Além de uma crise sanitária e económica, o coronavírus traz um desafio à história das democracias. Ao colocar em causa a imprevisibilidade controlada que as caracteriza, substituindo-a por uma incerteza sufocante, a pandemia agride um sistema político já desgastado: o nosso.
O vírus trouxe à realidade uma confirmação de problemas que já conhecíamos ou antecipávamos: o vazio das lideranças globais, a incapacidade das governações populistas, a lentidão e divisão da União Europeia, a obsolescência do multilateralismo do pós-Guerra, a imoralidade do regime chinês, a fragilidade das economias dependentes do turismo, o desinvestimento nos serviços de saúde, a ausência de poupança nas famílias, o endividamento das empresas, a desaceleração do ciclo económico, o radicalismo de alguns partidos. Nenhum destes tópicos foi inaugurado pelo coronavírus, mas todos foram ampliados e agravados por ele.
No entanto, se olharmos com atenção, todas as áreas políticas do regime reivindicam vitórias ideológicas graças ao vírus. Isso não tem tanto a ver com oportunismo ou verdade, tem a ver com outra coisa. A razão para toda a gente destacar as suas soluções como corretas, responsabilizando as falhas existentes nos demais, tem que ver com a própria natureza da crise que estamos a viver: num tempo em que o vírus despiu o Estado, todos sentem que a sua resposta para o Estado (e para o vírus) é a melhor. Como muito será feito do zero, há uma corrida para chegar primeiro. A exposição de problemas convida à proclamação de soluções. Nada disso é, necessariamente, negativo. Mas nada disso devolverá previsibilidade à imprevisibilidade controlada a que nós, numa democracia, estamos acostumados.
O maior desafio é esse: recuperar o controlo da imprevisibilidade e localizarmo-nos, como democracias, na História. Devolver norte à bússola. O problema que dificulta – ou atrasa – todas as soluções é esse: nós não sabemos em que momento da história da pandemia nos encontramos, nem a que tempo histórico ela nos levará. Para nós, as imagens do Papa Francisco na praça de São Pedro serão o que as transmissões de rádio de De Gaulle foram para os franceses que sobreviveram à guerra, o que o I Have A Dream de Luther King foi para a América que venceu a segregação, o que o Ich Bin Berliner de JFK foi para os alemães que derrubaram o Muro. Mas nós, como eles na altura, ainda não sabemos o que vai acontecer a seguir.
Não sabemos, hoje, se a pandemia é um momento na História ou se chegará a ser um tempo da História. Não sabemos, por exemplo, se líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro estão só a marcar o atual momento ou, por outro lado, se definirão historicamente este tempo no futuro. São pesos diferentes com impactos diferentes, partilhando uma única característica entre si: a nossa ignorância sobre a sua diferença. É isso que resume a inflação de imprevisibilidade de que fala este texto e que influencia, todos os dias, as decisões de quem governa nesta crise. A noção de risco tornou-se incomensurável, abanou alicerces, comprometeu estratégias.
Oakeshott descreveu a política como “a atividade em que o homem navega um mar sem margens ou fundo, não havendo porto de abrigo onde ancorar, nem ponto de partida ou destino traçado”. A viagem, segundo o filósofo inglês, “passa por manter o navio à tona”. A força desta tempestade – o coronavírus – é essa: os políticos estão a velejar sem mapa. Os céus, que tradicionalmente guiam a navegação, estão encobertos. O nevoeiro, se quisermos, chama-se incerteza.
Desde o último século que o Estado, como autoridade na defesa dos seus cidadãos e da sua legitimidade democrática, foi sendo substituído por entidades que prometiam proteger-nos de males globais com capacidades conjuntas. Contra o coronavírus, essas entidades faltaram a essa promessa, e a soberania de cada um foi vergada por uma arbitrariedade que todos atacou. Quando nos tiram tudo, somos obrigados a olhar para o que resta. No caso das democracias, sobrarão as instituições (a República) e a sociedade (o povo). São elas que mostrarão aquilo que passámos e, mais importante, para onde conseguiremos ir. Mas, primeiro, temos de perceber onde estamos agora.
In memoriam – Faleceu Júlio Miranda Calha, senador socialista, europeísta e atlântista. Tive a honra de o entrevistar, em 2018. Era um homem livre. Fará muita falta.