Quanto chegaste eu já recuperara, os lenços de papel do desespero enterrados fundo no caixote do lixo. Jantámos e à mesa não faltou nada, vi-te comer com apetite e os teus olhos brilhavam, esses olhos de mel e ouro fundidos, únicos e meus.
Só passado um mês tive coragem de te confessar que perdera o emprego. 30 dias a sair de casa de manhã como quem vai trabalhar e a regressar, já tu também saíras, para conversar com o sofá, ver televisão (maldita televisão!) e fazer razias à despensa. 4 semanas de ficção da normalidade. E recordava o que às vezes dizias “gostava de não fazer nada”, e face à minha perplexidade “não fazer nada como?”, respondias “nada de nada” e se eu espantado “mas de que serve não fazer nada?” sorrias e “serve para ir ao cabeleireiro, estar com as amigas, para fazer voluntariado – quero é ganhar dinheiro, pensava eu, serei voluntário quando for velhinho -, para cozinhar a comida de que gostas, serve para tanta coisa, fazer as mãos, fazer as unhas…”. Eu não respondia, e tentei, juro que tentei, mas sem mãos, nem unhas para fazer, regressava a casa e fazia nada, mas desse nada não me tinhas tu falado e pelo espaço de um mês fiz de conta, só de conta; menti.
Enquanto to dizia, a doçura do mel nunca saiu dos teus olhos, e uma lágrima rolou contrariada pela tua face, segui-lhe o percurso através das maçãs do teu rosto até assombrar o lábio superior, humedecendo os pelos dourados e finos sobranceiros à tua boca, de onde saíram as palavras que esperava sem saber como seriam: disseste “não te preocupes amor, vai tudo ficar bem”, “vamos dar a volta” e outras banalidades banais que me encheram a alma. Nessa noite falámos até o sono romper a nossa resistência, de corpos encaixados, o que dizem ser o que o amor é, contámos histórias de antigamente quando a vida cabia numa promessa e eu subia pela carreira acima como num elevador e tu vestias-te de orgulho em mim, falámos e voltámos a falar até adormecermos nos braços um do outro. E fizemos contas e contámos reservas para um ano, mesmo só com o teu ordenado viveríamos razoavelmente, o miúdo já não precisava de nós; e rimos juntos da mania de lhe chamarmos miúdo, ao matulão com quase 30 anos a viver na Austrália, ainda havemos de lá ir, e fizemos planos para lá ir, mais cautelosos do que de costume, até que decidimos, a altas horas dessa noite gloriosa, que eu ia arranjar rapidamente qualquer coisa. Foi o que disseste e eu acreditei – acredito sempre em ti.
Isso foi há dois anos, amor.
Nas semanas seguintes continuei a levantar-me à hora de sempre e a tomar o pequeno almoço contigo, até ao dia em que não me apeteceu, era cedo de mais e nesse dia fiquei na cama até mais tarde e soube-me bem, vê lá, deste-me um beijo antes de sair e disseste “não te levantes tarde, amor” e eu levantei-me uma hora depois, isso foi no princípio. Pouco a pouco estabeleci uma rotina nova, a atrasar a alvorada e a tomar um solitário pequeno-almoço, para depois me dedicar à tarefa de pesquisar a net em busca de anúncios de emprego, milhares por dia. Consultava o net-empregos, descobri o eures e um tal monster que até tem um blog e é fixe, pesquisei entradas como cool jobs, oportunidades para hortoculturistas e modelistas de CAD/3D; passei tardes a copiar e a enviar centenas de CV’s. Recebi 6 respostas simpáticas, o seu currículo é excelente, diziam, agradecemos o seu interesse na nossa empresa, e eu interessadíssimo na empresa deles apagava a resposta. Houve uma positiva: convidaram-me a ir lá e eu fui lá, de transportes para poupar pois era um distante lá; quando cheguei e após uma hora de espera agradeceram, “veja lá que acabámos agora mesmo de contratar uma pessoa”, azar, e obrigado por se interessar pela nossa empresa. Nesse dia sequei uma lagrimazita rebelde ao canto do olho; a partir desse dia deixei de enviar currículos.
Isso foi há um ano, amor.
Depois mostraste-me a declaração de IRS e eu estranhei tão pouco dinheiro, tão menos do que antes, a minha parte já não contava – o subsídio a acabar -, decidimos apertar (mais) o cinto, deixou de se falar na Austrália, e quando nos skypes o miúdo perguntava “como vão as coisas pai?” eu respondia “bem”, mas não iam bem, claro, e ele não perguntava mais nada, e tu continuavas a falar-lhe e eu de olhos fechados via o ar dele que por qualquer razão parecia ser de pena, um filho não deve sentir pena do pai. Muita gente se lamenta (ou gaba?) de sustentar os filhos à procura de emprego – quantas vezes desejei poder lamentar-me do mesmo!
E quanto aos amigos… amigos? Lembras-te estranharmos quando o Luís fez anos e não nos convidou? Quando o Manuel organizou as férias na neve às quais íamos sempre, o grupo todo – mais de 40, entre pais e filhos –, e nem sequer nos desafiou? Deixei os almoços semanais – sempre são mais 70 € por mês -, eles inquietaram-se, mandaram mensagens, depois passou-lhes. E lembras-te, amor, de os ter a jantar lá em casa, 12, 15 amigos à volta da mesa, todos encavalitados e felizes aos brindes e a despejar garrafas magnum do melhor?
Por esses dias levantava-me cada vez mais tarde e passava o dia no fb com mil amigos virtuais, à tua espera. E houve o jantar da Isabel a que não quis ir e tu também não querias mas foste, lembras-te?, e um almoço de domingo chez Carlos a propósito não sei de quê e eu não quis ir e tu foste, e outras vezes e eu à noite crescentemente sozinho, à medida das tuas solicitações. Fui deixando de te acompanhar, tu foste deixando que eu deixasse de te acompanhar. Na verdade não me apetecia ir, nada tinha para contar, se perguntavam “então pá, como vão as coisas?” (perguntavam sempre!) mentia, dizia que iam lindamente, mas é mentira e eles sabem e se sabem porque perguntam? Apetecia-me desaparecer, fechar os olhos como quando escuto o nosso filho, não queria estar ali, não estar lá, nem aqui, em lado algum. Deixei de ir. E um dia telefonaste a dizer que dormias em casa da tua amiga Isabel, lembras-te?, sentias-te cansada, disseste, tinhas bebido, disseste, “estás bem?” perguntaste e eu interroguei-me por que motivo havia eu de estar bem, tu sabias, tu sabes, ou se calhar não, já tinhas deixado de saber.
Isso foi há uma semana, amor.
Ontem saíste de casa para não voltar. Depois mandas uma empresa buscar as tuas coisas, disseste. Parece que afinal não ficaste em casa da Isabel. Não aguentas mais, disseste. Ainda me amas, disseste, mas não aguentas mais. À noite, sem sono, sonhei. O chefe chamava-me, entrávamos para a sala de reuniões e ele dizia “excelente trabalho, meu caro”. Depois vieram os colegas, a minha secretária, até o patrão, cantavam parabéns a você, alguém trouxe um bolo, estranhei (não era o meu dia de anos) e depois o meu chefe entregou-me um embrulho e disse algumas palavras simpáticas, qualquer coisa como “pela sua contribuição para a empresa, com o nosso reconhecimento” e as palmas intensificaram-se. Desembrulhei o pacote e deparei com uma espécie de túnica transparente. Percebi logo o que era: coloquei-a e saí para a rua maravilhado, satisfeito por confirmar que ninguém me via.
Tornara-me invisível.
Post-scriptum. Esta crónica é de direita, por apresentar os desempregados de longa duração como gente acomodada, que não reage nem se revolta; mas é tão difícil reagir no meio de um túnel escuro sem luz ao fundo…. Esta crónica é de esquerda, por criticar indirecta e implicitamente as políticas de austeridade; mas já em 2011 a população em risco de exclusão chegava quase aos 2,6 milhões de portugueses. Esta crónica é inútil e vácua por não apresentar soluções e ser meramente descritiva; talvez fosse tempo de, em período eleitoral, os partidos políticos se porem de acordo para fazer deste um objectivo prioritário e de regime. Esta crónica é maçadora por tratar de um tema batido e cansativo sobre um assunto que afecta apenas uns tantos seres humanos; tantos? Quantos? Números do INE referem em Portugal um número de desempregados de longa duração (há mais de um ano) próximo dos 63% do total. Digamos uns 350 mil. A maior parte tem 45 ou mais anos, isto é, pouca esperança de alguma vez voltar a arranjar emprego. E sendo certo que cerca de 2 milhões e novecentos mil pessoas (!) estavam em risco de pobreza ou exclusão social em 2014 (incapazes de satisfazerem necessidades básicas), quase metade dos desempregados, não só os de longa duração, vivem em situação real de pobreza! Quantos? Tantos!
Sempre me intrigou o que fazem esses homens e mulheres, como ocupam o seu dia a dia; como sofrem a indignidade de uma ociosidade não querida; como resolvem a falta de rendimentos (como pagam a bica, de manhã). Mais intrigante ainda: por onde andam que ninguém ouve falar deles, ninguém os vê nem sabe como vivem a sua (vazia) vida? Agora percebi: não os vemos porque são invisíveis.
Esta crónica pode ser acusada de tudo e do seu contrário. Mas não de ser invisível.