O diabo está nos detalhes. Está sempre nos detalhes. Porque é aí que se revela a verdadeira natureza das pessoas, dos governos, porventura dos regimes. Seguramente do estado a que tudo isto chegou.

Falo da nomeação do sr. Carlos Pereira para a ERSE. Claro que o assunto não abre os telejornais. Nem inunda as redes sociais. Talvez isso pudesse acontecer se me limitasse a escrever que alguém que, em matéria de energia, é quase analfabeto de pai e mãe, vai ser um boy do PS a ganhar mais de 10 mil euros por mês (mais exactamente 10.431,32 euros), ocupando um cargo para o qual nada o recomenda. Talvez assim já houvesse alguma indignação, mas no fundo eu continuaria no registo do detalhe, na mesquinhez do detalhe.

Na verdade, quem conhece o sr. Carlos Pereira? Pouca gente fora do circuito do Parlamento, onde é deputado, e do PS-Madeira, que em tempos dirigiu.

E quantos portugueses sabem o que é a ERSE? Infelizmente demasiado poucos. A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos existe desde 2002, é uma entidade reguladora independente com intervenção num dos sectores económicos mais poderosos do país – e com mais impactos na economia e na vida das pessoas –, mas que começou a ser desconsiderada nos tempos de José Sócrates e nunca mais voltou a ter a autoridade necessária à sua missão.

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O que está em causa nesta nomeação é do domínio da obscenidade, e não por causa de ser um boy do PS ou do ordenado que vai ganhar. O que está em causa é, em primeiro lugar, a descarada e impúdica instrumentalização de uma entidade reguladora que, por definição, deveria ser independente.

O casamento destes dois desconhecimentos fazem com que esta nomeação não cause o escândalo público que devia causar – e é mais um sintoma de como o PS trata o Estado e o país como se fossem coisa sua, fazendo-o perante a indiferença quase geral e a impotência dos poucos que ainda vão reparando.

O que está em causa nesta nomeação é do domínio da obscenidade, e não por causa de ser um boy do PS ou do ordenado que vai ganhar. O que está em causa é, em primeiro lugar, a descarada e impúdica instrumentalização de uma entidade reguladora que, por definição, deveria ser independente. E que devia e deve ser independente não por acaso: esse estatuto, determinado pelas normas europeia, é uma protecção contra ingerências governamentais e partidárias no funcionamento de um mercado que se pretende regulado mas não ao serviço de agendas políticas. A existência deste tipo de entidades independentes é mesmo uma das marcas distintivas da democracia liberal, onde o poder dos governos é limitado por freios e contrapesos. Quando estas entidades independentes passam a ser meras correias de transmissão dos partidos e dos governos então passamos a estar a caminho das agora tão debatidas “democracias iliberais”.

Mas se esta é a questão de princípio que devia, só por si, inibir o governo de nomear para a administração de uma entidade independente um deputado da sua bancada parlamentar, a escolha do sr. Carlos Pereira tem aspectos ainda mais escabrosos.

Antes de tudo o mais, recordemos que esta não é a primeira nomeação deste governo para a administração da ERSE, pois antes já tinha para lá enviado Mariana Pereira Oliveira, que era adjunta do gabinete do secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches. Ou seja, o governo não está apenas a colocar um pé dentro da entidade reguladora, está a tomá-la de assalto.

Depois este assalto tem uma agenda política, pois o sr. Carlos Pereira não é um esquecido académico saído de uma faculdade de engenharia e esquecido nas últimas filas das bancadas parlamentares do PS a que agora se entrega uma missão à altura das suas competências técnicas. Nada disso. A sua formação académica é em Economia Rural e em Turismo. Tudo a ver, portanto, com a missão de lidar com as EDP’s e as Galp’s deste país. Mais: no Parlamento o sr. Carlos Pereira destacou-se como relator da comissão de inquérito à CGD que conseguiu concluir que os governos – especialmente os de José Sócrates – não tinham tido nada a ver com as desastrosas concessões de créditos do banco público – nomeadamente no tempo desse impoluto administrador que foi Armando Vara. Mais ainda: actualmente é o vice-presidente da comissão de inquérito às rendas excessivas na energia, cargo que só por si, pela carga política que tem, o desqualificaria para ir agora ocupar um lugar que se quer independente e sem agenda política.

Não é essa a visão do governo de António Costa, como nunca foi a do PS, que sempre conviveram mal com estas entidades independentes. Quando estão no poder tratam de as instrumentalizar ou esvaziar. Ou então estrangular financeiramente (como sucede escandalosamente com a entidade independente que devia fiscalizar as contas dos partidos, mas aqui a responsabilidade é mais ampla).

Portugal começa a não parecer um país normal, tal o grau de anomia e indiferença, uma anomia e uma indiferença que vão a par com a desconsideração deste Governo que temos pelas regras mínimas de civilidade e transparência.

E também não é esta a visão do secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, que desde o início do mandato tem andado encostado à agenda do Bloco de Esquerda para este sector e necessita de aliados na administração da ERSE para a instrumentalizar em nome dos seus objectivos políticos.

Num país normal uma nomeação como esta teria criado uma tempestade política. Em Portugal quase nem soprou uma brisa. Na verdade, em muitos aspectos, Portugal começa a não parecer um país normal, tal o grau de anomia e indiferença, uma anomia e uma indiferença que vão a par com a desconsideração deste Governo que temos pelas regras mínimas de civilidade e transparência.

Muitos levam as mãos à cabeça com o que se passa em alguns países da América Latina, mas o rosário de episódios trágico-cómicos em que se transformou o caso de Tancos já teve tantas reviravoltas que o guionista bem pode estar a confundir o nosso ministro Azeredo com o general Tapioca das histórias do Tintim. É que sentido de caricatura não lhe falta, pois já lhe ouvimos minimizar a importância do roubo, dizer logo a seguir que talvez nem tivesse havido furto, semenas depois pular de alegria com a recuperação “histórica” das armas e agora jurar que nada sabia sobre a rocambolesca mascarada da sua devolução. Mesmo assim, e sem perder a compostura, o primeiro-ministro ora nos diz que ele não pode ser responsabilizado porque não podia estar de guarda aos paióis, ora no-lo apresenta como “um activo importante”.

Houvesse algum decoro e a mínima percepção de que não se pode fazer tudo e mais alguma coisa a seu belo prazer e não seria possível manter esta farsa – e manter a farsa de um Exército onde um chefe de Estado-Maior foi demitido sumariamente por causa da entrevista de um vice-director do Colégio Militar mas o seu sucessor continua de pedra e cal mesmo depois de casos como o de Tancos ou o da morte dos comandos.

Enquanto se for encolhendo os ombros, teremos uma sociedade que talvez só desperte quando voltar a apanhar um valente susto. Ou seja, quando o estado a que isto chegou estiver à beira de não se aguentar mais, como sucedeu em 2011.

Mas não. Costa põe e dispõe e no fim ainda se gaba de que isto não é a “autocracia do Costa”, como fez no caso do Infarmed, onde todas as sucessivas trapalhadas, que começaram com a mudança de Lisboa para o Porto da candidatura de Portugal à Agência Europeia do Medicamento, continuaram com o inopinado anúncio da transferência do Infarmed para o Porto e acabaram com o rabo entre as pernas quando o disparate se tornou indisfarçável, foram da responsabilidade directa desse mesmo Costa.

Mesmo assim as águas não mexem, parecem chocas, são também elas um sinal do estado a que isto chegou. E o estado a que isto chegou é, como esta semana nos dizia alguém que segue atentamente a realidade portuguesa, o de um país que quase parece ter orgulho em que nada mude quando tinha condições para ser muito mais próspero.

Pois tinha. Mas não deixando um partido tomar conta de tudo, muito menos tolerando uma geringonça que só protege corporações de velhos direitos. É que assim, enquanto se for encolhendo os ombros, teremos uma sociedade que talvez só desperte quando voltar a apanhar um valente susto. Ou seja, quando o estado a que isto chegou estiver à beira de não se aguentar mais, como sucedeu em 2011.

Só se espera que nessa altura não nos surpreenda uma revolta contra “o que está” semelhante à que abalou outros países.