir uma propriedade desconhecida de um material, ou desbravar um mecanismo escondido do corpo humano que incite a criação de novos fármacos. Apesar disto, é preciso resolver um problema na sociedade e fazer um caminho coerente… Mas como?

McDonnell, em 2015, publicou um editorial paper na Science em que define o conceito de research brand identity (RBI). É simples. Nenhum cientista terá impacto na comunidade científica, ou, por outras palavras, será levado a sério, se não se restringir a uma determinada área-nicho. Para isso é fulcral especializar-se, através de sucessivos estudos consistentes na mesma área de domínio, bem como na sua difusão. Assim se atinge credibilidade científica. Segundo McDonnell, RBI é o campo restrito onde o cientista se vai esforçar a fazer a diferença. É no fundo definir os problemas que queremos ver resolvidos, e não os abandonar. RBI envolve escolher duas a três perguntas de investigação, nem muito amplas nem muito específicas, mas possíveis de serem respondidas no tempo de carreira do investigador. Estas perguntas irão definir a sua carreira científica, acompanhando-o em todos os seus trabalhos. São perguntas que se transformarão em linhas de investigação sobre as quais ele e a sua equipa trabalhará. Isto implica dizer que não a algumas parcerias, colaborações e estudos. Ajuda a filtrar propostas. Se for bem sucedido, tornar-se-á pioneiro num nicho, passando a ser procurado por alunos e pelos seus pares como o perito naquela área. Será chamado para palestrar nos cantos do mundo, difundindo os seus estudos e os seus resultados terão impacto na sociedade. De outra forma, de que serviria descobrir a cura para a esclerose múltipla se não a pudesse partilhar, ou se ninguém nela acreditasse?

Voltando ao Nobel – se formos ler, muitos dos que o ganharam estudaram a mesma minúscula partícula ou ínfima proteína durante talvez 30 anos. E o que é que podemos concluir com isso? Que o RBI funciona. Mais ainda, à luz desta filosofia, podemos focar-nos agora num exemplo português. Analisemos o caso impressionante da Professora Elvira Fortunato (aviso de antemão que sou um bocadinho enviesado neste tema, por eu próprio ser cientista de materiais, ainda que comparativamente tenha dois segundos de carreira). A Professora Elvira é o exemplo bandeira de RBI a funcionar atualmente em Portugal. Ela é considerada entre os seus pares pioneira da área da eletrónica de papel, tendo sido reconhecida mundialmente com inúmeros prémios. A sua identidade é facilmente comprovada nas suas publicações: os seus 10 papers mais citados dizem todos respeito a transístores de filmes finos de novos materiais. Estes papers que mencionei foram publicados entre o período de 2002 a 2012, comprovando que Fortunato trabalha há anos na mesma linha de investigação. É fácil confirmar que tem a sua RBI muito bem definida. Devido a escolha, conduziu investigação precursora e lidera atualmente uma mudança de paradigma na área da eletrónica sustentável a nível global. Suspeito que isto para ela seja bem mais importante que os seus prémios. É um dos grandes exemplos de ciência de impacto do país.

Sou da opinião que qualquer cientista deveria definir a sua RBI para tomar rumo o quanto antes. Que não existem especialistas em tudo, e por isso teremos que escolher. Quando combinamos muita coisa caímos no risco de nos tornarmos como patos – conseguem nadar, andar e voar, mas não são especialistas em nenhum dos três. Sou da opinião que as próprias universidades devem pressionar este comportamento nos académicos, de modo a poder encaminhar os alunos a concorrerem a linhas de investigação existentes e estabelecidas, para que se criem mais lasers como Donna Strickland criou com o seu orientador de Doutoramento em 1985 (que revolucionou a área de fotónica, levando ao Nobel da Física de 2018). O truque é afunilar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR