Reconheço que falarmos duma Escola Amiga da Criança* pode representar, para alguns de vós, qualquer coisa de bucólico. Quase de “retro”. Uma forma entre o ecológico e o “vintage” para a infância. Onde o brincar e ar livre prevaleçam sobre o aprender. E onde a velocidade do mundo e as exigências da escola não atropelem o tempo indispensável para que as crianças sejam crianças.

Mas a nossa ideia de escola tem muito pouco a ver com isso. Preocupa-nos, é claro, o que se pode esperar da escola no século XXI. Não só porque os nossos filhos a vivem num furor glutão de horas e horas de trabalho, sem direito a serem tão crianças como eles precisam. E num crescendo “crepuscular” de desigualdades sociais e de profundas discrepâncias económicas. De alarmante crise climática. De leituras quase indiferentes diante do afundamento da natalidade e das mobilidades demográficas. E de mudanças ciclópicas que farão dos robots parceiros do seu dia a dia. A par de  uma crise sanitária de legitimou uma atitude que, depois do terrorismo ter passado a ser um argumento mais ou menos banal, tornou as liberdades individuais mais expostas à necessidade de um controle digital que, para mais, contribui para lhes configurar, diariamente, o pensamento. Até porque a escola concorre com fontes de informação inesgotáveis que eles têm, livremente, ao seu dispor num telemóvel. Mas com tantas interrogações tão gritantes em relação ao futuro, é compreensível que os nossos filhos nem sequer o queiram imaginar ou fantasiar. Que dêem a entender que não terão sonhos (como, na idade deles, nós tínhamos). E que o que mais queiram é sair daqui. Como se o mundo a mil ou dois mil quilómetros de distância fosse, de todo, diferente. E fosse, sobretudo, gentil para eles.

Entre a necessidade, desde sempre, de as crianças terem direito à infância e um mundo agitado e cheio de contradições, preocupa-nos a escola, sobretudo. Porque todos nós reconhecemos que o modelo de educação que elas têm, desde o momento em que lá entraram, não se coaduna com aquilo que o mundo, hoje, lhes pede. A escola vive, na forma como concebe que os nossos filhos aprendem, um bocadinho no século XIX. Enquanto o mundo, hoje, exige informação; sem dúvida. Mas espera que ela se transforme em conhecimento; em sabedoria, em autonomia e em cooperação. E em singularidades. Por isso, preocupa-nos a necessidade de conciliar uma nova forma aprender com outra forma de educar. Mais educação pode não significar, em todas as circunstâncias, melhores pessoas. Mas cria as circunstâncias para que assim seja. Por mais que vivamos, ainda, num mundo, demasiado individualista. E mais individualismo, podendo não significar que estejamos a “clonar” más pessoas, ajuda a que a falta de humanidade que emana do individualidade se multiplique.

É claro que um mundo de estudos, de escalas, de tabelas e de rankings pode parecer mais objectivo. E assertivo. Mas é um mundo onde o “sente comigo!”, o “pensa comigo” ou o “ajuda-me”, simplesmente, parece, muitas vezes, em vias de extinção. Por isso mesmo, quando na Escola Amiga da Criança imaginámos outras categorias para a escola – Alimentação Saudável, Cidadania/Inclusão, Digital, Envolvimento da Família, Escola em casa,’Espaço Escolar, Literacias e Sustentabilidade – que (com o denodo dos professores) já são levadas em consideração, todos os dias, estamos a dizer que a escola já está a mudar. Por mais que as disciplinas, os programas e a forma mecânica de aprender insistam em ser como eram.

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É claro que desejamos uma escola mais igual para todos. O que, num mundo em tamanha mudança, não supõe que queiramos abolir as diferenças humanas. Não! Muito pelo contrário. Queremos só que a escola não normalize e não uniformize as crianças. Não se industrialize na sua relação com o aprender. De forma a dar condições de igualdade para que as diferenças individuais se manifestem, medrem e despontem. Muito mais!

Hoje, escolarizar, como se fez durante o século XX, já não chega. Se tiverem dúvidas acerca disso, é preciso que não nos fiquemos pelas suas notas de entrada nas universidade e olhemos para a maturidade dos nossos filhos aos 20. Ou vermos o grau de autonomia que eles têm depois dos 30. Ou para a forma como eles se sentem realizados. (Realizar é uma palavra fantástica. Porque trata-se de concretizar; sonhos e projectos. Realizar  passa por pegar num sonho e com ele “apalpar o pulso” à realidade e de o saber arar. E, duma forma pró-activa, ser-se guerreiro para o moldar e engenhoso para a conquistar.) Será que ao olharmos para os nossos filhos aos 20 e aos 30 ficaremos tão descansados assim com aquilo que a escola lhes deu? Quantos deles são autónomos depois dos 30? E quantos dos nossos filhos, todos eles escolarizados, se sentem realizados depois dos 30? Quantos deles se sentem capazes de lutar por um projecto, para além da ilusão de que só longe daqui alguém os valoriza e eles serão quem são? Quantos deles têm recursos para ter um trabalho onde o abolicionismo da exploração do seu tempo seja uma realidade, pago duma forma justa e com condições para terem vida pessoal, familiar e filhos, se for o caso de os quererem? Tirando o slogan, mais ou menos estafado, quantos deles sabem, na pele, o que é trabalhar em equipa? Tem a escola — ao querê-los a aprender de forma igual, ao mesmo tempo e, supostamente, do zero — contribuído para que eles, mesmo com mais estudos, sejam mais felizes, considerando tudo o que sabem, aquilo que fazem e a vida que têm? Quantos deles têm espaço e tempo para o ser (em paridade, pelo menos, sobre o ter)?

A escola serve para educar. Educar no sentido de ensinar a sentir e ensinar a ver. Ensinar a pensar. Ensinar a competir. Ensinar a conversar. Ensinar a descobrir. E ensinar a conquistar. Mas o modelo de escola que temos precisa de ser reinventado. Considerando os apelos do futuro. Por isso mesmo, a Escola Amiga da Criança é uma forma de nós dizermos à escola: “Vejam – com orgulho, sff – do que é que são capazes!”. “Vejam como a escola se transforma quase sem se dar por isso!”  “Vejam como a escola dos rankings dos exames tem merecido de todos uma indignação elegante e determinada!”  “Vejam como a escola – por culpa dos professores e com o compromisso dos pais – já está a mudar!”

Trata-se, agora, de se conciliar o direito que os nossos filhos têm à infância e à adolescência, e todos os desafios do nosso tempo, com novos conteúdos, novas formas de ensinar, e uma nova forma de planear o espaço e o tempo da escola. Há uma revolução tranquila que está em marcha. Trata-se de a reconhecermos. De a aprofundarmos. E de a gerirmos, todos, de forma a que escola responda e antecipe novos conteúdos e novos modelos de aprendizagem, para que os nossos filhos saibam mais, sejam mais maduros, mais autónomos e mais capazes. Não podemos continuar a viver a escola como se o mundo fosse, hoje, como ele era há 50 ou há 100 atrás. A escola pode ter um pé no passado, sim. Desde que tenha os olhos postos no futuro. E seja uma escola “de mão cheia” com o tempo em que vive. O futuro já começou, dentro escola! O que será a razão das razões para apoiarmos, mais do nunca, uma escola que seja Amiga da Criança.

* – Vá a escolaamiga.pt