Na passada semana a Comissão Europeia apresentou um pacote de medidas sobre a fiscalidade das empresas para o século XXI, através da qual pretende harmonizar, a nível europeu, a matéria colectável em sede de IRC e as regras em termos de preços de transferência.

As duas propostas de Directivas do Conselho, que terão que ser adoptadas por unanimidade (de acordo com o artigo 115 do Tratado sobre o Funcionamento da União – TFUE) fazem parte do pacote que se apresenta com o nome “Empresas na Europa: Quadro para a Tributação do Rendimento” e usa a sigla inglesa BEFIT (be fit, é uma curiosa escolha que remete mais depressa para o nome de um ginásio ou de uma cadeia de comida saudável do que para um conjunto de medidas fiscais).

A primeira destas propostas, sobre o cálculo da matéria colectável, é mais uma da já longa lista de tentativas da Comissão de uniformizar a tributação das empresas. A primeira vez que esta ideia surgiu em documentos oficiais foi ainda nos anos 60, mas, até hoje, nunca conseguiu convencer os Estados das suas vantagens. As várias propostas que, ao longo dos anos, foram sendo apresentadas neste sentido, com nomes diversos e siglas mais ou menos originais, ficaram, sistematicamente, pelo caminho. A última tentativa, que usava as siglas CCTB e CCCTB (claramente menos apelativas do que BEFIT), acabou retirada e alguns Estados, como a Irlanda, continuam a ter muitas dúvidas sobre as vantagens da adopção de medidas neste sentido.

Desta feita, o foco da comunicação é colocado nas empresas e nas vantagens que estas terão se a proposta da Comissão for adoptada: reforçará a concorrência e a segurança jurídica no mercado interno, reduzirá os custos de compliance, incentivará as empresas a desenvolverem actividades transfronteiriças e estimulará o investimento e o crescimento na União (tudo isto nas palavras da CE). No entanto, a proposta tem limitações. Para já só será aplicável à determinação da matéria coletável dos grupos de empresas que operem na UE com receitas anuais combinadas superiores a 750 milhões de euros. Grupos mais pequenos, podem optar por aderir às novas regras, desde que elaborem demonstrações financeiras consolidadas, mas não estão a isso obrigados.

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Com a segunda proposta de Directiva, a Comissão pretende harmonizar as regras em matéria de preços de transferência, garantindo uma abordagem comum. Segundo a Comissão, a proposta aumentará a segurança fiscal e reduzirá o risco de dupla tributação. E, mais importante, reduzirá a possibilidade de as empresas utilizarem os preços de transferência para fins de planeamento fiscal agressivo.

Estas duas propostas vêm juntar-se a uma outra, de Dezembro de 21, já aprovada pelo Conselho e em vigor, relativa à fixação de um nível mínimo mundial de tributação para os grupos multinacionais na UE, que pretende “transpor” para a ordem jurídica da União o Quadro Inclusivo da OCDE/G20 sobre a erosão da base tributável e a transferência de lucros (BEPS). E apertam o cerco às administrações fiscais nacionais, no sentido de crescente harmonização fiscal dentro do mercado interno.

Depois das tentativas, por parte da Comissão, de reverter decisões fiscais nacionais por via do direito da concorrência – processos que têm sido reiteradamente contestados em Tribunal – agora, também por via legislativa, todos os caminhos parecem apontar na direcção da harmonização fiscal, quer a nível das taxas – por agora apenas taxa mínima – quer das regras fiscais aplicáveis ao cálculo dos impostos.

Segundo a Comissão Europeia, todas estas propostas respeitam o princípio da subsidiariedade, na medida em que os objectivos que se propõem atingir não podem ser alcançados pela acção individual de cada estado-Membro.

O problema, no entanto, parece estar precisamente nos objectivos e na forma de melhor os atingir. Se para a Comissão Europeia parece certo que as vantagens para as empresas e para o mercado interno apenas podem ser conseguidas por via da harmonização, há bons argumentos que permitem defender o exacto oposto, dizendo que quanto maior for o quadro de concorrência fiscal dentro da UE maiores os ganhos para as empresas e para a economia europeia como um todo (como é explicado aqui). Para além, do elefante no meio da sala, que é a soberania fiscal dos Estados-Membros, que não foi transferida para a UE, uma vez que a fiscalidade direta continua a ser da competência nacional nos termos dos Tratados, e a harmonização fiscal é, naturalmente, contrária a esse princípio.

Seria, por isso mesmo, natural e desejável que propostas desta natureza, com estas implicações, que abrem caminho para uma harmonização fiscal crescente, merecessem um amplo debate e escrutínio público e político. Pelo contrário, até pela sua natureza técnica e demasiado complexa, estas propostas têm passado longe dos cidadãos e com isso estão a fragilizar a democracia e o processo de construção europeia. Que política fiscal queremos na União deveria ser um dos temas prioritários para as próximas eleições europeias de 2024, na medida em que é decisivo e será fundamental para determinar com que recursos a União poderá contar. Recursos esses, por sua vez, decisivos para definir como financiar políticas concretas, desde as velhinhas PAC e coesão, passando pelas mais modernas e apelativas transições verde e digital.

Se por um lado o debate dos recursos próprios da União assusta os Estados-Membros, porque na prática iria levar a uma transferência de recursos da esfera nacional para a supranacional, atribuindo, a prazo, capacidade de lançar e cobrar impostos à UE, por outro tem havido um pedido reiterado de “mais dinheiro” europeu. Foi assim com a resposta à pandemia, em que a Comissão emitiu dívida para financiar o Next Generation EU, tem sido assim com a resposta aos desafios causados pela Guerra na Ucrânia e pede-se que assim seja para impulsionar a re-industrialização na UE. Mais dinheiro europeu significa naturalmente mais recursos que chegam ou pela emissão de dívida, ou pela criação de recursos próprios – impostos, na prática –, ou por maiores transferências dos orçamentos nacionais.

Por isso mesmo, a discussão da fiscalidade – ainda que chata, técnica e complexa – não pode aparecer desligada do modelo de União que queremos e da visão que temos sobre a soberania dos Estados no contexto da integração europeia.

Por agora a Comissão pode estar “apenas” a propor uma base comum para cálculo do IRC das maiores empresas a operar na União, deixando de fora tudo o resto. Mas é tudo o resto que também aqui está que importa discutir, debater e dar aos cidadãos a possibilidade de votar em Partidos que tenham posições claras sobre o futuro da integração europeia, incluindo a fiscalidade, o financiamento do Orçamento Europeu, a criação de um Fundo Soberano ou a emissão de dívida conjunta.

Nota: Este artigo foi escrito por Beatriz Soares Carneiro, especialista em Assuntos Europeus e membro do Gabinete Estratégico do CDS-PP em conjunto com Ricardo Pinheiro Alves, Vice-Coordenador do Gabinete Estratégico do CDS-PP.